O Taoísmo
Os taoistas nunca formaram aquilo que podemos chamar uma escola de pensamento organizada.
Eram um grupo de pensadores, muitos deles eremitas, alguns deles movidos por ideias bastante divergentes. Havia aqueles que defendiam ideias associadas ao que chamamos hoje de “taoísmo filosófico”, enquanto outros estavam mais interessados noutras vertentes, como práticas de alquimia, astrologia, adivinhação e exercícios físicos e meditativos, sendo que estes ficaram mais tarde associados aquilo que hoje chamamos de religião Taoísta. É, no entanto, importante dizer que todos eles foram inspirados nos ensinamentos que mais tarde ficaram coligados no Tao-Te-King.
O Taoísmo inicialmente também não estava organizado nem possuía elementos de uma religião, mas esta aparece séculos mais tarde como uma forma de preservação dos ensinamentos e rituais dos vários mestres do Taoísmo.
Os filósofos que ficaram para a história como fundadores desta grande corrente de pensamento só nos aparecem a partir do século V a.C., durante a dinastia de Chou (1122-255 a.C.). Nesta altura outra grande corrente de pensamento era o Confucionismo, e aquela que viria a chamar-se o Taoísmo. Tanto os confucionistas como os taoistas encorajavam o Tao, ou seja, um caminho moral que levava o ser humano a se reconectar com a sua natureza inata e com a virtude. Para os taoistas a visão do caminho ou do Tao era o que levava à naturalidade e espontaneidade, já que, na perspectiva deles, não seria possível agir de modo adequado em todas as situações seguindo apenas regras de conduta. Para eles o verdadeiro Tao era o fluxo contínuo e natural de todas as coisas e que o homem dever-se-ia procurar reconectar com este.
Para os taoistas, o homem não ocupava o palco central do universo já que acreditavam que todos os seres já viviam de acordo com o Tao, de um modo espontâneo. Se havia discórdia era causada pelo ser humano, por este agir de acordo com o pensamento, conhecimento e por viver de acordo com regras de conduta. A sua atitude perante si mesmos e perante a natureza era fundamentalmente humilde.
Lao-Tsé
O primeiro grande nome de figuras importantes na história da filosofia Taoísta que encontramos é Lao-Tsé (por vezes também Laozi ou Lao-Tzu, que significa literalmente “velho mestre”), muitas vezes referido como o fundador do movimento e também o fundador da religião Taoísta. Para além dele encontramos vários outros nomes importantes como Chuang Tzu (369 – 286 a. C.) e Lié Tzu (séc. IV – III a. C.), tendo sido estes provavelmente discípulos da linha de mestre-discípulo fundada por Lao-Tsé. Estes dois, pelos seus conhecimentos procuraram tornar os ensinamentos de Lao-Tsé mais acessíveis ao público comum através de uma forma e linguagem mais simples e corrente. Os seus ensinamentos enriquecem imenso toda a estrutura de pensamento encontrada no Tao-Te-king. Se Lao-Tsé nos deixou o esqueleto, Chuang Tzu e Lié Tzu revelaram-lhe a forma exterior dando-lhe um aspeto mais familiar e compreensível.
Lao-Tsé nasceu provavelmente no estado de Chu (atual Luyi), na província de Hunan, na China, no ano de 604 a. C., numa época em que a China era governada pela dinastia “Zhou” (1045-256 a. C.).
Lao-Tsé viveu numa época de grandes perturbações políticas, mas de intensa efervescência intelectual. Nesse período, dois filósofos importantes surgiram, Confúcio (551-479 a. C.), um reformista social e professor que procurava restaurar a ordem naquele momento de caos, e “Lao-Tsé” que ensinava uma via para a “paz absoluta”, alcançável através da completa submissão à natureza, em que alguns dos valores praticados eram a pureza, calma, simplicidade e unidade.
Como surgiu o Tao-Te-King?
Conta a tradição que em 550 a. C., ao completar 40 anos, Lao-Tsé opondo-se às intrigas e disputas na corte do rei Wen, decidiu abandonar o cargo na biblioteca real e iniciou uma grande viagem para as Terras do Oeste.
Quando se preparava para atravessar a fronteira foi reconhecido pelo guarda e que lhe pediu que antes de sair da China, lhe deixasse, por escrito, um registo dos seus ensinamentos.
Após três dias, Lao-Tsé entrega-lhe em 81 versos a síntese de sua sabedoria, após o qual o guarda lhe deixa passar a fronteira e conta-se que ele nunca mais voltou à China.
Passagem de Blavatsky acerca de Lao-Tsé.
Helena Petrovna Blavatsky, na sua monumental Doutrina Secreta, escreve o seguinte acerca de Lao-Tsé: “Diz-se que ele escreveu 930 livros sobre ética e religião, e 70 sobre magia; mil ao todo. Sua grande obra, o Tao-te-King, o coração da sua doutrina e a escritura sagrada do Tao-Tse contém apenas, como é demonstrado por Stanislas Julien, “umas 5.000 palavras”, em uma escassa dúzia de páginas; no entanto, acha o Professor Max Muller que “o texto é ininteligível sem comentários, sendo Julien obrigado, para sua tradução, a consultar mais de 60 comentadores, o mais antigo dos quais escreveu por volta do ano 163 antes de Cristo”.” Doutrina Secreta Vol. 1, página 75
O que é o Tao?
A palavra “Tao” significa “o caminho, a verdade, direção, princípio, etc”. Uma ideia muito semelhante à do “Dharma” que encontramos na India. Como se trata de palavras que apontam para ideias universais, não as podemos definir de uma só maneira como fazemos com algumas das palavras nas línguas europeias. Ao estudarmos as línguas Orientais, especialmente as mais antigas, apercebemo-nos que são usadas as mesmas palavras para explicar conceitos diferentes em planos distintos da existência. Assim, também com a escrita tradicional chinesa. Para entendermos plenamente a ideia do Tao, temos de o considerar sobre os seguintes aspetos:
- Há um Tao eterno, não manifestado, que apenas pode ser pensado ou concebido como absoluta escuridão, o incomensurável e inexpressável, a última fonte de toda a manifestação, o “Eterno Zero” de onde surge o “Um”, ou o princípio do Universo.
- Há um Tao não eterno, a fonte mais direta da manifestação. O Tao na forma da existência, que é a unidade de todas as coisas e que pode, pelo menos até certo ponto, ser expresso em palavras. Nesse aspeto o Tao assumiria a forma equivalente ao Logos grego. No ponto 1 e 2 vemos a relação e distinção entre o Absoluto e o Logos.
- Como a dualidade Espírito e Matéria em harmonia. Na India são representados com duas divindades “Purusha” (espírito) e “Prakriti” (substância ou matéria) e que as duas são aspetos de uma só “coisa”.
- Lei harmonizadora de toda a existência.
“Quando proferimos a palavra Tao não nos referimos ao Tao eterno. O Tao que podemos pronunciar não é o Tao da Eternidade.”
[Aforismo 1]
“O Tao dá origem a tudo o que está contido na grande Vida. O Tao dá origem à infinidade das coisas, de forma tão caótica, tão obscura…”
[Aforismo 21]
“O seu aspeto superior não possui luminosidade; O seu aspeto inferior não é escuro. Nasce continuamente, mas não pode ser mencionado. Ele sempre retorna ao Não-ser. Dá-se-lhe o nome de forma sem forma, imagem sem objeto. Também é chamado de caos misterioso. Se o buscamos, não lhe vemos o rosto; Seguindo-o, não lhe vemos as costas.”
[Aforismo 14]
“O maior bem pode ser comparado à água. A virtude da água consiste em beneficiar todos os seres, sem conflito. A água vive nos lugares que o homem menospreza. Então, a água é quase como o Tao.”
[Aforismo 8]
“Quando o grande TAO se perde, surge a moralidade e o dever. Quando prosperam a inteligência e o saber, surgem as grandes mentiras.”
[Aforismo 18]
“Se ages de acordo com o Tao, serás um com o Tao e com todos os que se encontram nele. Serás um, na Vida, com aqueles que têm Vida. Serás um, na pobreza, com os que vivem na pobreza.”
[Aforismo 23]
Principais conceitos do Taoísmo Na sua magnífica obra o Tao Te King, Lao-Tsé revela, de uma forma poética e muitas vezes paradoxal, várias ideias que só encontramos expressas na filosofia oriental. Nela há conceitos completamente revolucionários para o Homem do século XXI. Conceitos tais como: Espontaneidade:“É essa a razão porque um sábio diz: mesmo que não façamos nada, o povo evoluirá por si mesmo. Se amarmos a quietude, o povo organizar-se-á por si mesmo. Se não empreendermos nada, o povo desenvolver-se-á por si mesmo. Se não tivermos ganância, o povo alcançará a simplicidade por si mesmo.”
[Aforismo 57]
Dentro do Taoísmo, a não-ação não significa a inercia, o “Não fazer nada”. Para quem lê isto pela primeira vez, deverá surgir na sua mente a ideia de que o sábio Taoísta é aquele que se retira do mundo. Mas tal não seria coerente com outras ideias do Taoísmo como o despojamento e o anonimato. Assim sendo a não-ação seria uma ação desinteressada nos frutos resultantes da mesma. Uma ação por dever ao Bem e à Justiça. Para o taoísmo todas as actividades humanas deveriam perder as qualidades de acções voluntárias e deliberadas, para se tornarem naquilo que se poderia chamar o “sem agir”. Semelhante ao conceito moderno de “entrar em fluxo”, ou seja, de permitir que a consciência entre no fluxo da realidade onde tudo está ao sabor do movimento das leis e da harmonia da natureza e onde tudo esteja em contra fluxo com ela, nomeadamente que a nossa perspectiva pessoal separatista e o nosso egoísmo isolador, desapareça naturalmente. De acordo com o pensamento Taoísta de que Lao-Tsé faz eco, quando se referiam aos antigos imperadores da China, diz-se que eles eram tão bons e tão justos que ninguém sabiam quem eles eram. Em princípio, esta ideia parece contraditória, mas se analisar-mos bem apercebemo-nos de que falavam justamente da inferência que sentiam estes antigos sábios governadores para com o reconhecimento e estatuto social, ou seja, que faziam apenas aquilo que deveriam de fazer de acordo com as leis da natureza sem nunca esperarem reconhecimento pessoal. Conheciam perfeitamente a natureza humana e sabiam como a conduzir, como extrair dela o melhor. Aos olhos dos que procuram reconhecimento pessoal ou saciar o seu sentido de orgulho, estes antigos sábios não faziam nada, porque não se faziam notar com as suas acções. Ninguém reparava neles, ninguém se sentia governado e por isso é que o governo do país estava em boas mãos, porque eles faziam precisamente tudo o que era bom e justo para o “todo”, ou seja, conduziam todos os seres humanos à plenitude da sua condição humana.Mente vazia:
“O Sábio também é assim: Ele surge em primeiro plano porque menospreza o seu eu. Renunciando ao seu eu, a sua essência é mantida. Não é assim? Ele torna-se perfeito por não querer nada para si.”
[Aforismo 7]
Ao menosprezar o seu eu está a libertar-se das suas formas: física, psicológica e mental. Aquilo que fomos, somos e seremos está sempre em constante transformação, porque tudo está constantemente em fluxo. Então é importante libertarmo-nos de tudo o que é de natureza transitória e ir à essência das formas. Assim, de mente vazia daquilo que não permanece, desapegando-se de todas as formas transitórias, mas com plena consciência daquilo que é eterno, o sábio atinge a iluminação O sábio é também aquele que menospreza o seu eu inferior, criação da sua mente egoísta. Mas não o menospreza no sentido de o descartar ou até eliminar por completo, mas de o subjugar àquilo que dentro dele corresponde ao mais elevado. Assim, esvazia tudo aquilo que é desnecessário e põe tudo o resto ao serviço do Tao. Anonimato:“O bom caminhante não deixa rasto. O bom orador não necessita de desmentir coisa alguma. O bom matemático não necessita de um ábaco. O bom guardião não necessita de fechadura, nem de chave e, apesar disso, ninguém pode abrir o que foi guardado por ele.”
[Aforismo 27]
“Quando um Grande Soberano governa, os súbditos nem se apercebem que ele existe.”
[Aforismo 17]
O sábio é aquele que renuncia ao seu ego. Deixando de lado os prazeres e interesses do ego, é como se deixasse de existir para os outros. Os seus atos são desinteressados e altruístas, a sua impecável conduta não desperta inveja, o reconhecimento ou a falta dele não o afeta, o seu estatuto social pode ser o mais baixo, mas isso não o impedirá de ele cumprir a sua função de ser humano e de educador do mundo. Ninguém se vai aperceber de que as ações dele produzem resultados, porque os resultados não o influenciam e muitas vezes são resultados apenas constatáveis numa dimensão mais subtil da existência. Quando ele se vai embora ninguém nota falta dele, mas sentem que falta qualquer coisa, que não sabem o que é. Como dizia Lao-Tsé, os sábios antigos eram “Tão bons tão bons, que ninguém sabia o nome deles”. Por não terem interesse em reconhecimento pessoal não se faziam notar. Passavam despercebidos. Assim também não eram corrompidos pelos interesses do povo nem o seu exemplo despertava inveja nos outros porque não ostentavam os seus ganhos. Despojamento:“Não adianta querer reter alguma coisa, porque isso a fará transbordar Querer usar alguma coisa, mantendo-a sempre (pronta a ser usada, servir) afiada, não durará por muito tempo. Ninguém pode proteger uma sala a abarrotar de ouro e pedras preciosas. Ser rico e nobre e, além disso, ser também arrogante, por si só já atrai a desgraça. Depois de realizar a obra é tempo de se afastar: É esse o Tao do Céu.”
[Aforismo 9]
O sábio conhece a impermanência de todas as coisas e sabe que não se deve apegar a elas. A única coisa que lhe importa pensar e trabalhar é naquilo que realmente é dele e depende dele. Tudo o resto pode ser útil até um certo ponto e o que não for é despojado. Por isso ao sábio não lhe importa os ganhos materiais, o reconhecimento, o estatuto social nem mesmo os frutos da sua ação. Quantas vezes nos custa fazer isto durante a vida? Usar as coisas sem que elas nos usem a nós, ou tomem posse de nós. Quantas vezes, ao realizarmos obras nos apegamos aos seus frutos e passado uns tempos, quando não alcançamos o que desejávamos, sofremos e saímos frustrados… Todos estes infortúnios, na verdade, são provocados por nós mesmos, devido ao nosso egoísmo e ignorância relativa à verdade da vida no mundo. Humildade:“Aquele que sabe conduzir bem os homens, mantém a humildade perante eles. Esta é a vida sem confronto, a força que manipula os homens, a polaridade que se estende até ao Céu.”
[Aforismo 68]
É aquele que sabe que, para conduzir os seres humanos não se deve, por um lado, querer ser melhor que eles, e por outro utilizando-os como meras peças de um jogo. A humildade abre caminho a que o outro mostre o melhor de si mesmo, porque não o faz sentir nem inferior nem ameaçado. O sábio, ao manter-se humilde o faz também por reconhecimento da sua condição, já que reconhece na verdade, que não é superior em nada a todos os outros, mas apenas, por ter-se tornado num verdadeiro canal para as forças benéficas do universo, se mostra mais apto a conduzir. Não porque ele é poderoso, mas porque permite que a força da lei do universo entre sobre ele. Por isso, na verdade ele renuncia a todo o seu interesse, a todos os seus desejos pessoais para se tornar num canal. A palavra manipular hoje associada a uma ideia exclusiva, mas no Taoísmo tudo é dual. Por isso a manipulação pode ser para o bem ou para o mal. O aforismo refere-se ao primeiro, o que significa que o sábio conhece muito bem a natureza do ser humano e que sabe que para o conduzir para o bem, às vezes é necessário apertar-lhe as opções de escolha, mostrar que é ele que sabe e vence na vida, ainda que a única razão que assim seja, deva-se ao trabalho manipulador e benéfico do sábio. Efemeridade da existência:“Um ciclone não dura mais que umas horas. Um aguaceiro não dura o dia inteiro. E quem os cria? O Céu e a Terra. Se o Céu e a Terra não podem gerar nada de permanente, muito menos o homem logrará fazê-lo.”
[Aforismo 23]
Este conceito toca, em vários níveis, no conceito anterior já que fala da efemeridade da vida. É certo, que sabendo isto não devemos simplesmente descartar aquilo que é efémero, porque precisamos disso enquanto estamos na terra a evoluir como seres humanos, por outro lado é importante também ter presente na mente, que tudo está em constante alteração. Em constante fluxo e isso assim é por alguma razão. Aceitar esse facto ajuda-nos a lidar melhor com ele e extrair algo proveitoso. Se os obstáculos na vida assumissem sempre as mesmas formas não cresceríamos como devemos, se as leis dos homens não se alterassem para melhor responder às novas formas de pensar e de agir o estado entraria em colapso, se fossemos todos iguais uns aos outros não haveria convivência nem amor, porque para tal não seria necessário. Tudo tem o seu lado positivo e negativo. No universo há sempre aquilo que está em constante mutação à volta do centro fixo e inalterável. Não-eu:“A utilidade do carro depende do seu nada. Busca-se a argila para modelar vasos; A utilidade dos vasos consiste no seu nada. Abrem-se portas e janelas para que exista um quarto; A utilidade do quarto encontra-se no seu nada. Tudo o que existe é para ser possuído, e o que não existe para ser útil.”
[Aforismo 11]
Podemos entender muito bem aquilo que diz o aforismo no início, porque fala de algo visível e constatável, mas quando chegamos à sua última estrofe algo parece contraditório. Para o Taoísmo o ser humano tem importância quando cumpre a sua função e não quando faz aquilo que lhe apetece, de acordo com os seus desejos e interesses materialistas. Ou seja, o ser humano torna-se verdadeiramente útil quando se torna vazio destes últimos e se deixa possuir pela sua dimensão mais profunda que, de acordo com o entendimento do ego, mais se parece com um vazio, mas que na realidade é a plenitude da vida. Assim, o que mais importante existe no ser humano é o seu vazio interior, onde está a sua essência, onde o seu sentido de vida é feito claro e que sem este ele seria apenas uma coisa sem utilidade e sem razão de existência.Carlos Ramos
Imagem de destaque: Os sete sábios da floresta de bambu. Creative Commons