Deixo-vos nestas linhas um sonho, antigo. Escutei-o da boca de alguns, sonhei-o em dias e noites de paz e de guerra, de encontro e de perdição ‒ sonho-o. 

Não vos sei dizer quais foram as mãos que me embalaram. Terão sido as mãos de Hipnos? Terão sido as mãos de Apolo? Terão sido as mãos de um mortal? Talvez não sejam estas as questões que mais importam, embora possam ser as que satisfaçam as mentes de muitos, esses que anseiam em querer conhecer e comprovar a natureza dos Criadores e a natureza das formas que os mesmos idealizam, relegando a da voz íntima da vivência dos homens que usam a forma, que a dominam e que a descartam no progresso da vida. 

A alma intuirá sempre a verdade e o esforço será sempre o de despertar essa condição em todas as vidas que ela manifestar neste mundo. Esse é um acto justo, mais do que é cobri-la com as jóias de vidro do conhecimento. 

Quero dar lugar à voz e nesse sentido que possam valer de algo os momentos seguintes. 

 

Primeiro Momento 

Estava tudo negro e sombrio, a minha vista estava possuída pelas trevas. Um ar tíbio, húmido e fétido sufocava-me. Algo viscoso e peçonhento arrastava-se pelo meu corpo. Mordia-me as carnes, esforçando-se por dilacerar-me e eu sentia nos seus dentes a raiva do querer deleitar-se com o doce sabor da vítima. O peso do seu corpo mole e informe pressionava-me, queria-me paralisar. 

‒ Afasta-te criatura repugnante! – Ordenei. 

‒ AHAHAH! – A criatura deu uma gargalhada golfejante como se as suas entranhas fossem feitas da sua nojenta escuma. 

‒ Afastar-me? Mas foste tu que me invocaste. – Respondeu-me. 

‒ Mentes, eu não te invoquei, nem te invoco. Eu esconjuro-te reles aberração. 

‒ AHAHAH! Não foste tu que me invocaste mas sim o teu outro, aquele que te envolve, o animal que tomaste como morada. 

‒ Foram os seus gemidos de luxuria que pronunciaram o meu nome. 

‒ Foi o seu riso mesquinho e egoísta que me despertou. 

‒ Foi a sua raiva que me animou. 

‒ Foi a sua gula que me alimentou. 

‒ Foi o seu medo e cobardia que me acariciou. 

‒ Afasta-te larva pois este é o Reino de Deus. Esconjuro-te vampira dos inocentes. Nada pode a tua vontade contra a minha. Desaparece. – E a larva desapareceu. 

 

Segundo Momento 

Abro os meus olhos, vejo. 

Envolve-me agora um ar puro, sinto-o. Inspiro profundamente, como a primeira inspiração dada na iminência do sufoco. 

Estou erguido, com a efémera espuma do mar a desvanecer-se ao beijar os meus pés, encontro-me aqui, presente, na orla do mar, no perímetro da vida, olhando o horizonte como quem se acerca de um abismo. Aqui o belo terror do incomensurável abraça-me serenamente, possui-me o silêncio, esse silêncio que sucede a morte, esse mesmo silêncio que antecede o nascimento. Ao longe o ponto ‒ o sanctum sanctorum, a fonte da vida. 

Eis-me aqui a vê-lo sem o ver, a imaginá-lo sem imagem, a amá-lo como uma criança ama o espaço que a rodeia predisposta a deixar-se impressionar por tudo. Eis-me aqui, preso por detrás dos olhos que aprendi a dizer que são meus, preso num corpo de barro, filho da terra abaixo e atrás de mim, filho do céu e das estrelas. Eis-me aqui, Erguido, órfão e irmão. 

Sou um respiro, o momento presente, o infinitésimo instante de tempo do aqui e do agora, diante do tempo sem tempo. 

Desde aqui ao além, entre o mortal e o imortal, entre a terra e o lugar onde o sol beija o horizonte, está este profundo mar: o mar do mistério, o mar da ilusão, o mar da minha ignorância, e na minha mão esquerda agarro três tábuas. 

‒ Quem navega neste mar? – Pergunto-me. 

‒ É o Rei-pescador. – Sussurrou uma voz ancestral. Uma brisa de olhar azul, conhecida doutras vidas mas perdida nestas praias. 

‒ Quem é esse Rei? – Vejo homens que como eu aqui se encontram neste limite, perfilados, erguidos, como cristais de sal na iminência de serem dissolvidos por este oceano que contêm o travo salgado de muitos. Vejo irmãos à direita, vejo irmãos à esquerda, vejo irmãos atrás de mim, vejo irmãos à minha frente mas não vejo coroas nas suas cabeças. 

Lanço os meus olhos sobre o mar, perco-me nesse mistério, procuro esse Rei, esse Rei-pescador. Onde está? Não o vejo, mas uma melodia vai chegando até mim. 

Com um machado cortei três tábuas. 

Com três tábuas fiz um fogo. 

Nesse fogo me imolei. 

Negro, branco, vermelho fiquei 

E em três raios de luz embarquei. 

Com um machado cortei três tábuas. 

Com três tábuas fiz um fogo. 

Nesse fogo me imolei. 

Negro, branco, vermelho fiquei 

E em três raios de luz embarquei. 

‒ É ele, é o Rei-pescador. 

Diante de sua alteza nesse momento me ajoelhei. 

‒ Sua majestade como poderei navegar nesse mar? – Perguntei. 

‒ Pobre Homem que tábuas tens tu na mão? Eu respondo-te, tens as tábuas da tua perdição, ainda que seja através delas que alcançarás a redenção.

‒ Sabes que nomes lhe dão? Inércia, equilíbrio e paixão. 

‒ Olha, atrás de ti, para aquele pinhal, ali. Cada pinheiro é uma das tuas vidas que terás de aprender a machadar, não com qualquer machado mas com o machado do coração. De cada uma correrão gotas de resina, a essência da experiência, e dessa resina farás três tábuas e essas sim arderão. Se assim não o fizeres, essas tábuas que tens na mão apenas serão a madeira do teu caixão que te fará nascer tantas vidas que se esquecerão. 

‒ E que nome tem a tua barca? 

‒ A luz que remove a escuridão. São as três tábuas que despertam da ilusão: a Sabedoria, O que Sabe e o outro do qual se sabe. 

‒ O que pescas? 

  • Pesco aquilo que este mar não dissolve, pesco aqueles, os das tábuas de fogo. Pesco o homem que ama as verdades, pesco o homem que fixou os olhos no horizonte e que com os braços erguidos se esforça por agarrar as estrelas. 

E assim zarpou por esse mar, cantando. 

Com um machado cortei três tábuas. 

Com três tábuas fiz um fogo. 

Nesse fogo me imolei. 

Negro, branco, vermelho fiquei 

E em três raios de luz embarquei. 

 

Terceiro Momento 

Olhei então as estrelas, mil olhos de fogo na abóbada celeste. 

Desejei-as, chorei por querer voar para lá chegar, ergui os braços ao céu e neste esforço suei e no areal gotas de sangue derramei. 

Uma das estrelas apiedou-se dos Homens, vi-a descer sobre a Terra. Aproximou-se, altivamente planando, envolta num manto de luz tal como uma Rainha envolta no seu manto real, um manto que eram asas ‒ asas de glória. Agitando-as fazia chegar a nós o seu mágico calor. Um calor que não era sentido na pele mas no coração. 

‒ Como te chamas, fogo alado? Que classe de Arcanjo és tu? Tu que aqueces e fazes mover o sangue dos Homens que aqui estão à beira-mar? 

Sou Águia para quem me ignora. Sou estrela para quem me vê. Sou ideal para quem me vive. – Respondeu-me numa espécie de canto. 

‒ Que magia é a tua, pois sinto nas veias a coragem, na vontade a vontade dos heróis? 

‒ A minha magia é a Vida. – Respondeu. 

‒ Estou vivo! – Gritei. 

Do seu manto desprenderam-se três penas que pousaram no meu coração. 

A Primeira tem por nome Inteligência sobre o caminho e fez nascer na minha mão direita um cabo. 

A Segunda tem por nome Vontade sobre o caminho e fez nascer sobre o cabo uma lâmina de duplo gume. 

A Terceira tem por nome Amor ao longo do caminho e soldou a lâmina ao cabo. 

E eis que na minha mão direita surgiu uma arma mágica, o machado que revela as essências da vida, essas que permitem construir a barca da salvação. 

O galo cantou, 

o Sol raiou 

e o Homem acordou.