“Os vossos corações sabem, em silêncio, os segredos dos dias e das noites.”
Khalil Gibran

O sentido heróico da vida é um tema que se pode encarar de muitas maneiras, e devem existir milhares de livros escritos sobre este assunto, sobre o herói, sobre os mitos heroicos. Há muitas formas de encarar este assunto, mas nós vamos fazê-lo desde um ponto de vista filosófico: cada um dirige os seus assuntos quotidianos com o que tem à mão. Nós o que temos é a filosofia, pelo que vamos falar deste tema tão atemporal, desde um ponto de vista filosófico.

Antes de mais quero esclarecer que a nossa filosofia não é académica, nem pretende concorrer com a filosofia que se ensina nas universidades. Eles sabem muitas coisas que nós desconhecemos, há uma bagagem imensa de conhecimentos detrás deles. Para nós, a filosofia é algo muito mais próximo, é uma filosofia nascida na rua, uma filosofia cidadã; foi pensada, desenvolvida e fomentada, tendo em consideração o ser humano e as suas necessidades. É uma filosofia que tratamos que seja prática, que não fique num nível teórico, muitas vezes inalcançável para os que não têm um coeficiente intelectual elevado. Antes pelo contrário, o que queremos é que seja uma filosofia para todo o mundo, uma filosofia para o ser humano, para o cidadão, que ajude a desenvolver-nos, que ajude à nossa convivência, e que nos ajude a seguir avançando neste longo caminho que chamamos civilizatório, ou seja, que a civilização vá sendo uma realidade para os seres humanos.

Para nós, a filosofia está ao alcance de todas as pessoas. Porque gostamos de definir a filosofia no seu sentido original. Gostamos de falar de filosofia como de uma procura, de um querer saber, de um querer investigar, exercer um questionamento contínuo. O nosso modelo de filósofo ocidental seria Sócrates, precisamente porque foi isso mesmo, um homem da rua. Um homem que não estava alheio aos problemas com que nos encontramos todos os dias. Um homem que conhecia os seus vizinhos, que tinha tempo para dialogar com eles, que gostava de fazer muitas perguntas. Certamente perguntas um bocado incómodas para alguns dos seus concidadãos, porque no final da sua vida teve, como todos já sabemos, que tomar a cicuta. Um facto que o seu carcereiro não conseguia perceber, pois considerava Sócrates um homem bom.

A Morte de Sócrates, autoria de Jacques-Louis David, em 1787, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA. Dominio Púlico

Sócrates o que queria realmente era saber, buscava com toda a sua energia saber. E para nós, isto é filosofia, é a procura do saber. Sempre nos habituamos a dizer que o saber é algo muito difícil de conseguir, por isso não falamos de “sophos”, que é o sábio, mas antes falamos de filósofos, ou seja, os que buscam esse saber que enriquece o ser humano. Como já dissemos que o importante para um filósofo é perguntar-se, vamos começar com uma pergunta. Já que colocámos como título o sentido heroico da vida, vamos perguntar-nos, em primeiro lugar: “O que é a vida?” Se temos de falar do sentido heroico da vida, temos de começar por nos perguntar o que é a vida.

Também poderíamos escrever muitos livros sobre esta questão, mas não é necessário, porque a resposta é muito simples: não o sabemos. Ninguém o sabe, mesmo que se tenham escrito muitos livros sobre este tema: tratados científicos, filosóficos e de toda classe. Mas estes falam das características da vida, não exatamente do que é a vida.

Aos filósofos não nos importa confessar a nossa ignorância, não temos nenhum problema. É bom para o ser humano reconhecer aquilo que não sabe. E nós reconhecemos que não sabemos o que é a vida, e não o sabemos porque evidentemente não a podemos manusear, ninguém pode alongar a vida, ninguém a pode parar, ninguém pode fazer que recue a vida a etapas anteriores, ninguém pode ligar ou iniciar a vida. Inclusive quando, aparentemente, a vida parou, como sucede com aqueles seres humanos que por desgraça entram num estado de coma, a vida continua, a pessoa segue o seu processo de envelhecimento, segue completando anos e, finalmente, a vida também os leva. Não se pode parar, não se pode deter. Não podemos insuflar vida quando desaparece de algum ser da natureza.

O que tem a vida são características. Uma delas, talvez a principal, é o movimento. A vida move-se e nisto concordamos todos: científicos, filósofos, místicos, poetas, os homens comuns, os que ocupam lugares de responsabilidade nas universidades, nos estados. Todos concordamos: a principal característica da vida é o movimento. Os filósofos do oriente e do ocidente dizem que o movimento da vida se chama evolução e que aí estão implicados todos os seres, não só os seres humanos, mas todos os seres que participam da vida. Tudo aquilo que se move não só está vivo, está em evolução de maneira irremediável.

Quem fez isto tudo? Quem criou a vida? Quem desenvolveu a evolução? Voltamos ao mesmo, poderíamos escrever milhares de livros, mas a resposta é sempre a mesma: não o sabemos, ninguém o sabe. Não sabemos quem criou a vida, quem fabricou a evolução.

Quero salientar que o Universo está composto, segundo os científicos, de milhares de milhões de galáxias, cada galáxia tem milhares de milhões de sois maiores e mais pequenos que o nosso, cada um dos quais com os seus correspondentes planetas. Quem o criou? Não o sabemos. Alguns dizem que Deus, mas, quem ou o quê é Deus? Não o sabemos. Não sabemos nem que significa essa palavra. Na antiga língua suméria, tal como foi decifrado, Deus significa: “o de cima”. Inclusive, em algumas das religiões modernas apenas se fala de Deus, como no cristianismo se fala de Cristo, porque Deus é um conceito muito mais abstrato, muito mais longínquo. Há poucas representações de Deus nas igrejas cristãs, penso que unicamente há uma na Capela Sistina. Habitualmente está representada a imagem do chamado Jesus, o Cristo, mas não é Deus, Deus estaria por cima. Se falamos dos muçulmanos, Alá tem 99 nomes diferentes, e na religião hebraica está proibido falar de Deus e inclusive de pronunciar o seu nome.

A Criação de Adão, autoria de Michelangelo, Capela Sistina, Vaticano. Public Domain

Em conclusão, vamos encontrar-nos sempre com este mistério. E isto é algo que também temos de ter em conta. O mistério, gostemos ou não, rodeia-nos, o mistério envolve-nos, e não podemos chegar a saber tudo, mesmo que estudássemos 24 horas por dia, todos os dias da nossa vida. Tudo, tudo, não o poderemos saber nunca, porque há coisas que são misteriosas, há coisas que não sabemos e que dificilmente conseguiremos saber algum dia.

Segundo o conceito filosófico, esse Princípio criador, ordenador, modelador, inspirador da vida, chamemo-lo com o chamemos, esse princípio é algo que está ao alcance de todos os seres humanos. É um tema muito interessante, porque mesmo que a filosofia nos ensine que há coisas muito difíceis de chegar a saber, que neste momento podem ser inalcançáveis, é muito possível que os seres humanos não possam chegar a conhecer o que é Deus, mas segundo a sua maneira de encarar a vida, podem ir aproximando-se desse Mistério, podem ir aproximando-se a essa Origem, que, segundo os místicos, sábios e mestres, pensou e montou a vida.

É certo que outros dizem que foi coisa do azar, a sorte, o acaso… mas é preciso ter muita fé para crer nessa afirmação. A fé que nega a uns é colocada a outros. No final tudo é uma questão de fé. Nós somos filósofos, pelo que iremos perguntar-nos e indagar por respostas. Porque se usamos a lei da analogia, agora teremos de pensar e entender que o ser humano está dentro da vida, o ser humano também se move, porque dissemos que a principal característica da vida é o movimento. De facto, quando queremos comprovar se algo está vivo ou morto, tocamo-lo para ver se se move ou não. Inclusive nos hospitais, mesmo hoje em dia apesar de tanta tecnologia, fazem a prova do espelho e da respiração para saber se nesse corpo ainda há movimento ou não, para certificar a defunção. Ou seja, podemos deduzir que o ser humano, que está dentro da vida, também se move, também evoluciona. A questão agora seria: Para onde se dirige o ser humano? Qual a sua direção? Os filósofos antigos, e alguns modernos, tanto do oriente como do ocidente, coincidem em afirmar que o ser humano, através da evolução da sua vida, vai-se aproximando de um estado que chamam heroico. Ou seja, alcançar o estado heróico está dentro da evolução da vida e do movimento natural da pessoa.

Dizem que é algo que todos os seres humanos podem alcançar, esse estado de consciência heróica, ou seja, esse protótipo que todos já conhecemos como “o herói”, que de alguma maneira está dentro da nossa consciência, na nossa vida, às vezes desde os primeiros anos de existência. Quando os da minha geração éramos pequenos, ao que é que brincávamos? Os meninos aos índios e cowboys e as meninas a cuidar de alguém, porque isso está dentro do caminho heróico, como mais à frente iremos ver, ou seja, cuidar de alguém, preocupar-se, atendê-lo e velar por ele. Tudo isto de maneira natural aparece na infância. Por isso gostamos de ouvir os contos heroicos de dragões e princesas, em que os príncipes ou cavaleiros vão ao resgate da dama cativa, vencendo o mal. Em todos os contos sempre há a figura do lobo e a do chapeuzinho vermelho. São contos de toda a vida, que precisamente estão a refletir esse protótipo de herói que todos levamos dentro de alguma maneira. Depois crescemos, mas esta atração pelo heroico não a abandonamos. Já na adolescência começamos a ver filmes ou a ler novelas de aventuras. O que muda é o protótipo, agora somos motivados por outras coisas. Mas, que tipo de novelas lemos? Que filmes são os que vemos? Precisamente esse tipo de filmes. Na adolescência temos os nossos ídolos, que normalmente são os cantores da moda, e às vezes até nos vestimos como eles. Esses heróis que estão no palco com letras que nos tocam a alma, talvez a música seja horrível, mas dizemos: “Já reparaste no que está a dizer”? Ou os atores e atrizes do momento que as pessoas tomam como heróis e heroínas.

Ilustração da história do Capuchinho vermelho, The Fairy Book, autoria de Dinah Maria Craik, 1913, Macmillan & Co., London. Pixabay

E vai passando o tempo, e quando já não podemos praticar desporto, os nossos heróis são os desportistas que conseguem aquilo que nós nunca conseguimos. Se há algum desportista que está acima da média e marca um golo histórico, há milhões de seres humanos que dizem “Lembras-te quando marcamos o golo?” Certamente que quem marcou o golo foi uma só pessoa, mas todo o mundo faz seus os êxitos dos outros, porque temos esse sentido heroico gravado a fogo.

Uma pessoa pisou a Lua, deixou uma pegada para que fosse fotografada. Mas nós fizemos da sua façanha nossa e dizemos: “Fomos à Lua”. Como fomos à lua? Uma pessoa foi à lua, bem, foram mais, mas só uns poucos a pisaram. A filosofia ensina-nos que podemos aproximar-nos desse estado heroico. Como o podemos fazer? Permitam-me que faça uma pequena, breve e rápida indagação acerca da natureza humana, desde o ponto de vista filosófico, e desde o ponto de vista de que estamos feitos à imagem e semelhança das leis que existem na natureza.

Estes filósofos, que são a nossa referência, irão dizer-nos que o ser humano está formado por uma série de veículos de expressão. Por exemplo, segundo eles, temos o corpo físico em comum com os minerais. O reino mineral também tem um corpo físico. É evidente que não tem exatamente a mesma forma, mas no fundo, estamos compostos com o mesmo tipo de matéria, o mesmo tipo de átomos, o mesmo tipo de moléculas.

Depois apareceriam os vegetais, esses têm vitalidade e movimento. Também os seres humanos temos uma parte em nós que refletiria esse veículo vital do movimento, como digo, em comum com os vegetais.

Temos emoções, paixões, desejos, sentimentos, da mesma forma que os animais. Eles não possuem uma gama tão aperfeiçoada como a do ser humano, mas ao seu nível, podem sentir, podem querer, podem odiar, podem ter medo, podem ser valentes. Têm todo um veículo emocional que se está manifestando.

E além de tudo isso, temos a nossa mente, que é a que nos permite estar a falar e ouvir. É esta mente a que nos permite comunicar e entendermo-nos. Segundo os alquimistas, estes veículos de expressão estão relacionados com o elemento Terra, o elemento Água, o elemento Ar e o elemento Fogo, e a forma de ir alcançando o estado heroico, é ir desenvolvendo e dominando os quatro veículos, esses quatro elementos. Este é o significado do velho simbolismo de São Jorge e o Dragão, que vos recordo que é o padroeiro da cavalaria. São Jorge simboliza o ser humano que pode vencer o dragão, que representa os quatro elementos de que estivemos a falar.

Por um lado, a terra, porque o dragão se arrasta, é um reptil, mas também pode nadar, por isso tem uma cauda que lhe permite navegar entre as águas. Esse dragão tem asas, com o qual temos também aí representado o elemento ar, o dragão pode voar. Já só falta o que todos estamos pensando. “É um dragão que cospe fogo pela boca”. Porque também o elemento fogo está aí representado. São Jorge é o protótipo de aquele ser humano que é capaz de lutar, vencer e dominar o dragão, ou seja, esses quatro elementos que formam parte da personalidade de todo ser humano.

São Jorge e o Dragão, autoria de Gustave Moreau, National Gallery, London 1889/90. Public Domain

Como podemos dominar a nossa personalidade? Brevemente podemos ter uma pista, já que dissemos que a nossa filosofia trata de ser prática e não só teórica. Quando falamos do corpo étero-físico, o que nos aproximaria desse estado heroico seria o saber resistir. No mundo mineral, o mundo físico, a sua maior força está na resistência, mas não é uma resistência cega, tem de se saber resistir.

Como o poderíamos interpretar? Teríamos de aprender a não nos queixarmos, pelo menos a não queixarmo-nos do que não merece a pena. Às vezes, é uma expressão natural poder gritar de dor, mas eu refiro-me a não nos queixarmos quando não é necessário nenhuma queixa. Não nos queixarmos é sinónimo de aprender a viver em silêncio e isto é muito bom para, não só resistir, mas saber resistir. Temos de saber utilizar o silêncio, há que saber viver dentro do silêncio. E, obviamente, tem de ser uma resistência ativa, não passiva. A melhor forma de resistir é estar sempre procurando a solução que faça falta. Não estar passivamente à espera que aconteça alguma coisa que solucione o problema. Normalmente quando estamos nessa situação, o único que passa é o tempo.

Se queremos vencer esse primeiro plano temos de saber resistir, sem nos queixarmos. Pensemos por um instante que quando nos estamos a queixar estamos a chamar a má sorte, o infortúnio. A má sorte não sabe onde ir, mas quando vê alguém que se queixa diz: “vou até ali, porque este me está a chamar”. Se todos estivéssemos em silêncio e ninguém se queixasse, o infortúnio, a má sorte, não saberia onde acudir. Mas quando alguém se queixa muito, está a chamar a derrota, está a chamar o fracasso, está a chamar a impotência.

Depois falamos do elemento água, o corpo vital, energético. A sua maior virtude é a ação, poder-se mover, o movimento. Para dominar este plano tem de se saber atuar. O que é que seria saber atuar? Se voltamos a vista para os filósofos antigos, volto a insistir, do oriente e ocidente, todos irão dizer que saber atuar é atuar de acordo com a natureza e não contra ela, e não falo agora da natureza física. Estou a falar da natureza em todos os âmbitos, porque também há uma natureza mental e uma natureza emocional, como dizíamos. E essa natureza tem as suas leis, por exemplo: ajudar a quem mais precisa, isso é uma lei da natureza, e abrange todo o ser humano. Ajudar aquele que realmente precisa ser ajudado. Isso é uma lei. Se não a cumprimos, ou a cumprimos mal, ou mantemo-nos na queixa, como dizíamos antes, estamos a ir contra a lei natural para os seres humanos, e significa que não sabemos atuar.

Então, temos de atuar de acordo com a natureza intrínseca das coisas, ou seja, dos seres humanos, sem esperar nada em troca pelo que estamos a fazer. Não ajudamos uma anciã a atravessar a rua para parecermos interessantes ou boas pessoas e deste modo chamar a atenção da rapariga que queremos se interesse por nós. Não devemos fazê-lo por isso, não podemos fazê-lo por isso. Não podemos ajudar os seres humanos “para inglês ver”, porque queremos ficar bem ou dar uma boa imagem de nós mesmos, porque no fundo não o fazemos de coração, ou não queremos fazê-lo realmente.

Como diriam os velhos filósofos, temos de saber atuar de acordo com a reta ação. Isto é o mais parecido ao verdadeiro voluntariado, ou seja, quando se coloca em andamento a vontade e a liberdade, isso é voluntariado. Tem de ter estes dois ingredientes. Temos de fazer as coisas porque queremos e também porque nos custa um pouco. Precisamos da vontade para iniciar o movimento.

Isto é o que mais faz avançar os seres humanos no caminho heróico da vida. Aquelas coisas que fazermos de maneira livre, porque as queremos fazer, e aquelas coisas nas quais colocamos a energia mais pura que tem o ser humano, a sua vontade, o querer fazê-lo de verdade.

O voluntariado é algo que fomentamos muito no Centro Cultural Castalia. Tudo é feito por voluntários. Quando se realiza um ato público, alguém está encarregue de arranjar o espaço do evento, de o limpar, de colocar as cadeiras. Isso é um ato voluntário, isso é saber atuar. Aqueles que dão aulas no Centro, nos diferentes setores e ramos da cultura, da arte e da filosofia, fazem-no de maneira voluntária. Porque cremos que isso é algo que nos ajuda a transitar pelo caminho da vida, que está dentro do que estamos a falar “o sentido heróico da vida”.

Quando falamos do elemento ar, e consequentemente do veículo emocional, referimo-nos a que temos a capacidade de amar, de gostar, e essa é a principal virtude ou força deste elemento. Mas filosoficamente adicionamos: saber querer. Não querer qualquer coisa, nem querer de qualquer maneira. Se queremos começar a dominar o nosso mundo emocional, temos de saber querer. “Onde vou depositar o meu amor que tanto vale? O que é que quero desta vida? O que é que quero conseguir? Onde quero chegar? Como quero lá chegar?” Porque às vezes temos claro onde queremos ir, mas talvez não gostemos do caminho que conduz a esse lugar. Há muita gente que gostaria de ser médico, mas é preciso estudar seis ou sete anos, e existem práticas, cheirar o sangue, tocar os ossos, examinar os órgãos internos. Talvez não gostemos tanto disso. E quando falamos dos seres humanos, é muito importante saber querer aos seres humanos, querê-los como eles são, não os querer à nossa imagem e semelhança, que é o que de maneira consciente ou inconsciente todos tentamos fazer. Queremos que se comportem como nós supomos que deveriam comportar-se. Queremos que falem como a nós nos parece bem e gostamos. Queremos que o nosso filho estude para dentista porque temos dores de dentes. Quando queremos mudar os outros para os formatar aos nossos gostos, estamos a pensar em nós mesmos, não estamos a pensar nos outros. Isso não é saber querer.

Saber querer é olhar para o que de bom têm os outros, no melhor que têm os outros. Porque o pior que têm, é o mesmo que temos nós, por isso damo-nos conta e não gostamos, porque vemos nos outros o que somos capazes de ver em nós mesmos. O mau que vemos nos outros é o que também temos nós mesmos que trabalhar. O que temos de aprender é a olhar o bom, o elevado dos outros seres humanos, porque todos têm algo de bom que podemos aprender. E isso sim é ouro sobre azul. Porque todo o que de bom temos foi uma conquista pessoal, foi um merecimento próprio. Sim, já sei que podemos pensar, “eu nasci com isto”. É uma possibilidade, mas outra possibilidade, se aceitarmos os filósofos de outros tempos, é que a pessoa conquistou essa qualidade de alguma maneira, teve de trabalhar essa qualidade nalgum momento do seu percurso vital.

Ficaria agora em falta o veículo mental, a parte do fogo. O que é que podemos fazer para dominar esse veículo? Onde está a sua força? A sua força está no saber, concretamente em querer saber.

O Bhagavad Gîta. Pxfuel

Um livro muito antigo da India, o Bhagavad Gîta, explica que há dois tipos de seres humanos que estão longe de poder chegar a saber: o incrédulo e o ignorante.

O incrédulo, porque é aquele que não quer saber. Quando lhe contamos qualquer coisa, ele responde-nos: “não acredito”, o que nos está a dizer é, “não quero saber”. É como se eu vos dissesse “detrás destas cortinas há um barco”. Se tivéssemos a atitude de “Não acredito”, nunca o poderíamos saber, porque na realidade não queremos saber. Porque podemos fazer algo muito simples e fácil, podemos avançar até às cortinas, afastá-las e saberemos se existe uma barca ou não. Não é uma questão de querer ou não querer. O incrédulo é um dos que estão mais afastados do conhecimento.

O segundo é o ignorante. Mas, quem é este de acordo com o Bhagavad Gîta? É o que acredita que já sabe. Esse é o mais ignorante de todos. Porque o que acredita que sabe, o que é que vai aprender se já sabe tudo? O que é que vamos ensinar aquele que já sabe tudo? O que já está cheio de água não tem sede, aí não cabe mais nada.

É por isso que gostamos tanto de Sócrates, porque não somente era filósofo do povo, também era aquele que dizia que não sabia nada, que o único que sabia é que não sabia nada. O oráculo de Delfos disse, num dado momento, que era o homem mais sábio do seu tempo. E Sócrates exclamou ao saber, “Eu? Mas eu não sei nada!”.

Bom, como se pode observar, estamos relacionando saber e poder continuamente. Estamos relacionando a palavra saber com a palavra poder, porque para poder dominar essas partes que estão dentro de cada ser humano temos de saber: saber resistir (físico), saber atuar (energético), saber querer (emocional) e querer saber (mental). O caminho heróico está fundamentado numa dualidade interna e externa, saber e poder. Se não sabemos dentro, se interiormente o ser humano não vai tecendo algumas certezas e não vai adquirindo algumas seguranças na sua vida, não poderá atuar fora. Não vai poder dirigir a sua vida, controlar as suas circunstâncias. Por isso é que saber é poder, porque o interno se reflete no externo.

Não é por casualidade, que a arma favorita utilizada por todos os heróis da antiguidade, é o machado. O machado de duplo gume, que está gravado nas grutas pré-históricas, está gravado nos velhos dólmenes, nos antigos menires, em pedras eternas reverenciadas pelos humanos. Estes machados simbolizam o saber e o poder. Um gume corta para dentro, corta a nossa ignorância, corta as nossas debilidades, elimina aquilo que nos sobra e que nos impede de ver as coisas como realmente são. O outro gume corta para fora. Porque não há nenhum ser humano que queira transitar pelo caminho do herói, e não queira melhorar o mundo em que vive. Ou seja, o mundo tem de se beneficiar de que existam seres humanos que vão avançando, evolucionando, aproximando-se desse estado heroico, como já explicamos. O herói não fica escondido na sua casa. O herói está no mundo, e aquilo que sabe e pode, tem de ser utilizado em benefício do resto dos seres humanos. O herói de todos os tempos, atemporal, o de sempre, tem de deixar a sua marca no mundo, e tem de saber deixar essa marca. Não pode deixar o mundo igualmente mal, obscuro, sujo como o encontrou. Não o pode fazer, se pretende avançar nesse caminho que estamos a falar.

Como podemos saber que estamos no caminho heroico? No início, dissemos que esse é o movimento natural da vida para os seres humanos, que está dentro da evolução e que, queiramos ou não, a vida é como se nos fosse aproximando desse estado heroico. A vida faz com que superemos uma série de coisas de que já falámos. Tudo o que nos sucede, serve para irmos superando debilidades, medos, para irmos obtendo controlo e domínio sobre os diferentes elementos que conformam o ser humano. A vida leva-nos até aí. Como podemos nós saber que estamos no bom caminho? O herói tem uma visão diferente da vida. E se nós, pouco a pouco, vamos vendo que nos vamos aproximando dessa visão da vida, então talvez esse seja um bom sinal de que estamos a percorrer o caminho correto, o caminho heroico. O que para os outros são problemas na vida, para aqueles que desenvolveram o estado heroico, são provas.

Para que é que existem os problemas? Para nos chatear, para fazer a nossa vida miserável, para que não sejamos felizes, para despedaçar os nossos planos. Mas, para os que têm uma visão heróica da vida, os obstáculos, os entraves, são provas, desafios a superar. Esta é a grande diferença: os problemas resolvem-se, mas as provas superam-se. Aquilo que formos capazes de superar, já o deixamos atrás. Possivelmente nunca mais se apresente porque já está superado.

Então, essa visão da vida aproxima-nos desse estado heróico e faz-nos perceber que todo problema ou toda prova tem uma energia, e se uma pessoa é capaz de sair vitoriosa desse “enfrentamento” vai-se tornando cada vez mais poderosa e mais sábia, porque a força do problema que superou agora faz parte dela.

Também poderíamos perguntar-nos agora: Bom, mas isto tem algum benefício? Qual o propósito de tentar levar o caminho heroico na vida? Conseguimos ter algum benefício? Parece que sim. Vou utilizar os ensinamentos de grandes filósofos.

Um dos benefícios é a consciência de imortalidade. Parece que todo ser humano, ao percorrer determinado caminho e de determinada maneira (isto é importante), pode chegar a adquirir consciência de imortalidade. Mas, o que é isso? A consciência de imortalidade é ter consciência da unidade de todas as coisas, é saber atravessar as diferentes barreiras aparentes da vida e da morte.

Os heróis adquirem esse conhecimento e são capazes de passar essas barreiras. Conseguimos ver isto refletido no mito mais famoso de Oriente, na epopeia de Gilgamesh, o homem que buscava a imortalidade. E também o vamos encontrar no mais famoso herói de ocidente, em Héracles. Através dos seus trabalhos, das suas provas, Héracles – que tem uma parte humana e uma parte divina, porque é filho de um Deus e de uma mortal – é admitido no Olimpo, na residência dos Deuses, ou seja, converte-se em Imortal.

Estátua de Héracles, São Petersburgo, Rússia. Pixabay

Estão-nos a falar de adquirir determinada consciência, estão-nos a falar de poder vencer o tempo. Porque vencer a morte é ter consciência da Vida: vida deste lado, vida do outro lado, vida antes, vida agora, vida depois, vida por todos os lados. Ter consciência disso não é só vencer a morte, também é vencer o tempo. Não é curioso que na antiguidade representem quase de igual modo a morte e o tempo? A morte é essa velha com a sua gadanha, que mais cedo ou mais tarde, tudo corta e tudo leva. E, não faz o mesmo o tempo? O tempo antes ou depois tudo leva consigo, e também é representado como um velho que se arrasta, que se move lenta, mas inexoravelmente. Mas os heróis podem vencer o tempo.

E outro benefício que produz ter essa consciência heróica, é a Glória. Também agora temos de falar de algo que não sabemos muito bem o que é. Conhecem-no os que alcançaram um estado glorioso. Mas o que podemos dizer, como forma de enquadrar o assunto, é que a glória não é a graça. A glória é algo que se conquista, é algo a que se pode chegar, é algo que está nesse caminho heróico da vida, mas não ao princípio, está mais para o final, quando já caminhámos um bom bocado nesse caminho.

Então, de acordo com o que nos dizem, a glória pode conquistar-se, e uma vez conquistada, é uma espécie de êxtase contínuo. É uma espécie de consciência de que tenho forças para superar o que a vida me dê, tenho forças, tenho inteligência, de que vou conseguir superar tudo o que a vida me coloque na minha frente. E mesmo no meio dos grandes sofrimentos, aqueles que foram capazes de conhecer, de alcançar a glória, mesmo que por um breve instante, começam a despertar uma série de forças neles, uma serie de poderes, que nem sequer suspeitavam que tinham.

Estamos a falar de estados de consciência difíceis de entender para nós próprios, porque ainda estamos no terreno dos problemas e não das provas. Ainda temos um estado de consciência, possivelmente um pouco baixo, em relação àquele que despertou a sua vocação heróica. Mas como referência poderemos ter essa consciência de imortalidade, essa consciência de saber o que é a glória, e o mais importante, todos os seres humanos têm a capacidade e o direito de poder alcançá-la. Como dizia o professor Livraga “Todo ser humano tem direito a um pedaço de pão, mas também todos temos direito a um pedaço de glória”. Com uma diferença muito importante, o pedaço de pão vai durar o que tardemos a fazer a digestão, enquanto que o pedaço de glória, se o alcançarmos, vai durar para sempre. Será uma lembrança para toda a vida, permanecerá gravada a fogo em nós mesmos, porque é um estado de consciência tão elevado, que é próprio dos heróis, de aqueles seres humanos com vocação heroica.

A Vitória. Pxfuel

Sabemos que às vezes nos fizeram crer que o ser humano só tem direito ao pedaço de pão. E isto derramou muito sangue no passado. Porque nos fizeram crer que os nossos direitos estão focados principalmente no mundo material e que o que merecemos é possuir coisas, ter muitas coisas, quantas mais melhor. Acreditamos que quanto maior a nossa posse, maior o nosso valor. Mas enganaram-nos vilmente e agora começamos a perceber isso. Quando o pedaço de pão, ou seja, os bens materiais, estão a começar a faltar desde há já alguns anos, começámos a perceber que talvez nos tenham enganado. Alguma vez nos ensinaram que qualquer ser humano pode ser muito melhor do que é, pode ser muito mais forte do que é, pode ser muito mais belo do que é, mais justo, mais nobre? Não, isso nunca nos foi ensinado.

Ensinaram-nos que qualquer ser humano pode chegar a ser um herói na sua vida, que pode transitar por esse caminho? Alguém nos ensinou isso? Não? Então fomos enganados, porque isto é uma realidade, se não fosse assim, nunca poderíamos ter um instinto de eternidade como temos. Todos temos um instinto de eternidade, e por isso buscamos tantas coisas, e seja o que quer que encontremos, acaba por nunca nos satisfazer, porque queremos sempre mais. Queremos algo que seja melhor, com mais qualidade, que responda às nossas expectativas. Esse instinto é da alma, não do corpo, e pertence a uma parte imortal em nós mesmos que também tem aspirações e nos puxa verticalmente. Esse instinto é o que nos faz sair da zona de conforto. E não é porque sejamos caprichosos ou nos cansemos de tudo, não, é porque somos inconformistas e sempre estamos encontrando coisas que se desgastam com o tempo. Sempre estamos à procura, mas o que encontramos acaba por não nos satisfazer. Esse instinto o que quer é que rompamos as nossas barreiras, que caminhemos até às nossas limitações para uma vez ali, frente a elas, tentemos atravessá-las.

Todos temos essa aspiração interna de chegar a não se sabe bem onde, ao mais alto que consigamos, ao mais longe que possamos. É um instinto de eternidade. Todos gostaríamos de encontrar algo que fosse limpo, puro, verdadeiro e que durasse para sempre, que não se rompesse. Não sei se o iremos encontrar, mas não vamos poder evitar andar à sua procura, porque a nossa alma imortal deseja-o ferventemente. Por isso existe o protótipo heroico na vida dos seres humanos. Por isso existem os grandes sonhos, porque o heroico é uma realidade, e eu acredito que a vida não é tão cruel. Se nós somos capazes de ter esse tipo de sonhos, é porque somos capazes de alcançá-los e a vida vai proporcionar-nos as ferramentas necessárias. Temos de saber passar à ação.

Aqueles velhos filósofos do oriente e do ocidente, que nos ensinaram estas coisas, não nos mentiram. Quis mostrar-vos a convicção que tinham estes antigos filósofos de que a vida tem um sentido, de que tudo acontece por alguma razão, pensavam que tudo tem um porquê e um para quê, e que o caminho heróico é uma realidade ao nosso alcance. Não dependemos de ninguém para transitar por esse caminho. E é algo que tem de ser feito voluntariamente, ou seja, com vontade e com liberdade.

Carlos Adelantado
Presidente Internacional da Nova Acrópole
Publicado na Biblioteca Nueva Acrópolis el 14-04-2020