O pensamento egípcio era profundamente religioso. Para aqueles homens, o universo não poderia ser produto do acaso nem uma consequência de simples estados da matéria. Da matéria em si não se poderiam formar as estrelas nem os rios nem nada da natureza e menos ainda os estados de consciência do homem. Era uma concepção deísta da vida. Se encontramos no Egito mostras de uma religiosidade simples e fetichista, também encontramos ali sinais da mais alta metafísica religiosa. Considerar esta religiosidade primitiva, é desconhecer nossa realidade presente, na qual todos os estados possíveis se dão a um mesmo nível e onde o símbolo prevalece desprovido do sentido tradicional.
Sem embargo, poderiam perguntar: porque havia tantas múmias de animais sagrados no Egito? A lista destes animais embalsamados seria imensa, embalsamaram bois, carneiros, gatos, crocodilos, íbis, peixes, falcões, etc.
Nesta base são considerados zoólatras. O egípcio não embalsamava os animais pelos animais em si. Não há aqui zoolatria. Faziam-nas porque assim representavam a manifestação vital de uma forma cósmica, o Neter.
Neter era para o egípcio o princípio divino que se transmitia e justificava as coisas. Os deuses mesmos, o eram, em virtude desse Neter que alentava neles. A validade do existente sustentava-se no Neter, princípio da existência e fonte da eterna criação. Somente a substância alentada e vivificada pelo Neter podia criar. Chamemo-lo Athor, Nhut ou Ísis, sua fecundidade tanto em um mundo físico como metafísico, provém daquele princípio único e indivisível.
Diz o princípio hermético: Assim é em cima como é em baixo, e em baixo como é em cima.
A vida na terra se desenvolve em uma natureza ordenada, e esta ordem não é mais que o resultado de uma ordem cósmica.
Os seus mitos funerários são em essência a lembrança disto, que para aquela cultura era uma realidade não somente para ser pensada, senão também para ser vivida. Como diriam depois os primeiros filósofos gregos, o Cosmos nasce da ordem, ou do Teos no Caos. Quando a inteligência se aplica na substância caótica, criando em vórtice de força, que a vai ordenando, na medida em que se manifestam as leis da natureza.
Duas estátuas idênticas ao próprio Tutankamon foram já encontradas em seu túmulo, montando guarda de cada lado da câmara sepulcral.
![](https://www.revistafenix.pt/wp-content/uploads/2024/12/Imagem2_Guardiao-do-tumulo-de-Tutankamon-JI-FilpoC.-Creative-Commons-169x300.jpeg)
Guardião do túmulo de Tutankamon, JI FilpoC. Creative Commons.
Os egípcios do império antigo expressaram isto em seus mitos. A teogonia de Heliópolis, por exemplo, nos fala do princípio do Universo. Diz que Atum, o autocriado, o existente por si mesmo, ordena o Nun ou Nuu, as águas primordiais, o oceano tenebroso, na qual se desenvolve a natureza toda. Aqui se origina o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Começa a criação e a vida e se diferencia o tempo da eternidade.
A morte não seria mais que o fim de um ciclo da existência, a volta ao estado caótico das origens. Aquele que conseguiu superar as limitações do tempo, realizando a sua própria unidade espiritual que pode participar do mundo celeste, revivificar em si a força de Atum, o Neter, e renascer para a eternidade. Isto é o que representa o ritual funerário.
Desenvolver essa potência celeste no homem, ou como normalmente se dizia osirificar-se, tornar-se como Osíris, a representação dessa potência encarnada. Para o egípcio havia uma natureza material e visível, porém havia também uma natureza espiritual e sagrada. Uma força espiritual, que sem confundir-se com o mundo material, nem diluir-se nele, o alentava e vivificava. Esta natureza superior estava representada por seus deuses e se expressava em obras neste mundo concreto.
Considera-se que o egípcio era homem prático e concreto, e era verdadeiramente, mas entendia que o que existe neste mundo era efeito de uma causa que transcende o fenómeno em si e que em última instância é uma realidade espiritual, a que o homem pode ter acesso.
Não adorava o rio Nilo, nem as suas enchentes periódicas, senão que via manifestado ali, aquele princípio de vida, que ele representava também como um rio.
O nascimento da vegetação era a representação do renascimento da natureza toda. O ciclo da semente, penetrando no seio da terra, permanecendo na obscuridade e no silêncio, para morrer como semente e transformar-se em um ser renovado, era um exemplo da continuidade da vida. Recordava e reproduzia a criação do universo.
O mesmo ocorria com o Sol, que depois de aparecer pela porta do Leste, recorria a abóbada celeste navegando pelo Nilo celeste, para entrar nos submundos infernais pela porta do Oeste e combater com Apófis nos submundos, para surgir renovado no próximo dia. Se a semente é o gérmen da vida, o Sol é o gérmen de luz e de calor.
As alegorias são similares e o princípio sempre Um e o mesmo. Destes símbolos o Egito está repleto. Seu próprio território é um deles. Estava, como ainda está, flanqueado por imensos desertos. O rio Nilo atravessa de Sul a Norte, sem receber já nenhum afluente.
Em suas enchentes anuais vai arrastando limo e deixa duas bandas férteis de terra, ao largo de seu leito, até que antes de desaguar no Mediterrâneo, foi formando um imenso vale parecido a uma letra delta grega. Une o Sul com o Norte e separa o Leste de Oeste. O Nilo é o eixo e o ponto de referência do drama da vida. O Sul é a região da luz, a região do fogo, e o Norte é a região fértil, onde se encontram as águas da vida, o limo com o qual, segundo uma alegoria, Knef formou o homem em seu torno de oleiro, é o eixo que em seu redor se desenvolve todo o movimento. O Leste é o lugar do nascimento, e a margem Leste do Nilo é a que delimita o mundo dos vivos e o mundo da luz. Enquanto o Oeste, o lugar em que o Sol se põe, é o lugar em que as coisas declinam, o mundo dos mortos. A água do Nilo é a água da vida e seu leito é a natureza toda. O egípcio via em sua terra a representação do fenómeno todo da existência.
Egito, o país de Kem, era terra sagrada. Egito era a vida e a vida estava no Egito.
O seu território seria como a base de uma imensa pirâmide. O vértice era o Sol no zénite.
Amon Ra em todo seu esplendor irradiava a sua luz aos quatro pontos cardeais, os quatro estados em que se desenvolvem as coisas.
O Sul estava associado ao fogo celeste, por estar o Egito no hemisfério Norte. O Norte à água, a água da vida que fertiliza a terra e desenvolve a vida. O Leste ao ar, o vento de Amon que impulsiona o Sol em sua ascensão. O lugar do nascimento. O Oeste é a terra, o lugar em que as coisas descendem. A entrada no mundo da obscuridade e da morte.
![](https://www.revistafenix.pt/wp-content/uploads/2024/12/Imagem3_Os-protagonistas-do-Mito-de-Osiris-Horus-seu-pai-Osiris-e-sua-mae-Isis-221x300.jpeg)
Os protagonistas do mito de Osíris: Hórus, seu pai Osíris e sua mãe Ísis
Os quatro estados da vida. O princípio de uma alquimia espiritual que o egípcio buscava sintetizar através de sua própria transformação. A síntese leva o nome de Osíris. Osíris é a deidade mais conhecida do Egito e é a representação das aspirações de imortalidade. Nele se encontra representado aquele retorno para trás, como o chama Mircea Eliade. A volta ao princípio Criador e a autotransformação, a vitória sobre o Caos e a morte. A transferência do Neter e o Cosmos no Nun.
O seu polo oposto é Set, chamado Tífon pelos gregos. Os egípcios viam a força de Osíris na água do Nilo, a água da vida e o leito do rio, a Ísis ou a natureza. Se Osíris era a representação da vida, Set era a da morte, a desordem, a tendência ao Caos.
Era um enfrentamento entre a consciência e a inconsciência, a ordem e a desordem, o tempo e a eternidade. Isto está representado no chamado mito osiriano, no qual Osíris morreu despedaçado nas mãos de Set, mas ressuscita por mediação de sua esposa Ísis, transmitindo a sua força vital ao filho de ambos. Hórus, que nasce e cresce nos marismas do delta, até que, já adulto, combate contra Set e vence-o, unificando novamente o Egito, como anteriormente estava nos tempos de Osíris.
Osíris é assim identificado com o deus dos mortos. A lenda diz que foi desta maneira que Osíris conseguiu sua deificação, ou seja, sua assimilação no Neter, sua justificação. O ritual funerário é uma reedição deste fenómeno, no qual o candidato deve lutar para alcançar também a sua própria imortalidade, a continuidade da consciência e a unidade da memória, que é consequência daquela.
Considera-se que o egípcio era homem prático e concreto, e era verdadeiramente, mas entendia que o que existe neste mundo era efeito de uma causa que transcende o fenómeno em si e que em última instância é uma realidade espiritual, a que o homem pode ter acesso.
Para o egípcio, o homem manifesto era um ser composto. Os egiptólogos, no entanto, têm ainda opiniões discordantes de como era exatamente a natureza humana, podemos, porém, reconhecer o essencial:
Khat era o corpo humano com sua vitalidade.
Kha era uma força vital que se manifestava e ocupava lugar intermediário entre o mundo concreto e o subtil. O duplo onde viveu seus sentimentos, uma espécie de caixa de ressonância.
Ab era o coração. Origem dos sentimentos e paixões. Diz um mito que aqui se encontrava oculto o sagrado, o elemento solar no homem.
Ba é representado por uma andorinha com cabeça humana. O princípio sagrado. A alma que não nasce da natureza material, senão que é de origem celeste, no qual possa residir a potência de Atum.
Akl, o princípio radiante, manifestado com plenitude naquele que domina a si mesmo, que se tem osirificado.
Sahú, o estado de espiritualidade, a envoltura subtil do espírito eterno.
O ritual funerário é o ordenamento destes valores, que o indivíduo realiza por seus próprios esforços, algo além que um simples fenómeno mecânico. O ritual em si não pretende ser mais que uma ajuda, que cuida de fortificar o indivíduo para que realize a sua obra final e assim, como Osíris e Hórus, possa sair vitorioso sobre o tempo e a morte.
Quando o indivíduo morre, o primeiro passo a cumprir é o da mumificação. Diz-se que somente conservando o corpo se pode assegurar uma vida futura. Mas bem poderia ser algo diferente, que a mumificação não seja mais que uma forma de conter a natureza psíquica do indivíduo para que não dificulte a alma em seu trajeto. Heródoto diz-nos que esta mumificação durava segundo o ritual, 70 dias. E uma vez terminado, um sacerdote ou o seu filho mais velho realizava a cerimónia de abertura. Onde se dava o que se chama a abertura da vista e do ouvido. Era a representação da unificação física. Agora o próprio indivíduo deve lograr a sua unificação espiritual. O seu coração, ou o seu Ab, diz a lenda, devia ser leve como uma pena. Logo, realizava-se a viagem simbólica, a viagem em barca até os quatro pontos cardeais, que estavam apresentados alegoricamente, o Norte por Buto, o Sul por Heliópolis, o Oeste por Sais e o Leste por Mendes. Mas o coração do mundo estava além, em Abydos, onde estava o coração de Osíris.
O morto percorria no Nilo terrestre o mesmo caminho que percorreria depois no Nilo infernal, para ressurgir na barca solar no Nilo celeste. Era a semente de uma nova vida, alentada por Osíris, senhor dos mortos e da ressurreição.
Posteriormente o morto devia descer (como se encontra na tumba de Tutankamon) ao seu próprio recinto funerário. Descendo como o Sol, do Leste para o Oeste. É levado à câmara do Oeste e ali fica só, no seio da terra, como semente de nova vida. Os amuletos não são mais que uma ajuda. A obra deve ser realizada pela alma mesma, alentada pelos deuses. À sua esquerda tem a Uto, a serpente, a deidade do baixo Egito, ao Norte, que permanece vigilante. À sua direita Nekebet, o abutre, a deidade do alto Egito, que o protege com as asas estendidas.
![](https://www.revistafenix.pt/wp-content/uploads/2024/12/Imagem4_-Set-e-Horus-adorando-Ramses-II-no-templo-de-Abu-Simbel.-Dominio-Publico-279x300.jpeg)
Set e Hórus adorando Ramsés II, no templo de Abu Simbel. Domínio Público.
A sua cabeça é orientada ao Oeste, para o qual se deve dirigir em primeiro lugar, à região dos mortos. Deve combater como Hórus contra Set, tornar-se no Hórus combatente. Encara o próprio Anúbis, que o guiará pelos obscuros caminhos de um mundo sem luz. Deve unificar-se e romper pela força espiritual a inércia de um mundo caótico, vencer a serpente Apap, a mesma que trata de devorar o Sol à meia-noite. Uma vez que saiu vitorioso do mundo dos mortos, deve dirigir-se ao Norte, onde na tumba de Tutankamon se encontrava a capela protegida pelas deusas Ísis, Neftis, Selkit e Neit, na qual, contidas em vasos canópicos estavam as suas vísceras e onde também se encontraram dois fetos.
É o lugar alegórico da volta à natureza, em que reconstrói novamente seu corpo, onde entrará em um novo estado fetal, para renascer em outra vida.
Posteriormente dirigir-se-á ao Norte, o lugar da confirmação solar, logrando a força que lhe permitirá renascer novamente como Osíris, como o Sol.
Finalmente, dirigir-se-á para o Leste, o lugar do renascimento, ressurgindo como um Sol, em seu total esplendor. Foi alcançada a unificação, depois de haver vencido aos inimigos nos submundos, após ter sido vitorioso no juízo osiriano e justificado ante Osíris.
Depois de haver logrado a força solar, pode renascer a um mundo espiritual, a uma vida de plenitude.
Passou já pelo Egito terrestre, tendo conquistado finalmente o Egito celeste.
Luis F. Ayala
Imagem de destaque: Túmulo de Tutankamon, Vale dos Reis, Luxor, Egito, Diego Delsa. Creative Commons.