Egipto, o país onde céu e terra se unificaram

Diz-se que o país de Kem ou Egipto (1) foi construído na terra, à imagem e semelhança das leis celestes. Para esta civilização milenar, tal como existiam planos para as cidades materiais, também existiam planos para chegar ao Amenti, o país de Amón, o lugar dos deuses, o mais além. Assim como os seres humanos encarnados habitavam as cidades terrestres, encontravam-se as cidades para a vida depois da morte física, como em Tebas (2), por exemplo.

Este limite entre um plano e outro estava demarcado pelo rio Nilo. No mundo manifestado era fonte de fertilidade e vida, e também separava a Tebas oriental (terrestre), da Tebas ocidental. Mas, como entendiam que ambos os planos da natureza estão vinculados estreitamente, o Nilo terrestre era o reflexo manifestado do Nilo celeste, vinculado às Águas Primordiais.

Mapa do Antigo Egito, mostrando grandes cidades e sítios (ca. 3100–30 a.C.). Creative Commons

Para os egípcios, Osíris, o unificador das duas margens, simbolizava aquele que governava em ambas as margens. Tinha o poder de criar no manifestado e de gerar no espiritual. A barca dos deuses, símbolo fundamental na cosmovisão egípcia, é a que cruza o oriente e o ocidente, a que unifica ambas as margens, acompanhando Rá, o Sol, na sua viagem eterna. De modo semelhante a esta “dupla Tebas”, o ser humano também tinha uma dupla natureza, celeste e terrestre.

O “objetivo” dos egípcios, pelo menos daqueles em contacto com os dois planos do Cosmos, consistia em alcançar a vida no além, sair à luz. Cumprindo com certas condições, a alma humana podia chegar a viver na terra dos deuses, no Amenti.  Mas diferente do que possa pensar-se, esta vida na terra dos deuses procurava-se enquanto se estava no mundo terrestre. Alcançar conscientemente o Amenti enquanto se estava encarnado era, de alguma forma, converter-se em Osíris. Isto era existir e ser ao mesmo tempo, uma vida manifestada, reflexo puro do mundo celestial e perfeito. O ser humano devia chegar a ser a luz, devia chegar a identificar-se com Ra, o espírito da luz que reina em tudo.

Assim, os egípcios desenvolviam a magia de identificar-se com algo para que isso acontecesse. O estudo das recitações do chamado Livro dos Mortos é uma espécie de lembrança profunda daquilo que procuravam que acontecesse. O Ser é o que pode “viver” no além e nele projetavam a sua identidade.

Os Princípios superiores do ser humano deviam poder voar (3) para chegar a esta terra dos deuses e despertar ali, reivindicando-se perante eles e demonstrando que a alma do que compreende este caminho é como os deuses (4). Osíris, Senhor de Amenti, é o arquétipo deste processo de ressurreição interior.

Osiris sentado em seu trono. Livro dos Mortos de Padiamonet. Dinastia XXII. Domínio Público

O Livro dos Mortos não foi previsto como um mecanismo de ajuda para ressuscitar no sentido de obter uma nova vida com a nossa personalidade no dia do juízo final. Também não era um livro funerário. O seu sentido era profundamente místico-religioso. Mais do que um livro sobre a morte, era um livro sobre a Vida, a vida eterna.

O que é que se conhece como Livro dos Mortos?

Segundo o Dr. Martín Carpio, conhece-se inapropriadamente como “Livro dos Mortos” o conjunto de textos, procedentes de diversas épocas, que se encontraram gravados:

  • No interior das Pirâmides.
  • E corredores funerários.
  • No interior dos sarcófagos.
  • Em escritos sobre papiros colocados junto das múmias.

Os papiros que constituem o “Livro dos Mortos” estão centrados em imagens, conhecidas como vinhetas que se realizavam em primeiro plano e depois sobre os espaços escrevia-se o texto. Estes constituíam explicações das mesmas, formando um conjunto de recitações ou fórmulas que habitualmente se consideram cerimoniais. Nestes papiros, texto e imagem vão unidos, indissociavelmente. Formam uma combinação simbólica entre sons, texto, cores, posições, figuras geométricas, chaves aritméticas, entre outras.

Suspeita-se que a origem do Livro dos Mortos é mais antiga do que as inscrições nas pirâmides. Pois esta coleção de textos foi atribuída ao próprio Thoth, divindade lunar da sabedoria. Assim, a origem destes papiros pode atribuir-se a uma corporação de sábios que se manteve através de toda a história do Egipto, ainda que se perca no mais remoto passado.

Dentro dos registos que constituem o conjunto chamado “Livro dos Mortos”, o Papiro de Ani é um dos mais reconhecidos. Pertencente à chamada versão tebana, data provavelmente de 1250 a.C.. Carpio, no seu livro “Saída da alma à luz do Sol”, expressa que o Papiro de Ani é o que apresenta uma unidade completa e real. Atualmente encontra-se no Museu Britânico, na cidade de Londres.

Ani, segundo as descrições do texto foi um “escriba real verdadeiro, escriba e administrador das oferendas divinas de todos os deuses” e “governador do celeiro dos Senhores de Abidos, escriba das oferendas divinas dos Senhores de Tebas”. É interessante destacar que o ofício de escriba era um ofício sagrado no Egipto. Toth era o patrono dos escribas; eles eram os que transcreviam simbolicamente o eterno. De alguma forma, consagravam na terra o mundo celeste. Ter registo, além disso, dota as culturas de imortalidade e transcendência. A noção de tempo permite unificar o passado e o futuro num eterno presente.

Secção do Livro dos Mortos no Museu Egípcio do Cairo. Creative Comons

As quatro etapas do Livro dos Mortos

O “Livro da morada oculta”, como o designa o professor J. A. Livraga no seu livro Tebas, foi-se organizando de diversas maneiras com o passar do tempo. As numerações que hoje se dão às recitações correspondem a classificações efetuadas por egiptólogos, depois de tentar comparar e incluir num só cânone as diferentes versões existentes do Livro. O inconveniente das numerações atuais é que não apresentam uma ordem lógica nem mostram coerência com o expresso nos papiros, pelo menos numa perspetiva simbólica.

Martín Carpio, no seu escrito, apresenta o Livro dos Mortos respeitando a ordem original em que aparecem as recitações do Papiro de Ani. A proposta fundamenta-se, além disso, no estudo comparativo das tradições filosóficas antigas

Organizado desta forma, o Papiro de Ani recorre ao processo iniciático de um sacerdote egípcio. Sequencialmente, é possível encontrar quatro etapas correspondentes aos elementos da natureza. Estas quatro fases clássicas, presentes em diversas e antigas culturas são: Terra, Água, Ar e Fogo.

Na Etapa Terra tratar-se-ia de alcançar um domínio básico sobre a sobrevivência imediata além dela, mostrando uma preparação prévia e um conjunto de conhecimentos requeridos para tal meta. A pureza é um elemento fundamental nesta fase.

Na Fase Água da plena posse dos elementos vitais. Nas recitações concede-se-lhe o alento vital e o de vida; simbolizam-se por numerosas barcas, representando a ideia de cruzar as águas; símbolo de atravessar desde a margem este (a vida encarnada ou a morte para o espírito) até à margem do oeste (a Vida).

A Fase Ar caracteriza-se por ver Ani, tendo alcançado domínio sobre si mesmo, com capacidade de transformar-se amplamente. Simbolizando a liberdade da alma imortal ver-se-á representado como aves, como um lótus ou como uma serpente, entre outros animais.

Finalmente, a Etapa Fogo está representada pelo Forno Mágico, a abundante presença de chamas e do Lago de Fogo. Aqui é onde se produz a transmutação alquímica. Este aparente final é o começo de uma nova vida, o nascimento na Vida do espírito.

Cada etapa estará assinalada por vinhetas onde aparece Osíris, perante o qual se apresenta o escriba Ani para ser submetido a um julgamento, um momento crítico que permitirá a passagem de uma etapa à seguinte.

Tomando a numeração atual, o primeiro destes julgamentos, o mais conhecido, onde se pesa o coração do aspirante à ressurreição interior, encontra-se na recitação 30b. O segundo, na Recitação 18; o terceiro na Recitação 18 bis e o quarto, conhecido como a confissão negativa, na Recitação 125.

Anubis pesando o coração de Ani. Domínio Público

Em suma, o “Livro da oculta morada”, mais do que falar de morte, apresentava um guia para a alma imortal no seu caminho até à Luz do Sol (Ra). Era mais o livro da vida interior. Surpreende descobrir que o misticismo da terra de Kem, o contacto alcançado com o mundo invisível e o conhecimento profundo das leis naturais, ainda que pareçam aquecer os corações daqueles que se abrem ao mistério da vida, mantendo viva a chama da sabedoria ao longo do rio dos tempos.

Franco P. Soffietti

 

Publicado na RevistAcrópolis. Revista digital de filosofia, cultura e voluntariado em Córdoba Argentina em 2-09-2020

Referências

1) Salida del Alma a la Luz del Sol, Juan M. Carpio (2004). Ed. Nueva Acrópolis, Madrid, España.

2) Tebas, Jorge Ángel Livraga. Edición libre online cortesía de Nueva Acrópolis España.

[1] Nome que lhe deram os gregos relacionados com Hat-Ka-Ptah ou a Casa de los Kas de Ptah, deus criador do fogo.

[2] Existiam duas Tebas, a oriental ou terrestre e a ocidental, onde descansavam os mortos. Ambas as cidades se encontravam separadas pelo Rio Nilo, quer no plano físico, quer no plano celeste. Pois concebiam um Nilo Celeste e um Nilo manifestado.

[3] Em inúmeras culturas, estes Princípios representavam-se simbolicamente como animais alados.

[4] Esta conceção pode-nos lembrar de uma ideia semelhante entre os aztecas, que logo depois de morrer, a alma se convertia em ave e iniciava um voo até ao Sol para se fundir com ele, a origem da vida.