Desvelar a aparência física de grandes nomes da História é um sonho de grande parcela de estudiosos, admiradores ou, mesmo, curiosos, querendo tornar sua abordagem particular sobre aquela figura como algo mais imersivo. Dar uma “cara” a um nome nos é instintivo e intensamente emblemático, pois passamos para um nível quase tangível, factual. Assim, após a reconstrução dos rostos de várias personalidades (ou devoções) – como Maria de Nazaré, a Virgem de Guadalupe, Francisco e Clara de Assis e a “princesa da Disney” Pocahontas -, o acadêmico e designer Átila Soares da Costa Filho recorre novamente à inteligência artificial para revelar como teria sido uma das mais recordadas santas na História da Igreja: Verônica de Jerusalém.
A base para o experimento foi uma relíquia resguardada na Basílica da Sagrada Face (dos Frades Capuchinhos) de Manoppello, região italiana dos Abruzos, Pescara. Muitos crêem esta relíquia ter sido o verdadeiro lenço de Verônica, aquela que enxugou o rosto ensangüentado de Cristo enquanto carregava a cruz, sob os insultos dos populares e o chicote dos soldados romanos. Mas, qual seria o fundamento da veracidade de tal peça, um translúcido pedaço de tecido de bisso marinho, medindo 17 x 24 cm? Segundo a tradição, a própria Verônica teria levado o véu para a Europa, onde seria descoberto em Edessa, no ano 525, para reaparecer na Basílica de São Pedro em Roma, séculos mais tarde. Daí, o pano teria ressurgido na comuna de Manoppello em 1508, através de um misterioso peregrino que passa um pacote fechado para as mãos de um médico local chamado Giacomo Leonelli. A seguir, o mesmo adentra uma igreja, ao que descobre o lenço com a Santa Face no conteúdo do embrulho. Passando por várias famílias da região, a mantilha termina sob os cuidados dos Capuchinhos desde 1660. Todos estes antecedentes passaram a ser documentados entre 1640 e 1646 na obra Relatione Historica, do padre Donato de Bomba. Mas, e quanto a Verônica? Teria realmente existido?
Os próprios evangelhos, em momento algum, citam qualquer seguidora de Jesus que tivesse enxugado seu rosto pelas calçadas de Jerusalém, e menos ainda algum milagre da face do Salvador ter-se fixado no tecido. Aliás, o próprio nome latinizado “Verônica”, mais que algo real, parece mais ser uma atribuição direta ao milagre, já que significando “Verdadeira Imagem”. O mais próximo que se chegaria disto é o fato de algumas tradições a terem incluído entre as lamuriosas mulheres às quais o Messias conforta enquanto se dirigindo para o Calvário em Lucas 23, 27-31. Curiosamente, o nome original da santa seria Seraphia, e mencionada pela primeira vez no apócrifo Atos de Pilatos (século IV d.C.), no apêndice Cura Sanitatis Tiberii – “A Cura de Tibério”.
Com tudo isto, Átila Soares diz precisar ser honesto e deixar claro sobre suas convicções intelectuais: “Particularmente, não sou um entusiasta do Véu de Manoppello…, porém, não é isto o que importa aqui. A questão é: De acordo com aquela imagem no lenço, como seria, supostamente, a aparência de sua portadora, num instante tão emblemático na História da Paixão?”. Desta vez, sua premissa está em um silogismo: Em sendo uma imagem miraculosa, seria natural que alguma informação visual pudesse estar contida no interior dos olhos no rosto sagrado impresso – “tal qual se crê ocorrer com os da Virgem de Guadalupe”, comenta. E continua: “Obviamente que estamos falando aqui em informação gráfica detectável apenas em níveis algorítmicos, quase alquímicos. Então, desenvolvi um prompt solicitando a uma Inteligência Artificial como seria o rosto daquela mulher específica a estar diante do lenço de Manoppello, translúcido, no exato momento em que a imagem ali se gravava. Minhas expectativas eram de que, a partir de uma análise inteligente sobre a convergência dos fragmentos de traços ocultos nos olhos (sugerindo a presença de reflexos), algo me fosse traduzido na forma de um rosto ‘real’ – por razões semióticas, preferi apresentá-lo em estado mais protocolar, ao invés de lamuriosa. Sim, é um simples exercício de especulação, mas talvez seja esta a primeira vez na História em que se procura projetá-lo fora de um âmbito meramente abstrato.”
Ingressar na Pré-Modernidade com antropologia e inteligência artificial não é uma novidade para Átila Soares: Este já havia desenvolvido, em 2022, um projeto gráfico de caracterização / rejuvenescimento de “Tora”, uma idosa do século XIII recriada pelo Museu da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia. Os resultados trazidos por Átila foram aprovados pela arqueóloga-chefe da equipe, a Dra. Ellen Grav. Segundo ele, uma nova representação para Santa Verônica poderá ser uma forma alternativa de se conhecer e meditar sobre esta, uma das figuras mais fortes e carismáticas do Cristianismo.
Prof. Átila Soares da Costa Filho
O Prof. Átila Soares da Costa Filho é bacharel em Desenho Industrial (PUC-RIO) e pós-graduado em Filosofia, Sociologia, História da Arte, Arqueologia, Patrimônio, História e Antropologia. Atualmente integra os comitês científicos na “Fondazione Leonardo da Vinci” (Milão), na “Mona Lisa Foundation” (Zurique), no anuário acadêmico “Conservation Science in Cultural Heritage” – Universidade de Bolonha / Universidade La Sapienza (Roma) / Universidade de Sevilha (Espanha) -, e no “Comitê Nacional de Valorização do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental” (Roma). Também é autor do “Método Luminari”, de atribuição de obras de Arte através de Inteligência Artificial.
Cf.: https://professoratilasoares.weebly.com
Imagem de destaque: “Verônica” ou Seraphia, vivida pela atriz Sabrina Impacciatore na polêmica versão cinematográfica de Mel Gibson: Nenhuma menção nos evangelhos, mas uma das mais lembradas personagens no Mundo Bíblico, Twentieth Century Fox, Icon Productions, 2004.