“O progresso consiste na mudança”

Miguel de Unamuno

A frase, contundente e redonda como um postulado científico, resume na linguagem direta do grande escritor espanhol que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, toda uma filosofia de vida. Não deixa uma brecha para introduzir a menor das perguntas: aceita-se ou nega-se.
E é um facto curioso que as asseverações mais absolutas partam, no geral, de pensadores que apresentaram características liberais. Vale a pena determo-nos nisto.
Os exemplos são inúmeros, mas tomemos alguns.
Numa data tão longínqua como os séculos XII-XIII, os “Fraticelli” assolam a Europa central e especialmente o norte de Itália, convertidos em hordas de barbáricos fanáticos inicialmente propulsados pela liberalidade de São Francisco de Assis. Savonarola, o mesmo: de tão liberal e oposto a toda a norma, inspirava nas multidões uma ânsia orgiástica de destruição de obras de arte e de livros, para chegar até a lapidar quem não participava nas suas fúrias sagradas.
Mas é no século XV que o que hoje poderíamos chamar “liberalismo” se afiança e toma corpo, apoiando-se na razão. A razão é concebida então como superior a todos os seres e coisas, com um dinamismo próprio que conduz a uma visão do mundo sem conteúdos nem diferenças intrínsecas. Frente à razão não valem autoridades, alturas nem valores. Em nome da razão chegam-se a conceber irracionalidades que contradizem a razão em si e a simples experiência vital. Por exemplo, se um amor não é razoável e raciocinado, não é amor. Séculos depois erguer-se-ia contra tais conceções o Romantismo.
Nasce o conceito da individualidade e do nominalismo, no extremo do qual se nega toda a relação entre os indivíduos, como se fosse obra artificial e perniciosa. Assim, o mundo nominalista passará a ser algo carente de todo o sentido ético e metafísico. A moral só receberá loas quanto à sua etimologia exotérica de “conjunto de costumes úteis”.

Úteis para quem? Desde logo, para o indivíduo, pois a própria Sociedade – e que dizer do Estado – é causa de todo o infortúnio.

Com o correr do tempo, a partir do cartesianismo, a única realidade concebível será a dúvida e esta dará aval à própria existência.

Com mais vontade de cientificismo que ciência verdadeira, concebe-se o Universo e o Homem como frutos da casualidade, pois forja-se o paradoxo de que a razão, que tudo abarca e justifica, é ultimadamente filha da sem-razão, como Urano o foi do Caos. Mas na nova versão de interpretação deste enigma filho dos Mistérios, já não há capacidade de aprofundar e uma angústia subconsciente vai abrir os leitos da violência.

Afresco de Giorgio Vasari e Cristofano Gherardi (ca. 1560), A Castração de Urano. Domínio Público

Em nome da liberdade forjam-se os mitos dos iluministas e a teoria do bom selvagem. Quem não estava de acordo com isto era um retrógrado, e assim, não tardarão em rolar as cabeças, coroadas ou não, ante o altar da paz. Uns gritam: “Enforcaremos o último rei com as tripas do último padre”, e outros escrevem: “A religião é o ópio dos povos”.

Do conceito imobilista medieval de um Universo que se encontra exclusivamente à espera do dia do juízo final, e cujos movimentos são aparências carentes de um significado que transcenda a mera mecânica das coisas, passa-se à antítese de um universo em febril mudança, sem mistérios, visível e tangível na sua totalidade e onde tudo evolui e progride constantemente. Para os “evolucionistas”, racionalizados pelos “darwinistas”, a Natureza jamais se detém nem dá saltos; é uma simples máquina muito bem lubrificada com o sangue das suas próprias criaturas.

Os cientistas atuais, com menos presunções e mais sabedoria, não podem deixar de se surpreender à vista de tantos e tantos enigmas como nos mostram os mais aperfeiçoados meios de interpretação das coisas e dos factos; pois comprovado está que a Natureza guarda no seu seio misteriosos relógios que aceleram ou detêm o fluir dos acontecimentos, que são veículos cujos fins transcendem o simplesmente fenomenológico.

A razão, injustamente confundida com a inteligência, e sem se depurar dos instintos mas sim escondendo-os, sob o pesado manto da retórica, deu caráter ao século XIX e passou ao XX.

A perigosa ideia de que todo o progresso está baseado na mudança constante fez com que do liberalismo surgissem pseudomísticas revolucionárias que colocaram a máscara da ciência às piores distorções, originando-se os conceitos de luta de classes e de racismos.

Um simples filósofo, que por graça de algum prodígio tivesse surgido do fundo dos tempos, ter-lhes-ia explicado que o homem que jamais se detém ao escalar uma montanha, impelido à eterna mudança e movimento, continuará a caminhar ao chegar ao cume e de tal forma que descerá inexoravelmente, convertendo o seu progresso em descida, senão mesmo em queda mortal.

Mas os intelectuais e cientistas que estavam na moda aquando do nascimento do século XX careciam dessa simplicidade e humildade. Na sua cegueira acreditaram que o aperfeiçoamento dos meios melhorava o Homem, e que poder cruzar o mar, a terra ou o ar a grande velocidade os fazia infinitamente superiores em tudo, a quem não podia realizar estas coisas.

Voo dos irmãos Wright em 1903. Domínio Público

Confundiu-se, lamentavelmente, a erudição com a sabedoria, a declamação dos princípios morais com a prática da paz, e a mudança constante com o aperfeiçoamento.

Concebeu-se artificialmente o Universo, o Homem e a relação entre todos os seres e coisas. Um afã consumista converteu o nosso mundo num monte de lixo cheio de sucata física, psicológica, mental e espiritual.

Jamais houve mais desamparados na terra, nem a injustiça se impôs de tão brutal maneira. No sonhado e esperado ano 2000 haverão 4000 milhões de pobres absolutos… ou talvez mais. A este horror levaram-nos às “ideias positivas” e “científicas”.

Não basta mudar, há que fazê-lo para melhor. E se tal coisa não é possível, mais vale conservar o pouco ou muito que de bom se disponha, com humildade de coração e sem bravatas que da língua não passam.

Vale mais o olho luminoso de um lume na noite, com uma roda de bons amigos custodiando-o, entre os quais reina o amor e a sã camaradagem, que as ostentosas declarações e os rocambolescos desafios lançados desde as tribunas ou atrás das couraças defendidas por artefactos eletrónicos, cujas pilhas de alimentação são os suores dos povos escravizados pela obsessão do progresso indefinido e a necessidade de mudar constantemente.

Por mais loas que hoje se façam e por mais na moda que esteja a homenagem aos que, com os seus delírios, nos precipitaram neste inferno, reclamamos o direito natural à vida, mais além de toda a contaminação e terrorismo.

Os jovens têm de poder desembaraçar-se das velhas cadeias das seitas políticas, económicas, sociais, raciais ou religiosas, para se poderem lançar para o futuro, apoiando-se solidamente num presente, ao qual não torturem as sombras das ideias e sistemas que fracassaram. Que não se oculte esse fracasso, não para culpar alguém, mas para alentar novos caminhos à esperança, à felicidade e ao verdadeiro conhecimento de si mesmo. Tenhamos coragem!

Em muitas coisas temos de voltar a começar. Mas mudar por mudar não é sinónimo de progresso, mas de desconcerto. O justo, o bom e o belo não mudam jamais.

Jorge Ángel Livraga


Extraído do livro Artigos Jornalísticos. Edições Nova Acrópole

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Imagem de destaque: Capa de Converging Technologies, um relatório de 2002 que explora o potencial de sinergia entre nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da informação e Ciência Cognitiva (NBIC) para aprimorar a máquina humana. Creative Commons