Jamais houve um homem menos maquiavélico do que Maquiavel
Villari
Apresentar um dos principais nomes da política no Renascimento, entendendo por política o tratamento dos assuntos da “polis” com o intuito de a harmonizar através de um Ideal que a unifique, ou como diria Platão, de um arquétipo promotor de justiça, pode ser desafiante quando falamos da obra “O Príncipe” de Maquiavel.
Niccolò di Bernardo dei Machiavelli, integrou um importante momento histórico vivido no período do Renascimento entendido como a canalização de um retorno às origens e aos ideais platónicos e neoplatónicos do mundo clássico. Esta magnífica etapa do nosso movimento histórico procurou igualmente recuperar o conhecimento de uma das maiores civilizações de todos os tempos, o Egipto e a tradição Hermética, que milénios antes tinha edificado o conhecimento iniciático e mistérico, ao qual o renascimento não ficou indiferente. Estamos perante o reaparecimento dos fundamentos que alicerçaram a edificaram grandes civilizações com foco no Humanismo e na razão ética, com o paulatino afastamento do pensamento dogmático vigente até esse momento.
Maquiavel integra, juntamente com tantos outros nomes do renascimento em distintas áreas como a política, a ciência, a filosofia, a arte e mesmo a “magna ciência” com a magia e a alquimia, o ponto de viragem entre o pensamento medieval, e a consequente Idade Média, para o renascimento do espírito clássico e a autonomia racional do ser humano integrado na Natureza e na História. Viveu-se na segunda metade do século XIV um novo impulso civilizatório que iria fervilhar toda a zona de Florença, mas cuja força acabaria por chegar à Europa reconstruindo antigos cânones do pensamento nas diversas áreas. Encontramos no homem Vitrúvio uma excelente representação desta época onde o centro de todo o pensamento estaria no Ser Humano e não “num” Deus que encerrava em si a impossibilidade de questionar a vida nas suas diversas formas e manifestações. O renascimento não retirou Deus do pensamento humano, mas colocou-o num outro plano realizando assim um importante vínculo com o Ser Humano a partir do interior e não do exterior. Ideia nitidamente platónica e neoplatónica e base de todo o movimento do humanismo renascentista.
Por outro lado, um dos princípios fundamentais da emergência do espírito histórico vivido nesta época, e que edificou o pensamento de Maquiavel, surge da vontade de renovar a sabedoria e o conhecimento clássico de forma verdadeira e autêntica através de uma narrativa histórica, filosófica e ética ausente das conveniências e dos interesses de quem as controlava. É neste cenário que Maquiavel, ao escrever uma das suas mais importantes e revolucionárias obras, O Príncipe, “choca” com a realidade política e objetividade histórica não só a sua geração, mas todas as gerações futuras que o consideraram um “livro politicamente incorreto”. Nesta linha integramos uma igreja inquisitória e, mais tarde, ideologias extremistas que encerraram muitos autores, como Maquiavel, em “caixas” “maquiavelicamente” rotuladas impedindo uma merecida e profunda análise.
O Príncipe é efetivamente uma obra magistral, longe da nossa compreensão histórica, pois nele estão contidos todos os princípios do Ideal do Bom Governante à maneira do Filósofo Príncipe de Platão ou o Homem Ju de Confúcio. Se considerarmos o espírito renascentista como o “renascer” dos princípios básicos do pensamento clássico, encontraremos nesta obra a passagem do espírito humanista do renascimento para a dimensão política tal como muitos outros o fizeram na dimensão artística, literária, científica ou alquímica. A obra de Maquiavel teve efetivamente a capacidade de executar na sua dimensão mais verdadeira a realidade do governante sem utopias morais ou decisões fáceis onde todos são vitoriosos e vencedores. A crueldade política surge com a sua realidade, tal como na obra de Henrique V vemos o próprio Rei a executar um dos seus grandes amigos ante todo o exército por um roubo cometido. Para alguns a execução de um homem ante um exército, seria considerada uma ação tirana e imoral. Para outros uma infâmia sem escrúpulos ou sentimentos por executar sem piedade um irmão amigo e companheiro. Mas para outros seria talvez um profundo sentido de justiça pela parcialidade com que o fez e a forma reta de exemplo ante o seu exército, pois a complacência desta situação seria a destruição de todos e a perda de uma guerra antes do campo de batalha. O Príncipe de Maquiavel gera ao leitor um misto de sentimentos reais onde a justiça se funde com a injustiça. Onde a moral e a retidão se misturam com a imoralidade e a desonra. Onde os favoritismos se juntam à realidade da vida de um governante reto.
O Príncipe nunca será uma obra consensual pois como refere Giovanni Papini “acusar Maquiavel é acusar o próprio espelho”. Talvez por isso o encontramos na lista dos livros amaldiçoados e hereges pois o confronto do homem consigo mesmo é demasiado doloroso para suportar.
Tal como muitos idealistas, Maquiavel acreditou e beijou a mão do poder sendo por isso considerado nas suas ideias e opiniões junto de grandes nomes do poder internacional numa Itália em guerra entre os republicanos e as famílias aristocratas, divididas em “ducatos”, ou seja, áreas governadas por um “duque” cuja autonomia e autoridade lhe conferia poderes para administrar e gerir o seu território, colocavam a Itália como centro de uma grande instabilidade política e social. Unida a esta situação, encontrávamos o poder da igreja cuja força e rede de interesses “governava” de forma “invisível” intercedendo ou ostracizando a organização política destas cidades.
Nicolau Maquiavel entra no nosso cenário a 3 de maio de 1469 em Florença numa família não muito abastada, mas ligada, pela parte da mãe, a ilustres famílias de Florença tendo com isto desenvolvido uma educação promissora o suficiente para integrar importantes funções na República de Florença de ordem militar e diplomática junto do seu governante Republicano Piero Soderini, passando mais tarde, entre 1502 e 1503, para a função de embaixador com César Bórgia, filho do papa Alexandre VI. Em 1512, quando a família Medici, fundadora da Academia Platonica de Florença, recuperou novamente o governo florentino, perdido em 1949, Maquiavel viu-se numa situação sem precedentes com um ponto dramático de viragem na sua vida. Foi preso e torturado por conspiração aos Medici.
“Perdido o conforto das antecâmaras do poder, segue-se agora o sofrimento da cadeia e, com ela, vinte e dois dias de cárcere e de tortura, dias horrendos de ferros e correntes, passado pelas cordas várias vezes, temendo pela própria vida, como escreveu a 26 de junho, numa carta ao sobrinho Giovanni Vernacci, filho de sua irmã Primavera, na altura comerciante em Istambul”
Após dias de grande dor moral e física, Maquiavel acabou por ser libertado num conjunto de acontecimentos que ele mesmo poderia considerar como a “fortuna”, acabando por exilar-se numa zona rural e impedido de regressar à vida política e pública numa Florença afastada dos republicanos e governada novamente pela família Medici. Nesta sequência Maquiavel escreveu uma carta a Francesco Vettorini a pedir que intercedesse por ele e pelo seu irmão Totto no círculo de favorecidos pelo Rei Leão X, obtendo, no entanto, uma resposta negativa.
Neste momento Maquiavel acabou por submeter-se: “expulso da cena palaciana, resta-lhe, por cautela, retirar-se. Mas não desiste. Usa, para tanto, a única força que tem ao seu dispor – escrever – e a única forma como o sabe fazer – a ironia.”
É neste contexto que Maquiavel, dececionado com a vida política e na sequência de todo o seu passado vivido com figuras inspiradoras como Luís XII de França e César Bórgia, por quem desenvolveu uma notável admiração que possivelmente terá estado na base da imagem do “Príncipe”, inicia uma vida simples, tal como escreve:
“Levanto-me de manhã com o sol e vou a um meu bosque, que mandei cortar, onde ficou duas horas a examinar o trabalho do dia anterior e a passar o tempo com aqueles lenhadores que têm sempre qualquer desgraça entre si ou com a vizinhança”. “Saindo do bosque, vou a uma fonte e, daqui, à minha armadilha para tordos. Levo um livro comigo, ou Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores, Tibulo, Ovídio e semelhantes; leio aquelas suas amorosas paixões”… “Chegada à noite, retorno a casa e entro no meu escritório; à porta dispo a roupa quotidiana, cheia de barro e lodo e visto roupas dignas de rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas antigas cortes dos homens do passado onde, por eles recebido amavelmente, me nutro daquele alimento que é só meu e para o qual nasci; não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões das suas ações. Eles, por humanidade respondem-se e não sinto durante quatro horas qualquer tédio, esqueço todas as aflições, não temo a pobreza, não me amedronta a morte: transfiro-me inteiramente para eles”
A tão polémica obra de Maquiavel, O Príncipe, escrita sobre os acontecimentos e as circunstâncias que encontramos nesta carta que escreve a Giovanni Vernacci é tão grandiosa como possivelmente a alma atormentada, mas enormemente inspiradora do seu autor. Os diálogos que estabelece nas horas noturnas dignamente vestido para se apresentar ante as notáveis figuras às quais entrega a sua própria alma esquecendo por isso a realidade, podem indicar a elevação que ocorreria no seu universo mais profundo. Continua na sua carta:
“E porque Dante disse não haver ciência sem que seja retido o que foi apreendido, eu anotei aquilo de que, por sua conversação fiz capital e compus um opúsculo De Principatibus onde aprofundo quanto posso as cogitações sobre este assunto, discutindo o que é principado, de que espécie são, como são adquiridos, como se mantêm, porque se perdem. Se alguma vez agradou alguma fantasia minha, esta não vos deveria desagradar, e um príncipe, principalmente um príncipe novo, deveria aceitar esse trabalho: por isso eu o dedico à Magnificência de Giuliano”.
O Príncipe canaliza o ideal que adormecia inquieto em Maquiavel. O ideal de Unidade e Unificação da sua pátria e do próprio Homem. A criação de um princípio Uno que pudesse funcionar como uma linha orientadora para uma Itália dividida e desunificada entregue a um governante-novo personalizado no “Príncipe” capaz de iniciar um novo movimento histórico, livre das amarras na qual se encontrava o cenário político de Itália.
Mas não seria o retorno à Unidade a base do movimento humanista do renascimento? Se a resposta for positiva então esta obra é realmente o reflexo dos ideais do Renascimento aplicados aos assuntos da “polis” e daquilo que define a “ré” pública ou “assunto público”. O Príncipe encarna no imaginário de Maquiavel aquele que tem como função reorganizar e unificar a “polis” mas cujos desafios encontram fronteiras muito ténues e por vezes necessárias para manter o vínculo da unidade. A obra de Maquiavel recupera a importância da história e as aprendizagens necessárias a realizar pois um governo ausente deste saber é um governo em decadência. Maquiavel é efetivamente o pai da política moderna e um dos nomes mais importantes do interesse pela vida política no humanismo renascentista onde a procura pela verdade interior e intrínseca ao indivíduo é considerada tão importante quanto a procura pela verdade na sociedade.
Maquiavel era um republicano e isso acabou por constituir a sua grande tragédia num momento histórico politicamente fragmentado por uma estrutura social ainda em reconstrução. Maquiavel pretendia ver na sua pátria os princípios clássicos da unificação social dedicando, por esse motivo, a obra “O Príncipe” aos Medici com a esperança de conseguir criar esta realidade, ou, para obter influências e interesses da aristocracia de Florença e o retorno à vida que usufruía.
Maquiavel desenvolveu nesta época uma orientação historicista ao contrário do iusnaturalismo que pressuponha a existência de leis anteriores e superiores às criadas pelo ser humano e que por isso deveriam reger a ação e a conduta das sociedades. Maquiavel integra uma ação dinâmica nas leis que formam parte da história, numa ação com movimento cíclico e dinâmico. O Príncipe de Maquiavel aspira as origens da história e a construção da história, conferindo à sua personagem a realidade que ela possui e com um importante papel do Renascimento com a procura da análise da razão superior sobre todas as coisas.
Seguem algumas linhas retiradas da obra “O Príncipe” onde percebemos, ao longo da sua exposição, a contextualização, a fundamentação histórica realizada por Maquiavel, com exemplos ocorridos em diferentes momentos e civilizações e que alicerçam as suas constatações. Por esse motivo a obra representa efetivamente a realidade política sob o olhar racional do autor como base da sua vivência e do profundo intelecto que o leva à análise detalhada e minuciosa das ações implícitas e explícitas que o bom governante deve ter ou evitar. O Príncipe não deixa de ser um importante manual de conduta para aquele que aspira na política uma arte de governar.
“É no principado novo que residem as dificuldades”
“Os homens mudam de bom grado de senhor, crendo melhorar, e essa crença leva-os a pegar em armas contra ele, no que se iludem, pois veem depois por experiência que estão ainda pior”.
“…não só ter em conta as discórdias presentes, mas também as futuras e usar de todo o seu engenho para as evitar, porque prevendo à distância, facilmente se pode remediar, mas se esperarmos que nos atinjam o remédio não chega a tempo, porque a doença é ´já incurável”.
“Conhecendo de antemão os males nascentes, depressa se curam”.
“O tempo leva tudo à sua frente e tanto pode trazer consigo o bem como o mal, e o mal como o bem”.
“Quem dá azo a que alguém se torne poderoso, arruína-se a si próprio; porque esse poder é gerado por ele por engenho ou pela força, e tanto um como outro são suspeitos para quem se tornou poderoso”.
“O rei de França vive rodeado por uma multidão de senhores… cada um deles goza de privilégios que o rei não pode tirar-lhe sem correr grande risco”.
“As armas de que um príncipe dispõe para defender o seu Estado ou são suas ou são mercenários, auxiliares ou mistas. Os mercenários e auxiliares são inúteis e perigosas e se alguém mantém o seu Estado com o apoio das milícias mercenárias, nunca estará seguro, porque tais milícias são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas e infiéis; valentes entre amigos, cobardes diante do inimigo”.
“Aquele que num principado não reconhece os males logo que eles surgem não é verdadeiramente sábio, mas são poucos os que têm esses dons”.
“Nunca se deve descurar o exercício da guerra e deve exercitar-se mais em tempo de paz do que em tempo de guerra; o que se pode fazer de duas maneiras: pelas obras ou em espírito”.
O ideal do Príncipe tem um olhar realista ante a história e o Ser Humano cuja natureza se apresenta como intrinsecamente contorcida pois ninguém é bom nem mau, mas pode ser bom e mau. Por este motivo, há que prever o pior do Ser Humano quando a situação se torna desafiante e instigadora pela ânsia de poder. A coragem necessária ao Ser Humano para desviar o olhar do desejo e do brilhante ouro do poder é um dom extremamente raro e cuja construção está alimentada pela ética. Tal como referimos no exemplo citado por Henrique V, a sua decisão não pode cingir-se a uma moral externa, mas à sua própria moral, muitas vezes incompreensível aos outros. Tal como o pai castiga o filho pois entende a moral dessa ação longe da moral de quem externamente observa.
O Príncipe não pode desconsiderar duas dimensões de si mesmo: a “virtú”, ou seja, a capacidade de forjar o caminho e integrar uma “ordenada virtude” que possa fazer frente à “fortuna”, ou seja, as circunstâncias externas não controladas, mas, tal como Maquiavel refere no Príncipe, podem ser previsíveis com base no conhecimento histórico, uma justa análise e um bom critério da situação. O Príncipe não representa apenas o bom governante no estilo político que conhecemos, representa acima de tudo o bom governo de nós mesmos. O exercício de relacionar o Príncipe com cada um de nós, na gestão e governo das nossas vivências físicas, emocionais ou mentais, convertendo-se num manual de conhecimento interior e convivência pode ser absolutamente magistral. Neste sentido é importante realizar uma libertação histórica e retirar estes e outros nomes da inquisição para promover um renascimento destas e outras pérolas da nossa literatura. Maquiavel faleceu sem viver o sonho de uma Itália Unificada e sem voltar a ver as luzes que outrora iluminaram o olhar atento de quem o ouvia. No seu regresso a Florença, findo o seu exílio, acabou por falecer pobre e sem a força que outrora possuía, mas tal como os grandes nomes da literatura e da história da Humanidade, deixou toda a sua riqueza nesta magnífica obra que espera ser “vivificada” por um tempo futuro.
“Quem não é amigo pedir-te-á que te mantenhas neutral e quem é amigo pedir-te-á que te reveles pegando armas. E os príncipes irresolutos para evitarem os perigos presentes, decidem na maioria das vezes manter-se neutrais e na maioria das vezes provocam a sua própria ruína.”
“Um príncipe deve cuidar de nunca se aliar a quem sejam mais forte do que ele para atacar outrem, a não ser quando a necessidade a isso obriga, como já disse atrás, porque vencendo ficas seu prisioneiro e os príncipes devem evitar, o mais que poderem ficar à mercê de outrem.”
“Um príncipe deve também mostrar-se amante das virtudes, albergando os homens virtuosos e honrando os que são exímios numa arte”
“Um príncipe deve aconselhar-se sempre, mas quando é esse o seu desejo e não o desejo de outrem”
Isabel Areias
Imagem de destaque: O Príncipe de Nicolau Maquiavel (1469-1527) (Imagem composta). Domínio Público.