Muitos foram os investigadores que se dedicaram ao tópico do «nome secreto de Roma» e à divindade protectora da cidade, directamente relacionada com ele.[1] Como tal, não se pretende com este breve artigo dar uma resposta concreta à questão, desenvolve-la, nem negar todo o trabalho feito até aqui. Procuramos simplesmente informar o leitor sobre as principais fontes e indícios que sugerem que o nome secreto de Roma era, na realidade «Amor», e por onde devemos começar a investigar se o pretendermos compreender.
Na simbólica 12ª linha do Versus Romae (da segunda metade do séc. IX), Kantorowicz[2] viu o eixo (e a unidade) de todas as 24 linhas do poema,
Roma tibi subito motibus ibit amor.
Roma, o amor chegará até ti subitamente, com violência.
e sugeriu que o palíndromo ROMA-AMOR fosse muito antigo, facto atestado por um conjunto de moedas do período de Constantino com a inscrição ΕΡΩΣ.[3]
A informação mais detalhada que temos, é, no entanto, tardia (séc. VI), e surge-nos em Laurêncio Lido, no De Mensibus (4.73), onde lemos:
No 11º dia antes das Calendas de Maio [21 de Abril], Rómulo fundou Roma […]. Ele mesmo, pegando numa corneta sagrada – na sua linguagem os Romanos habitualmente chamavam-lhe lituus, de litḗ [gr. «oração»] – proclamou o nome da cidade, assumindo a liderança da iniciação sagrada. E a cidade tinha três nomes: um [nome] iniciático, um [nome] sagrado; e um [nome] político. O [nome] iniciático era Amor, ou seja, Amor [Érōs], de forma a que todos fossem firmemente mantidos em torno da cidade pelo amor divino – e por esta razão, o poeta [Virgílio] chama enigmaticamente à cidade Amaryllis [uma flor, do grego amarýssō, «brilhar»] na sua poesia bucólica. O [nome] sagrado era Flora [Phlō̂ra], ou seja, “Florescente” [ánthousa] – já que o festival das Antestérias [recebia o seu nome] de acordo com isto. O [nome] político era Roma. Ora, o nome sagrado era conhecido de todos, e era pronunciado sem medo, mas o [nome] iniciático foi confiado apenas aos altos sacerdotes para que o pronunciassem durante os ritos sagrados. E diz-se que um dos magistrados foi castigado porque se atreveu a pronunciar abertamente o nome iniciático na cidade, perante o povo.
No Comentário à Eneida (1.277), Sérvio refere-nos a existência de um ritual do nome de Roma, relatado por Varrão, onde se menciona a execução de Quinto Valério Sorano, por este ter revelado o nome secreto:[4]
urbis enim illius uerum nomen nemo uel in sacris enuntiat. denique tribunus plebei quidam Valerius Soranus, ut ait Varro et multi alii, hoc nomen ausus enuntiare, ut quidam dicunt raptus a senatu et in crucem leuatus est, ut alii, metu supplicii fugit et in Sicilia comprehensus a praetore praecepto senatus occisus est. hoc autem urbis nomen ne Hyginus quidem cum de situ urbis loqueretur expressit.
Ninguém pronuncia o verdadeiro nome da cidade, mesmo nos rituais. E de facto, certo tribuno da plebe, Valério Solano, diz Varrão e muitos outros, ousando pronunciar o seu nome, foi, como dizem alguns, preso pelo Senado e crucificado, outros dizem que fugiu com medo do castigo e foi apanhado na Sicília pelo governador e executado por ordem do senado. Nem mesmo Higino, quando fala da localização da cidade, dá este nome à cidade.[5]
E no Comentário às Geórgicas (1.498):
patri dii (…) indigetes (…) Vestaque (…) poetice: nam uerum nomen eius numinis, quod urbi Romae praeest, sciri sacrorum lege prohibetur
Os deuses da pátria (…) os Indigetes (…) e a mãe Vesta (…) [dizem] com licença poética, que o verdadeiro nome do poder da cidade de Roma está proibido de ser conhecido pela lei sagrada.[6]
Plínio (História Natural 3.65) e Solino (1.4-6) repetem a história, acrescentando que o culto à Diva Angerona foi propagado para introduzir e obrigar ao silêncio sobre o tema (como tal, a deusa era representada com uma faixa sobre a boca).[7] Plínio diz ainda:
nomen alterum dicere arcanis caerimoniarum nefas habetur optimaque et salutari fide abolitum enuntiauit Valerius Soranus luitque mox poenas.
o outro nome, devido ao segredo que envolve os rituais, é considerado um sacrilégio divulgar, e quando Valério Solano divulgou o segredo religiosamente guardado para o bem do estado, depressa pagou pena.[8]
Plutarco (Questões Romanas 61) acrescenta alguma factualidade a esta tradição, recebendo-a, provavelmente, de Valério Flaco, sobre a deusa secreta de Roma e o rito da evocatio, (fórmula que impedia os deuses protectores de abandonarem a cidade, com a promessa de lhes dedicar templos em Roma).[9] V. Basanoff[10] defende que a divindade tutelar de Roma era Pales, e o nome secreto Palatium. A. Brelich[11], ao contrário, defende que não é uma divindade isolada, e propõe Genius, Fortuna, Pales, Ops Consivia e Diva Angerona.[12]
Outra evidência de que o nome secreto de Roma era Amor é um grafito de Pompeia, onde os nomes iniciático e político aparecem num quadrado[13]:
Esta ideia parece estar já presente, por exemplo, em Platão (que compara errṓménōs (rṓmē) «força» a érōs «desejo/amor»)[14], como tal seria uma relação de palavras antiga.[15]
Outro jogo de palavras encontra-se no templo duplo de Vénus e Roma em Vélia (121-137 d.C.) onde as duas estátuas de culto estão em absides, olhando em direcções opostas. Se substituirmos Vénus por Amor, subentende-se:
O templo estava relacionado com a transformação do festival dos Parilia (originalmente um rito à fertilidade da primavera) no festival Natalis Urbis, como tal, as estátuas sugerem um simbolismo semelhante ao de Jano, invocando o primeiro aspecto dos Parilia enquanto principium anni.[16]
A justificação faz-se igualmente no plano mitológico. É que os Romanos são aeneadae, como tal, filhos de Vénus.[17] E se a guerra de Tróia começou com a Discória no casamento de Peleu e Tétis, ela terminou, naturalmente, com a força oposta, o Amor, e com a sucessiva fundação de Roma por Eneias.[18] Aquilo que popularmente mais nos recorda Roma, é precisamente a unidade e a ordem que esta levou desde o seu eixo até às fronteiras do império. E o que nos ensina é que a conquista não se faz apenas pela força, mas sobretudo e simbolicamente pelo amor, que é a força unificadora mais poderosa do imaginário dos Antigos. Essa força secreta, sendo sagrada, não poderia ser revelada, pois no momento em que o foi, perdeu a sua força, e com ela também o império.