Algum tempo atrás, fiquei impressionado com uma frase que li num livro:
Feche os seus olhos, crie uma imagem e veja-a!… Na escuridão da cegueira induzida, vereis com uma visão que embora comum a todos os homens, não é produto de «ver» comum. Desta forma, esta tão simples operação vai trazer-vos a consciencialização de uma luz etérea, muito diferente da luz da visão física…[1]
O que o autor com estas poucas palavras me suscitou foram muitas questões: pensamentos e palavras na minha mente? Qual é o poder que dá vida aos pensamentos e imagens na minha mente? O que é esta luz que ilumina imagens e povoa os meus sonhos? Ou das imagens que aparecem na minha mente quando os meus olhos estão fechados? Como posso gerir somente por poucos segundos para manter meus pensamentos focados onde eu quero? Porque é tão difícil manter até uma imagem de um objeto familiar vivo na minha mente? O que é a visualização e como está relacionada com a imaginação? Vamos começar esta viagem no mundo misterioso da mente e da imaginação.
A razão porque a imaginação é um conceito tão poderoso e importante para compreender é que sem ela a criatividade humana seria dramaticamente diminuída. Mas este conceito está sujeito a várias interpretações (psicológicas, filosóficas, espirituais, etc.) e por isso muito difícil para uma simples definição. De momento será suficiente dizer que a imaginação é a faculdade da mente de gerar imagens[2]. Com esta definição, posso também concentrar a atenção da nossa discussão perante um outro conceito chave, o da mente. É um outro conceito que ainda é mais difícil determinar, na verdade um grande mistério, algo que está na base da atividade humana e cósmica. E, estou aqui acrescentando o adjetivo cósmico porque todas as cosmogonias da antiguidade postuladas como primeiro ato de criação, um ato de ideação. O Demiurgo (i.e., A Mente Cósmica) primeiro imaginou o universo e depois trouxe-o para a manifestação. Da mesma forma a miríade de objetos que enchem (e muitas desarrumam!) as nossas vidas, eram primeiro imaginadas nas nossas mentes e só depois dada uma forma física tangível.
Henry Corbin e o Mundus Imaginalis
O termo Mundus Imaginalis foi cunhado pelo académico franco-islâmico, Henri Corbin. Como ele mesmo admitiu, teve de recorrer a este maravilhoso termo, porque de outro modo não seria capaz de transmitir as subtilezas escondidas por detrás das doutrinas que estava estudando. Como veremos, ele não descobriu nada de novo. Ele acabou de trazer à luz, através do estudo dos filósofos místicos tais como: Ibn Arabi e Suhawardi, ensinamentos que eram pelo menos tão antigos como Platão.
O Mundus Imaginalis descreve um tipo de mundo especial que existe para além do que podemos ver e tocar e em que só podemos pensar. Não é somente imaginário ou constituído por imagens que são meras fantasias da imaginação, mas um lugar real, feito de um tipo de substância especial (i.e., substância mental) e entidades mentais. São as mesmas coisas que compõem o mundo dos sonhos, mas ainda mais o mundo dos símbolos (filósofos islâmicos chamaram-lhes alam al mithal, o mundo da imagem).
Este mundo imaginário serve de mediador entre o mundo empírico e espiritual. Ele proporciona um espaço onde os conhecimentos espirituais e realidades são traduzidas em formas (símbolos) acessíveis à consciência Humana. Por outras palavras, o ser humano, através da faculdade da imaginação, (ou através da função simbólica se preferirem) pode entrar em contacto com o mundo espiritual[3]. Mas a ideia chave a reter na mente é que isto não é uma forma de mediunidade, de sonhar acordado da imaginação que está implícito nestes ensinamentos. É mais do que um produto da fantasia, na qual a ficção e realidade estão misturados. A origem desta confusão é precisamente aquilo que atrás mencionei, nomeadamente, o facto de não compreendermos a mente. Por isso, permitam-me esclarecer um pouco mais o assunto.
Eliphas Levi e a Luz Astral
Quase, praticamente, um século antes de Corbin, uma outra figura francesa, Eliphas Levi (chamado o pai do ocultismo contemporâneo), nos seus trabalhos esotéricos também enfatizou a importância da imaginação. A sua abordagem é diferente de Corbin porque em vez da filosofia e do misticismo ele discute o hermetismo e a magia; mas as conclusões implícitas nos seus trabalhos são muito semelhantes. Para Levi, a faculdade de usar a imaginação corretamente permite estabelecer contacto e começar a perceber e manipular a substância fundamental (a mesma coisa mental encontrada anteriormente de onde o mundo é formado.
De acordo com muitos filósofos, esta substância é considerada um tipo de matéria-prima ou matriz energética à qual Paracelso chamou luz astral[4].
Obviamente este termo não deve ser interpretado literalmente. Por luz astral, Paracelso não quis significar a luz que provém das estrelas, porque neste ponto a luz do sol ou eventualmente da lua é também uma luz astral! Neste contexto, Astral refere-se ao grego A-Stereon onde A é um alfa privativo e estéreo significa solidez, fixação (também o que é tangível, tem formas e, portanto, é visível). Por isso A Luz Astral é a luz que não pode ser vista através da visão física, porque não tem forma. Também não pode ser fixada porque é evanescente. É a luz escura e oculta encontrada nos textos Herméticos ou implícita no termo Ohr como foi encontrada na Cabala (ou mesmo em Génesis 1.3. Yelî ôhr, Faça-se Luz). Isto refere-se à luz primordial, criada pelo Demiurgo das antigas cosmogonias que se tornou a substância pela qual, através da coagulação do mundo físico foi formado, através da sublimação angelical (i.e., espiritual) o mundo foi também criado.
Como podemos constatar, existem paralelos interessantes entre o Mundus Imaginalis de Corbin e o conceito de luz astral apresentado por Eliphas Levi. Na realidade podemos ir ainda mais longe no tempo para aprofundar no Renascimento mágico e descobrir nos trabalhos de pensadores como Giordano Bruno, Tommaso Campanella ou Francesco Patrizi, o tema subjacente precisamente aquele que estou discutindo. A chamada arte da memória de Giordano Bruno, por exemplo, nada mais é que a prática da visualização necessária para desenvolver o tipo correto de imaginação e aprender a manipular as coisas da mente, a partir das quais o mundo é formado. Em todo o caso, não devemos ficar surpreendidos pelo facto de encontrarmos esta prática num contexto mágico, porque as palavras imaginação, imagem e magia estão todas etimologicamente conectadas.
Eventualmente, os trabalhos de Levi tornaram-se uma parte importante do estudo material que deu origem à escola Anglo Saxónica do ocultismo, conhecida como o Amanhecer Dourado. Mas neste ponto alguns mal-entendidos parecem ter-se levantado. Na realidade as práticas (veja-se os papéis dos rolos voadores) que surgiram destes mal-entendidos, claramente mostram os perigos ocorridos por aqueles que se deixam levar pela fantasia e uma imaginação incontrolada. Refiro-me aqui principalmente às práticas da Nova Era conhecidas como canalização e até projeção astral, a qual pode ser rastreada até aos ensinamentos do Amanhecer Dourado.
G. Jung e imaginação ativa
Muitos anos após a morte de Levi, a importância da prática imaginativa foi relançada pelo grande psiquiatra e psicanalista suíço C. G. Jung. Dentro das definições de análise e no centro dos seus trabalhos terapêuticos, Jung enfatizava a importância de uma imaginação ativa. Jung acreditava que a mente inconsciente continha informações valiosas e símbolos que podiam ajudar os indivíduos a compreenderem-se melhor, especialmente dentro da prática de análise dos sonhos, os indivíduos podem envolver-se conscientemente num diálogo com diferentes aspetos da sua psique e trabalhando através de material inconsciente (i.e., imagens simbólicas) podem reconciliar-se conflitos internos e curar feridas emocionais.
O que é que ele fazia com esta prática? Ele pegava numa numa imagem significante preferencialmente uma que aparecia no sonho do paciente e pedia-lhe para a fixar com os olhos da sua mente, com o objetivo de recriá-la. Então através das instruções dadas pelo analista do paciente faria com que a imagem voltasse como era, de forma consciente e viva. É importante enfatizar isso, se alguma coisa acontecesse, que fosse fora do objetivo, quando era evidente que o paciente tinha sido vítima de fantasia, o analista estava sempre pronto a intervir. É evidente que Jung estava consciente dos perigos de uma imaginação ativa, o adjetivo ativa destaca o facto com o objetivo de alcançar os melhores resultados, esta faculdade da mente deve ser dirigida e guiada ao longo de linhas específicas. Em resumo, ainda que as abordagens de Jung permaneçam dentro do domínio científico, fica claro, tal como Corbin, que ele estava igualmente avisado da existência de uma realidade simbólica e da importância de aceder a este Mundus Imaginalis, através da prática de uma imaginação ativa.
A Mente e os ensinamentos do Budismo Tibetanos
No século XXI as abordagens de esclarecimentos fornecidos por pessoas como Corbin, Jung e mesmo Mircea Eliade[5] ajudaram a decifrar os ensinamentos Budistas que nos anos de 1960 vieram para o Ocidente do Tibete. É surpreendente encontrar a mensagem trazida pelos lamas Tibetanos em relação aos nossos espelhos temáticos, as ideias expressadas por todos os pensadores anteriores (pensadores do Renascimento e místicos Sufis incluídos).
É profundamente reconhecido que a mente tem uma importância significativa em ambos ensinamentos de yoga[6] e Budismo. No entanto, muitas pessoas não estão avisadas do que reside na base dos ensinamentos espirituais do Budismo Tibetano, nomeadamente a meditação ou melhor a visualização. Somente através da visualização e do controle do poder da imaginação de cada um, a estabilidade na meditação pode ser alcançada. Aqui estou a referir-me especificamente, a práticas de meditação avançadas conhecidas como Yoga da Divindade[7].
O primeiro patamar desta prática envolve imagens mentais escolhidas da divindade e vividas em detalhe. A imagem tem de aparecer como se eu estivesse a olhar para uma foto, até aos mais pequenos detalhes. Não visualizo o que eu gosto, mas uma imagem precisa, a qual se manifesta originalmente na mente do professor acompanhante, e pode por isso ser considerada autêntica. No patamar seguinte (chamado patamar completo) graças ao uso de mantras, mudras e outras técnicas, esta imagem tem de tornar-se viva para que tenha efeito na psique do praticante (na sua alma).
Está claro, que todo este trabalho não pode ser mais feito com técnicas psicológicas normais. Somente aqueles indivíduos que se tenham excedido na prática e recebido dos seus professores as correspondentes iniciações, serão capazes de receber as ofertas da sua prática imaginativa. Em síntese, o objetivo da prática reside na habilidade para criar um suporte imaginativo para uma entidade real se manifestar. Uma entidade que originariamente habita mais alto e num plano mais espiritual. Estes ensinamentos, portanto, transcendem para uma doutrina metafísica de natureza espiritual, que vai para além de todas as possibilidades encontradas em livros vulgares que falam de técnicas imaginativas ou de qualquer DIY, de práticas ocultas encontradas online!
Em conclusão
Quero terminar este artigo do mesmo modo que comecei, colocando uma outra pergunta: Continuaremos a ficar observadores passivos do nosso processo de pensamento, ou poderemos alterar esta postura interior e aprender a orientar ativamente os nossos próprios pensamentos? A mente é na verdade uma ferramenta muito poderosa. O seu poder reside na habilidade de conectar o mundo da matéria com o mundo do espírito, e um importante aspeto da nossa mente é precisamente a imaginação, acerca da qual tenho estado a falar. Mas no que respeita ao uso da função imaginativa, temos efetivamente de aprender a controlar a nossa mente. Assim, numa constante prática da atenção correta, concentração e visualização, podemos aprender a gerar na nossa mente imagens e ideias estáveis. Isto desenvolve também em nós, a habilidade para traduzir ideias em manifestações, assim, a diferença entre a mente e a matéria é colmatada, e isto é a verdadeira magia[8]. Mas a imaginação ativa e criativa, é a vontade de ir buscar a sua energia à dimensão impessoal dos arquétipos. Isto leva-nos a retroceder ao facto de que não posso visualizar ou imaginar qualquer coisa que queira. Toda a imagem mental é um pensamento (uma ideia) e cada pensamento refere-se a um ser particular. Pode referir-se a um ser de luz ou de escuridão. Que Ser (ou pensamento) queremos nós atrair ou manifestar?
Agostinho Dominici
In New Acropolis – Philosophy and Education for the future, nº 62, maio-junho 2024
[1] Encontrado no livro O Mundo Secreto de Giuliano Kremmerz.
[2] Neste artigo, por imagens sempre me refiro a imagens internas, o que pode ser visto com os olhos da mente, que também significam ideias do grego idein, ver.
[3] Especialmente na tradição esotérica Ocidental mundo espiritual significa muitas vezes o mundo dos Arquétipos ou Ideias Divinas.
[4] Levi nos seus trabalhos fala da Luz Astral em muitos modos diferentes: a verdadeira luz do intelecto, o armazém de todas as formas, pensamentos e imagens, o espelho da imaginação como veículo de sonhos etc.
[5] Olhando para o nosso presente tópico, o historiador das religiões Mircea Eliade investigou práticas imaginativas especialmente no contexto do Xamanismo e nas suas técnicas de êxtase.
[6] Patanjali abre os seus Sutras de Yoga com a frase: Yoda citta-vr tti nirodhah (i.e., yoga é a habilidade para controlar as flutuações da mente.
[7] A maioria das práticas de meditação avançada envolve o uso do que é bem conhecido, mas muito pouco compreendido as mandalas, as quais podem servir unicamente como ferramentas teúrgicas depois de décadas de difícil prática.
[8] Magia é a manifestação concreta de uma ideia-imagem (qual é o objetivo) combinada pela sacralização e a ação e o intento ritualizados. Citado em Manuale di Alchimia Interiore por Giorgio Sangiorgio.
Imagem de destaque: Sonho da Primavera do Tigre, estátua de Hupao (Hupaomengquan) em Hangzhou, Zhejiang, China. Creative Commons