O estado de carência absoluta de alimentos para muitos seres humanos é um dos maiores males do nosso mundo mas existem também outros tipos de carências mais subtis que não aparecem nas estatísticas, mas que vão minando aqueles que as sofrem.
Os meios de comunicação acostumaram-nos às mais macabras imagens que reflectem o estado de carência absoluta em que se encontram muitos seres humanos. A fome é como uma garra feroz que supera as mais cruéis enfermidades e, à semelhança desses males incuráveis, não se encontra um remédio rápido e prático para acabar com ela.
No entanto, acreditamos que a fome não se detém apenas nos corpos, mas que também vai minando paulatinamente tudo quanto caracteriza a Humanidade. Por isso iremos tentar definir alguns dos âmbitos em que a miséria sobressai com maior intensidade.
Fome Física
São muitos, milhões, os que não têm nada para comer. Só em África, e a julgar pelas estatísticas, morreram de fome nos últimos quatro anos mais de trinta milhões de pessoas…
Poder-se-ia pensar que a fome afecta os que vivem em terras pobres, desérticas, e em parte isso é verdade. Mas também morrem de inacção os que têm terras férteis à sua disposição, embora sem meios nem capacidade para explorá-las e aproveitá-las. Hoje em dia tanto se pode morrer em terras estéreis com em terras férteis que os seus povoadores não sabem ou não podem utilizar.
A fome física rege-se por um conjunto de interesses – que obviamente existem, embora não se mostrem claramente – que favorecem o desenvolvimento de umas regiões do planeta em detrimento de outras. E as regiões mais favorecidas também não podem actuar livremente produzindo o que falta às outras: a produção está limitada às directrizes dos mercados internacionais, essas novas enteléquias que regem os nossos destinos, impondo preços às coisas e movendo fios invisíveis para que esses preços nunca baixem. Sobram alimentos que nunca chegam a nenhuma parte porque não interessa, porque não há veículos para transportá-los, porque a sua distribuição poderia provocar matanças entre os famintos; assim, é preferível destrui-los ou lançá-los ao mar. Sobejam donativos que se diversificam em centenas de trâmites burocráticos sem quase nunca chegarem às mãos dos necessitados. Sem contar com as nobres excepções, nasceu a nova indústria da beneficência, que também ela não consegue mitigar a fome.
Restam os idealistas, os loucos de alma que lutam corajosamente por ajudar os pobres, os doentes, os miseráveis, pagando geralmente com as suas vidas esse intento altruísta, intento que morre com a própria pessoa já que não há nenhuma fórmula organizada capaz de canalizar inteligentemente esses esforços. Talvez porque não proporcionam ganhos nos mercados económicos.
Entretanto, a outra parte da humanidade passa fome voluntariamente para aderir à moda das figuras estilizadas; são pessoas que não sabem alimentar-se correctamente por muito dinheiro que tenham, ou que se vêem obrigadas a comidas de compromisso social, ou que desabafam as suas penas consumistas com um apetite compulsivo. Isto é um atentado contra a saúde. O outro, o da miséria real, é um atentado contra a Vida. Cada vez mais a nossa consciência é assaltada com fotografias tétricas – e infelizmente bem reais – de crianças esqueléticas, de mães descarnadas e incapazes de alimentar os seus bebés, de homens que não se podem manter de pé e muito menos fazer um trabalho físico. Essas imagens chegam-nos dos restos históricos das tão odiadas colónias e dos hoje dignamente considerados países independentes. Independentes de quê ou de quem? Quem é que os continua a subjugar na sombra, deixando que se matem entre eles em lutas tribais, étnicas, religiosas?
Fome Energética
Não é que existam vampiros que chupem o sangue das pessoas e as deixem sem energia. Há outras formas de deixar as pessoas exaustas.
O dinheiro é uma forma de energia; é o resultado do trabalho de milhões de pessoas que apenas manejam em parte esse dinheiro e o que podem adquirir com ele. Há uma maquinaria que absorve trabalho e dinheiro e, por conseguinte, a energia humana, produzindo esta outra espécie de fome.
Há poderosos grupos – dos quais pouco ou nada sabemos – que manipulam o dinheiro. Há impostos elevadíssimos que oprimem os que trabalham, sem que os resultados da aplicação impositiva sejam sempre evidentes para os afectados.
A energia humana está pobre, muito pobre. De novo há escravos, se é que em algum momento deixaram de existir. Os novos escravos são os que não podem parar de trabalhar, cada vez mais horas, para terem as mesmas ou menos coisas que necessitam. Os seus amos não se deixam ver mas nem por isso são menos cruéis que aqueles dos romances que ainda a circulam pelas livrarias. Os novos escravos são os jovens sem experiência e os anciãos que mendigam trabalho porque já não há lugar para eles, a menos que o lugar seja uma bem dissimulada exploração; são os que devem suportar todo o tipo de humilhações para manterem um posto que lhes permita ganhar a vida ou manter um status que é a exigência de valorização em determinadas sociedades.
E também existem outros escravos, os de sempre, os seres humanos que se vendem e se compram, os que passam pelas mãos de uns e de outros amos, os que são enganados com paraísos artificiais para acabarem soterrados em imundos lamaçais das mais sofisticadas capitais do mundo. São os que vivem pior do que os animais e os que são abatidos sem piedade quando já não servem para mais nada.
O ar é energia e, nós temos fome de ar puro. Respiramos cada vez mais porcaria e contaminamos alegremente a atmosfera, porque assim se obtém mais dinheiro ou porque assim o requerem as provas físicas, químicas ou atómicas que resultam, logicamente, em mais dinheiro.
Ainda há uma autêntica peste de fome energética focada seja no ar que respiramos ou no dinheiro que não temos, que se traduz em cansaço , desânimo , fadiga, num arrastar-se dia após dia por entre um presente deseperador ou perante o fantasma de um futuro sem muitas esperanças.
Fome Sentimental
Há já algum tempo que os sentimentos – pelo menos nos países mais civilizados – foram substituídos pelos instintos. Como estes não são o alimento adequado da psique, o homem também morre de fome neste plano.
Todos sonham amar e ser amados e os que negam isso fazem-no por dor e desespero e não porque reneguem esse sentimento vital e indispensável. Todos sonham com um amor que dure mais que quatro dias, com um amor que não acabe após uma festa, umas férias, uns copos ou um sonho de drogas…
Infelizmente são muito poucos os que chegam a viver sentimentos sérios e poderosos como o amor, como a vibração que produz a beleza, a bondade ou a justiça. A grande maioria das pessoas deambula pela vida como se fossem mendigos famintos, habilmente disfarçados para dissimularem uma riqueza de sentimentos que não possuem nem sabem como alcançar.
A fome sentimental chama-se solidão. Não se trata da solidão física, mas da solidão interior que faz com que o homem morra de sede sem saber onde se encontra a fonte prodigiosa que lhe daria de beber. Quantos seres solitários há neste mundo!
Entretanto, o mercado internacional que tudo alcança, vende-nos mil simulacros e ilusões de companhia que, uma vez dissipados, deixam-nos ainda mais sós, mais humilhados, mais defraudados e mais anestesiados, impedindo-nos de sair desta miséria. Mas como sair senão chegamos a vê-la nem entendê-la? Sente-se, é aceite por vezes, outras vezes negada mas não se sabe de onde vem nem como combatê-la.
Também no âmbito dos sentimentos há tristes esqueletos de solitários: as crianças abandonadas e mal tratadas, os anciões que ninguém quer ter nas suas casas, os doentes insuportáveis…e por enquanto proliferam os “gordos” de emoções fictícias e vulgares, de vícios e violência que, longe de alimentar a alma, a brutalizam ainda mais e a entorpecem até deixá-la nos ossos.
Fome Intelectual
Este terreno também está carente de bons alimentos. Há muito que não existem ideias, ideias puras, sãs, eternas, dirigidas para o desenvolvimento da mente. Não; o mercado só oferece planos e projectos, sofismas baratos e vulgares e diversões para subnormais.
Existem excepções, sabemo-lo, mas são tão poucas…
A literatura, para estar na moda, deve conter expressões grosseiras; poesia deve eliminar a rima e o ritmo para ser livre; o teatro deve mostrar as misérias da vida, a loucura ou o riso fácil que nada resolvem; o cinema abunda em imagens que nos perturbam sem nos dar respostas; a pintura e a escultura atentam contra o nosso já degradado critério estético. A Filosofia desaparece dos programas de estudo e a Historia chegou ao seu fim…
Então, quem pensa em quê?
A fome que padecemos, mais do que intelectual, é mental, racional, moral, espiritual. A tão famosa diferença entre o homem e o animal – raciocínio – nota-se cada vez menos; pelo contrário, os animais é que são tomados como exemplo de fidelidade, habilidade, sobrevivência e concórdia com a Natureza.
Se pensássemos verdadeiramente, não passaríamos tanta fome.
Epílogo
Acreditamos sinceramente que há momentos difíceis na Historia da Humanidade e que, ao longo das ultimas décadas, causamos sérios prejuízos ao nosso planeta Terra. Por isso não devemos estranhar as reacções negativas da natureza: a falta de água, com as alterações climatéricas, os sismos que sacodem a terra sem piedade. No entanto, o homem, sempre que seguiu em frente, começou por pensar. Saiu das grutas pensando e construiu as cidades pensando. Tornou-se adulto pensando e aproximou-se dos deuses com a mente e a intuição. Pensando encontrou os seus melhores sentimentos e exprimiu-os. Pensando recuperou a energia quando se sentiu oprimido e, pensando, soube semear e colher os frutos da terra.
O mundo tem fome porque está adormecido. Ninguém pode produzir ou comer enquanto dorme. Há que abrir os olhos lá no alto onde está a nossa cabeça, abrir o coração e as mãos e a abundância virá como sempre, de dentro para fora e de cima para baixo. Há que pensar, sentir e actuar para que a fome desapareça.
Disse um filósofo, por outras palavras, que o mundo muda quando o nosso mundo interior muda; eu acrescento que quando tomarmos responsabilidade pelo que causamos seremos conscientes e livres.
Excelente artigo que nos ilustra a realidade dos dias de hoje. Alerta-nos para a urgente necessidade da Humanidade rever o seu paradigma existencial. Devia ser colocada a tónica no facto de o sistema capitalista estar a estender e a comprimir os seus tentáculos, numa das suas fases de maior agressividade, o chamado “Capitalismo Selvagem”, do “salve-se quem puder”, criador de egoísmos e desigualdades, do dividir para reinar…fase cíclica desta sociedade em que vivemos há milénios – “pagarás com o suor do teu rosto, o atrevimento de teres optado pelo caminho do conhecimento”, lê-se na Bíblia católica, já à guisa de predestinação do “novo” Homem como o preço a pagar pela sua passagem por este Mundo. Mas o Homem preferiu o saber, mas o Homem pensa, pensa bem e pensa mal…. a mudança leva tempo, o “monstro capitalista” não tem pés de barro, mas o mal que causa é de tal ordem que o Homem quase sem pensar, acabará por destruir as suas próprias barreiras, à custa da dor e do sofrimento, da infelicidade e da angústia. Tudo o que é criado pelo Homem, seja um produto moral ou material tanto afecta o sistema como o seu próprio criador e portanto o sistema acabará por adoecer, mais tarde ou mais cedo, fruto da sua própria natureza maléfica enquanto produto da mente humana. Acontece sempre que o homem pensa… por vezes dispara a arma, noutras coloca-lhe uma flor na ponta do cano!