O movimento é uma das grandes Leis da Natureza. No entanto, e pela dualidade que surge dos pares de opostos, também a inércia é uma lei.
O materialismo, que ganhou tanto crédito nos últimos séculos, introduziu de uma maneira subtil, a inércia no nosso estilo de vida, embora mascarada sob vários subterfúgios para a justificar.
O ser humano, tão rico em recursos práticos e tão débil em consciência espiritual, optou pela preguiça psicológica e física e descarregou a sua quota de movimento em artefactos de diferentes classes.
No passado remoto, quando as condições de vida passaram de itinerantes a sedentárias, os homens usavam animais – mais ou menos domesticados – para os ajudar no trabalho, ou seja, no movimento. E, também utilizaram outros homens, a quem escravizaram, para fugir dos trabalhos duros, os movimentos fortes.
Até aqui, e sem entrar em considerações de utilidade ou moralidade, seres humanos e animais mantiveram-se a um mesmo ritmo, por muito que o chicote pretendesse que uns cavalos, umas mulas ou uns bois puxassem uma carroça com mais velocidade. Havia o limite próprio de cada corpo.
Quando isto não foi suficiente, foram concebidas máquinas, singelas no princípio, depois mais complicadas, mas sempre com a intenção de que as máquinas substituíssem o movimento dos homens, acelerando-o também dentro do possível, num afã de produção, de maior riqueza ou de simples comodidade.
Assim, os humanos passaram a gozar da inércia e os artefactos converteram-se em dóceis escravos que não protestam, mas que, coisa curiosa, acabaram por nos escravizar.
Todos temos múltiplos robôs à nossa disposição e, à medida que correm os anos, são cada vez mais perfeitos, mais parecidos com os humanos ou mais adaptados ao que querem os humanos.
É tão grande a semelhança, que a qualquer momento poderia produzir-se a rebelião dos artefactos.
Há uma cena curiosa na Huaca de la Luna da cultura mochica no Peru, em que ferramentas, armas e objectos da vida quotidiana se voltam contra os humanos e os atacam.
Seguramente isso não acontecerá como nessas imagens, nem como é descrito em algumas novelas, mas os artefactos irão reduzindo-nos a uma inércia cada vez maior, de modo que sejamos os prisioneiros e eles os verdadeiros amos.
Sem diminuir a importância das máquinas e instrumentos de todo o tipo, que revelam o poder da inteligência criadora, preocupa-nos a redução dessa mesma inteligência, a raiz da proliferação de dispositivos.
Uma locomotiva de comboio pode transportar-nos velozmente de um lugar para outro, sem falar nos aviões. Mas um telemóvel – com todas as suas variedades – ou um ecrã de computador, imobiliza-nos numa cadeira… e paralisa-nos a mente.
Autocarros e outros veículos competem em potência e velocidade, enquanto as pessoas são cada vez mais preguiçosas e até se esqueceram de caminhar. É preferível uma cómoda dieta para adelgaçar, que mover o corpo para eliminar o que comemos. Este é um dos absurdos do nosso mundo: muitas pessoas morrem de fome, enquanto muitas padecem de obesidade.
Os computadores e os telefones adormeceram a nossa imaginação. Em todo o caso, usamo-la para descobrir como funcionam os novos programas que aparecem constantemente no mercado. O domínio técnico ocupa as nossas energias, enquanto a mente definha, submetendo-se a pensar e a escrever conforme estipulado pelos sistemas.
Já não há diálogo. Há a solidão de si mesmo com aquele que supomos do outro lado do ecrã. A convivência é cada vez mais difícil, porque não é o mesmo falar à distância, que olhar nos olhos da pessoa que temos à nossa frente.
Os vocabulários reduzem-se, danificam-se, por mais que saibamos que as regras gramaticais são convencionais; mas perdemos algumas convenções para adotar outras que são próprias de crianças balbuciantes, abreviaturas e sinais que parecem ser uma linguagem mal codificada, em vez de amostras de uma inteligência em desenvolvimento.
O que será das nossas obras literárias no futuro?
Já são muitos os que se desfazem dos seus livros, porque hoje tudo está na Internet… E a cordialidade do papel entre as mãos, do livro que é o nosso companheiro e confidente?
Essas reflexões não significam uma posição contrária aos avanços técnicos ou aos grandes benefícios que nos trazem. Nem tampouco convidam a desfazermo-nos de todos os artefactos que simplificam as nossas tarefas cotidianas, nem voltar a viajar a pé, ou a lançar sinais de fumo aos nossos amigos.
São um convite para reconsiderar os muitos movimentos que perdemos e a inércia que nos invadiu ao nos escravizarmos inconscientemente, às mesmas ferramentas que temos criado.
Temos que recuperar a liberdade interior para sermos donos das nossas ações, para manusear as nossas ferramentas quando for necessário e não de maneira impulsiva; escolher o que vamos fazer sem cair em atos reflexos que se somaram inevitavelmente aos nossos instintos.
Somos humanos, não artefactos; o movimento pertence-nos.
Delia Steinberg Guzmán
Publicado na Biblioteca Nueva Acrópolis em 10-06-2024
Imagem de destaque: Huaca de la Luna – O Deus degolador. Enrique Jara. Creative Commons
Uma realidade que se está a transformar em drama. O tecnicismo e a maquinária já estão a dominar o ser humano. O computador e a informática é que mandam. Outro drama maior é que várias organizações com finalidades espirituais e de prática da fraternidade estão a embarcar nesse comboio perigoso. Uma pessoa quer participar num evento “on line” (num curso, numa inscrição /adesão a uma organização e depara com uma série de dificuldades informáticas que não sabe resolver-não porque seja estúpido ou inculto, mas porque não tem jeito ou paciência para maquinismos de rigor absoluto. Eu tenho, por exemplo, vários amigos com licenciaturas e com mestrados, de competência e inteligência comprovados, que não sabem o que é um zoom, um google meet, que não têm impressora, que não sabem mandar um email. No ano passado 3 amigos meus pretendiam filiar-se numa organização internacional de carácter espiritual com sede na Holanda, mas não sabiam fazê-lo. Ofereci-me. Estive uma hora para inscrever apenas um: nome, morada, email, telefone, nada mais. Ah! E a história de “eu não sou um robot”, clicar num desenho complicado, que voltava sempre ao princípio, dava sempre erro.Uma hora, pasme-se. E, a certa altura, o cursor não se transformava em seta. Não se podia fazer nada.Desisti, não se inscreveram. Escrevi para lá um email, até hoje ainda não recebi resposta. Há anos marcava as minhas passagens de avião no computador. Agora não consigo, tenho de pedir a alguém.Há mais exemplos, mas não quero maçar ninguém. Isto traduz-se , na prática, numa verdadeira exclusão social.Numa exclusão social de pessoas de idade e, ainda por cima, de muita gente intelectualmente qualificada. Cada vez estamos mais dependentes de máquinas, que, tal como a economia, nos estão dominando. E o drama é que organizações com finalidades espirituais (várias) estão caindo neste logro, impotentes para conseguir alternativas fáceis,mesmo até informáticas. Começam a estar adoentadas de insensibilidade e a ficar indiferentes à exclusão social que , mesmo sem intenção, acabam por estar a praticar.,