O movimento é uma das grandes Leis da Natureza. No entanto, e pela dualidade que surge dos pares de opostos, também a inércia é uma lei.

O materialismo, que ganhou tanto crédito nos últimos séculos, introduziu de uma maneira subtil, a inércia no nosso estilo de vida, embora mascarada sob vários subterfúgios para a justificar.

O ser humano, tão rico em recursos práticos e tão débil em consciência espiritual, optou pela preguiça psicológica e física e descarregou a sua quota de movimento em artefactos de diferentes classes.

No passado remoto, quando as condições de vida passaram de itinerantes a sedentárias, os homens usavam animais – mais ou menos domesticados – para os ajudar no trabalho, ou seja, no movimento. E, também utilizaram outros homens, a quem escravizaram, para fugir dos trabalhos duros, os movimentos fortes.

Até aqui, e sem entrar em considerações de utilidade ou moralidade, seres humanos e animais mantiveram-se a um mesmo ritmo, por muito que o chicote pretendesse que uns cavalos, umas mulas ou uns bois puxassem uma carroça com mais velocidade. Havia o limite próprio de cada corpo.

Quando isto não foi suficiente, foram concebidas máquinas, singelas no princípio, depois mais complicadas, mas sempre com a intenção de que as máquinas substituíssem o movimento dos homens, acelerando-o também dentro do possível, num afã de produção, de maior riqueza ou de simples comodidade.

Assim, os humanos passaram a gozar da inércia e os artefactos converteram-se em dóceis escravos que não protestam, mas que, coisa curiosa, acabaram por nos escravizar.

Todos temos múltiplos robôs à nossa disposição e, à medida que correm os anos, são cada vez mais perfeitos, mais parecidos com os humanos ou mais adaptados ao que querem os humanos.

Wi Robot DRK8080. Michael Kuroda. Creative Commons

É tão grande a semelhança, que a qualquer momento poderia produzir-se a rebelião dos artefactos.

Há uma cena curiosa na Huaca de la Luna da cultura mochica no Peru, em que ferramentas, armas e objectos da vida quotidiana se voltam contra os humanos e os atacam.

Seguramente isso não acontecerá como nessas imagens, nem como é descrito em algumas novelas, mas os artefactos irão reduzindo-nos a uma inércia cada vez maior, de modo que sejamos os prisioneiros e eles os verdadeiros amos.

Sem diminuir a importância das máquinas e instrumentos de todo o tipo, que revelam o poder da inteligência criadora, preocupa-nos a redução dessa mesma inteligência, a raiz da proliferação de dispositivos.

Uma locomotiva de comboio pode transportar-nos velozmente de um lugar para outro, sem falar nos aviões. Mas um telemóvel – com todas as suas variedades – ou um ecrã de computador, imobiliza-nos numa cadeira… e paralisa-nos a mente.

Autocarros e outros veículos competem em potência e velocidade, enquanto as pessoas são cada vez mais preguiçosas e até se esqueceram de caminhar. É preferível uma cómoda dieta para adelgaçar, que mover o corpo para eliminar o que comemos. Este é um dos absurdos do nosso mundo: muitas pessoas morrem de fome, enquanto muitas padecem de obesidade.

Macintosh montage 2017. Usuário Warren. Creative Commons

Os computadores e os telefones adormeceram a nossa imaginação. Em todo o caso, usamo-la para descobrir como funcionam os novos programas que aparecem constantemente no mercado. O domínio técnico ocupa as nossas energias, enquanto a mente definha, submetendo-se a pensar e a escrever conforme estipulado pelos sistemas.

Já não há diálogo. Há a solidão de si mesmo com aquele que supomos do outro lado do ecrã. A convivência é cada vez mais difícil, porque não é o mesmo falar à distância, que olhar nos olhos da pessoa que temos à nossa frente.

Os vocabulários reduzem-se, danificam-se, por mais que saibamos que as regras gramaticais são convencionais; mas perdemos algumas convenções para adotar outras que são próprias de crianças balbuciantes, abreviaturas e sinais que parecem ser uma linguagem mal codificada, em vez de amostras de uma inteligência em desenvolvimento.

Coleção Uma Aventura. Tiago Vasconcelos. Domínio Público

O que será das nossas obras literárias no futuro?

Já são muitos os que se desfazem dos seus livros, porque hoje tudo está na Internet… E a cordialidade do papel entre as mãos, do livro que é o nosso companheiro e confidente?

Essas reflexões não significam uma posição contrária aos avanços técnicos ou aos grandes benefícios que nos trazem. Nem tampouco convidam a desfazermo-nos de todos os artefactos que simplificam as nossas tarefas cotidianas, nem voltar a viajar a pé, ou a lançar sinais de fumo aos nossos amigos.

São um convite para reconsiderar os muitos movimentos que perdemos e a inércia que nos invadiu ao nos escravizarmos inconscientemente, às mesmas ferramentas que temos criado.

Temos que recuperar a liberdade interior para sermos donos das nossas ações, para manusear as nossas ferramentas quando for necessário e não de maneira impulsiva; escolher o que vamos fazer sem cair em atos reflexos que se somaram inevitavelmente aos nossos instintos.

Somos humanos, não artefactos; o movimento pertence-nos.

Delia Steinberg Guzmán
Publicado na Biblioteca Nueva Acrópolis em 10-06-2024

Imagem de destaque: Huaca de la Luna – O Deus degolador. Enrique Jara. Creative Commons