O que é um mito? pergunta esta nova geração, ciente de que quando assim o questiona ao seu igual está, sobremodo, a, perniciosamente, adotar uma postura dogmática, afirmando que o mito é uma mentira. Nada podia estar mais longe da verdade, ironicamente. Antes de efetuarmos a receção crítica e o comentário ao mito, convém lembrar dois aspetos importantes: 1) a dimensão histórica; 2) o conteúdo literário. Em relação ao primeiro ponto, o mito de Gilgamesh insere-se num conjunto de obras literárias que surgiram nas antigas civilizações da Assíria e Babilónia e corresponde a um dos mais completos conjuntos de tabuletas de barro no qual foram inscritos caracteres cuneiformes conhecidos por serem uma aproximação ao Linear A e B da civilização do Crescente Fértil, a cintura entre o Nilo e o Eufrates referente à parte norte de África, à Bacia do Mediterrâneo e à incubadora das culturas indo-europeias. Reunidas as tabuletas, como simples artefactos, era necessário recorrer a várias técnicas de decifração do material por intermédio do estudo das raízes linguísticas. Tal trabalho foi desenvolvido com primazia por variadíssimos assiriólogos de renome, sendo o mais importante Andrew George. Tal investigador, mediante sacrifícios e anos de trabalho, foi capaz de produzir a obra “ A Epopeia de Gilgamesh”, ainda pouco conhecida na literatura portuguesa, que representa, surpreendentemente, uma quinta rescrição da tradução das fontes encontradas na Babilónia que, entretanto, estariam dispersas pelo mundo, em vários núcleos arqueológicos, várias universidades e vários grupos de investigação. Era necessário uma mão forte para conseguir, de uma vez por todas, redigir a história e estória de Gilgamesh com base em todas as tabuletas que, até ao momento, os cientistas conseguiram reunir, traduzir e provar que pertence ao mito. O resultado é assombroso. Não só Gilgamesh tem imensos motivos que pertenceram, posteriormente, a uma adaptação do Pentateuco bíblico, como igualmente, tem motivações de índole oral que teriam sido, sem dúvida, adotados por Homero no século IX ou VIII a.C.

De uma maneira geral, o mito tem motivos sacros e profanos que serviram de massa para histórias que hoje movem milhões de seres humanos por razões espirituais ou académicas. As mais antigas tabuletas com excertos datam de 2300 ou 2600 a.C., ainda que não tratem de Gilgamesh diretamente, mas sim de personagens relacionadas com a sua vida e feitos. A mais completa das tabuletas (sendo um total de doze) é a Tabuleta 12, porém é também aquela que reconta a história de outra maneira, contradizendo-a. A mais interessante é, sem dúvida, a Tabuleta 11, na qual surge o famoso mito do dilúvio, tão reproduzido e cuidadosamente adaptado por tantas culturas. A última curiosidade histórica de toda esta parafernália de personagens que havemos de tratar, diz respeito a Sargão. Segundo uma das fontes encontradas, outra das histórias presentes retrata algo bem conhecido da nossa civilização ocidental: o filho indesejado que se torna rei de um povo. Sargão, como Moisés, foi abandonado num rio, num cesto coberto. A mãe dele era uma sacerdotisa, que o concebeu em segredo e, possivelmente, sem cópula (à semelhança dos profetas). O Rio levou-o até Aqqi, guiado pela Deusa Ishtar, onde se tornaria jardineiro e depois reinaria sobre os sumérios, como Moisés sobre os egípcios.

Sargão I da Acádia. Flickr

Tabuleta de argila que relaciona o nascimento de Sargão e a sua disputa com o rei Ur-Zababa de Kish. Museu do Louvre. Wikipedia

Quanto ao conteúdo literário, a história, apesar de aparecer linear em alguma literatura, como por exemplo em Maria Eduarda Lamas (2000), é muito mais complexa e mereceria, se isto fosse um artigo de algum desenvolvimento científico, outros rodeios da nossa parte. Gilgamesh terá sido uma figura real, ou, pelo menos, um mito que bebe da inspiração de uma figura real, já que as fontes lhe atribuem um reinado de 126 anos entre os reis da Suméria. Gilgamesh terá sido um Semi-Deus ou Herói com grande capacidade intelectual e física. Terá tido grande conhecimento do Mundo antes e após o Dilúvio. Ergueu a cidade de Uruk e um Templo, o de Ennea. Os deuses compreendendo e temendo a sua força, enviaram-lhe uma provação, uma criatura tão forte como ele, Enkidu. Ora corria nas florestas dos arredores e nos demais reinos que Gilgamesh já não seria o Homem mais forte do mundo – claramente um mecanismo literário homérico – e, como tal, Gilgamesh procuraria Enkidu e lutaria com ele. O que, efetivamente, aconteceu. Contudo, ao contrário do desfecho em morte, a luta terminou na amizade entre os dois. Os dois partem em aventuras, derrotando monstros e demónios por todo o mundo (físico ou não-físico), até que, para se vingar, Ishtar condena Enkidu uma morte, no mínimo, curiosa. Enkidu não morre violentamente nem envenenado, mas sim depois de cair num “sono estranho”.

Gilgamesh e Enkidu a matar o Touro do Céu. Neo-assírio, VIII / VII século a.C.

Tal acontecimento servia para vingar um dos feitos do amigo. Olhando o seu corpo, Gilgamesh não jura vingança – ao contrário das narrativas mais diretas existentes – mas sim encontrar a solução para a morte. Este primeiro mito sobre a procura da vida eterna ou, pelo menos, a repudiação da mortalidade, como sendo um elemento de sofrimento do Homem, tem várias facetas. No caso de Gilgamesh, levou-o a uma viagem, para encontrar Utnapishtim, o único ser que na altura era reconhecido por ter obtido a imortalidade. Utnapishmin explicou a Gilgamesh que os deuses compensaram-no depois de ele ter construído um Barco-Arca para salvar toda a vida biológica de um Dilúvio. As relações dos elementos entre o Dilúvio de Noé e o Dilúvio de Utnapishtim são assombrosas. Em ambos os casos, as causas do Dilúvio foram os pecados do Homem; o Salvador era o único justo entre os Homens; o herói protestou contra  o Criador pelas ordens meticulosas; o Barco tinha muitos compartimentos, mas apenas uma porta e, talvez, uma janela; os únicos passageiros eram ou familiares ou elementos próximos; todas as espécies animais entraram no Barco; a duração do Dilúvio é variável: 40 dias no caso de Noé e 6 dias no caso de Utnapishmin; no final do dilúvio, foi uma ave que encontrou terra; a Arca ou Barco atracou numa montanha em ambos os casos e, finalmente, houve um sacrifício e uma bênção depois da viagem.

Arca de Noé na montanha de Ararat. Pintura de Simon de Myle a partir de 1517 / Wikipedia

Depois desta história, presente na Tabuleta 11, Gilgamesh pede a Utnapishmin para que lhe demonstre como aceder à imortalidade. Há claramente um desvio ao pedido, sendo que, muito provavelmente, a questão da imortalidade sem resposta serviria, a dada altura, para o Homem compreender que teria que aceitar a Morte física como sua companheira. Ainda assim, a história de Gilgamesh acaba com o regresso a Uruk e, nessa mesma cidade, encontra uma planta no fundo do mar, a qual é a promessa da eternidade. Porém, distraído, entretanto, uma serpente come a planta, rapidamente mudando de pele e seria, assim, que as serpentes começariam a ser o símbolo da mudança e da sabedoria, mas também um símbolo do traiçoeiro e do esguio. Gilgamesh acabaria os seus dias sem nunca encontrar a imortalidade, mas sendo compensado por uma história que ficaria como pedra-basilar nas tradições literárias de múltiplas civilizações.

A história de Gilgamesh é, deste modo, a prova do elo. Múltiplos fatores estão enredados na sua tradição que, de um modo ou outro nos provam isso. Um elo é algo que dá continuidade a uma História ou Tradição ou um segmento das mesmas, ora pela sua importância estética/literária ora pelo seu significado ritualístico. O mito de Gilgamesh é uma epopeia de elo, por vários motivos: 1) Representa uma tradição que irá servir de fontes a, pelo menos, duas outras composições literárias que representam para nós, na atualidade, elementos de uma profunda importância: a Bíblia e os Poemas Homéricos; 2) Influencia a Bíblia, por recontar algumas histórias e elementos que serão readaptados de outras formas numa matriz judaico-cristã, como por exemplo o já explicado elemento do Dilúvio, mas igualmente a história de Sargão (Moisés), a ideia da procura desassossegada da imortalidade (o Homem sem paz no seu coração) e a Serpente que representa o Universo que suga os sonhos do Homem e os devolverá noutro ciclo (e, por isso, come a própria imortalidade); 3) Os Poemas Homéricos, devido às ideias do heroísmo antropomórfico e dos valores do Herói aquando da explicação da Epopeia: a honra, a procura, a guerra, a lealdade, a amizade, a rebeldia perante os deuses, o sentido de missão, a paz, a sabedoria na velhice, o desassossego na juventude, a tristeza na morte e o delírio no falhanço. Aqui podemos nós também acrescentar a ideia de que os deuses estão reunidos num concílio e decidem sobre a vida dos Homens ou dos Heróis conforme as suas obras e os seus valores. Por exemplo, Utnapishmin foi compensado por ter feito a Arca, mas Enkidu foi morto depois de ter desrespeitado a vontade dos deuses. Nesse ponto, há também uma correlação com toda a cultura judaico-cristã, a ideia de que o Divino (sejam os deuses ou Deus) humilha os sentimentos mais altos (soberba, ganância, narcisismo, egoísmo) e exalta os valores mais baixos (temperança, humildade, simplicidade). Tal é uma forma de anulação do ego, expresso através de parábolas ou alegorias, como as histórias presentes. Por último, seremos obrigados a considerar que a raiz de todas estas Histórias é, talvez, uma mesma vontade de uma continuação de valores, daí que sejam um elo entre as histórias que, curiosamente, nasceram todas no Crescente Fértil e que estão presentes em elementos sacros e profanos da nossa civilização.

Mapa do Crescente Fértil. Wikimedia Commons

A epopeia de Gilgamesh é um elemento literário de profundo significado histórico e merecia uma divulgação mais conhecida, tanto em Portugal como por todo o mundo. A obra tem elementos que necessitam de um estudo interdisciplinar mais aprofundado, tanto dentro como fora do circuito académico. Cabe a esta nova geração de investigadores procurar, entre as linhas do passado, as mensagens do presente para o caminho do futuro.

Gilgamesh dominando um leão. Alívio da fachada da sala do trono, Palácio de Sargão II em Khorsabad. Wikimedia Commons

Obras consultadas:
Maria Eduarda Lamas, Mitologia Geral (2000), Editorial Estampa, Lisboa;
Andrew George, The Epic of Gilgamesh (1999), Penguin Classics, London;