Natura non facit saltus (a natureza não dá saltos; a natureza não cria modelos, espécies ou géneros absolutamente independentes, pois há sempre elos mediadores que os unem)

W. Leibniz, Novos Ensaios, IV, 16

O símbolo é a expressão pictórica de uma ideia ou de um pensamento (…) Um símbolo é, portanto, uma parábola registada, e uma parábola é um símbolo falado.

P. Blavatsy, The Theosophical Glossary, London, 1892

A sociedade do nosso tempo, confronta-se sistematicamente com a natureza das fontes para credibilização do conhecimento. As fontes do conhecimento são frequentemente confundidas com as fontes de opinião e de informação, que tendem a causar, ainda mais desordem no seio da Humanidade, pela conflitualidade da avalanche dos fluxos informativos, geradores de múltiplos focos de tensão entre essas próprias fontes. A civilização atual parece incapaz de criar novos mitos, sobretudo aqueles que teriam a capacidade de construir as pontes entre os diversos ramos do conhecimento. É cada vez mais necessário olhar o Todo, sem perder de vista o particular, e exercitar a visualização dos elos mediadores, para capacitar gradualmente a Humanidade, com a compreensão dos fundamentos para a sua existência. Foram os mitos que chegaram até nós, que impulsionaram o ímpeto científico, pois ambos têm a mesma origem, sendo duas faces da mesma moeda.

O mito tem uma natureza observante e fenomenológica, é interno ao fenómeno, tal como a ciência o é, e por isso é transversal e naturalmente intrínseco às diversas civilizações, amplamente identificado com o primeiro estágio do conhecimento científico, que consiste na observação. Esta natureza observante, persistente e interior, é uma necessidade da inteligência humana, que torna possível a construção do mito e da ciência, por intermédio da individuação das ideias. Mas é importante sublinhar, que nem o mito, nem a faculdade científica são percecionados da mesma forma, em todos os seres humanos, apesar de, como já foi inferido, ambos são uma função da inteligência.

A mente observa e interpreta a realidade. Domínio Público

A observação dos fenómenos não se restringe ao aparelho da visão, atendendo que a mente humana é naturalmente propensa a refletir-se no objeto dos seus sentidos externos, e assim, requer a apreensão dos fenómenos, pela imaginação e criatividade, quer seja no contexto do mito ou da ciência, diferenciando-se apenas pelas suas metodologias. Para exemplificar, a Psicologia, somente se tornou um ramo independente da Filosofia, em finais do século XIX, contudo jamais abandonou os mitos tão representativos do comportamento humano, entre outros, o complexo infantil de Édipo, a intensa vaidade de Narciso, a enorme expetativa de Pigmalião, a persistência de Sísifo, as perceções da Psique, a masculinidade de Priapo, a memória de Mnemósine, a consciência alternativa de Hipnos e a sensualidade de Afrodite, comprovando-se assim, a apreensão pela ciência psicanalítica, dos comportamentos humanos, representados na mitologia.

Convirá referir a multiplicidade das facetas mitológicas, desde a tradição oral, com o seu simbolismo próprio, os relatos simbólicos passados de geração em geração, a relação entre as forças da natureza e as dimensões da condição, e do comportamento humanos e as narrativas heroicas. Os mitos obedecem a uma construção mental de algo que é observado e idealizado, e que assumiu uma grande influência na história do pensamento, fazendo jus à citação de Helena Blavatsky que a mitologia é o repositório da ciência mais antiga do Homem. Podemos então, numa primeira análise, questionar como aparece esta necessidade do espírito humano se envolver e evoluir com os mitos.

Como referiu Leibniz, a Natureza não dá saltos, pois tudo segue o seu trajeto, cumprindo todas a etapas da evolução, e no contexto desta ideia de continuidade, a essência primitiva do mito teve a sua origem na predisposição natural do espírito humano, para discernir racionalmente o seu próprio meio envolvente e o seu interior. Este espírito deu-se conta da sua capacidade instintiva, ir mais além, porque se apercebe da necessidade de interpretar os fenómenos, depara-se com o poder dos sonhos, com a interação das alucinações e mais tarde, com a interferência do mundo ilusório, porém, tomando cada vez mais consciência da sua ligação ao divino. É o próprio ser humano que se vai tornando clarividente, da sua natureza divina, através da perceção religiosa natural mais comum, designada por animismo, que lhe permite transpor a consciência da sua natureza animal, porque a sua anima congrega tantos poderes, como aquele que permitiu o discernimento da permutabilidade entre o mito e a ciência.

Não devemos desprezar os efeitos das construções sociais dos tempos modernos, que foram desviando e distraindo o ser humano dos princípios espirituais e materiais do mito, e até mesmo a própria ciência se deixou contaminar por tais manipulações sociais. Na linha da visão do homo duplex, promulgada por Émile Durkheim (1858-1917), segundo a qual o ser humano, é um organismo biológico, movido por instintos, com desejos e apetites e, simultaneamente conduzido pela moralidade e outros elementos gerados pela sociedade. Tal efeito de socialização, também gera conflitos de natureza epistemológica, que são bem patentes em alguns escritos de Helena Blavatsky, nos quais demonstra as confrontações ideológicas entre os mitólogos, egiptólogos e atores da ciência, do seu tempo. Não cremos que tais comportamentos sejam nefastos no quadro da evolução do conhecimento, pois é o próprio modus operandi, de maturação da construção desse caminho de debate, de dialética, de confronto de opostos, geradores de epistemas em constante mudança. Acrescentaríamos ao modelo de Durkheim, o homo triplex, a sua dimensão metafísica, naturalmente interferente na construção do mito e da ciência, porque sem a metafísica, a ciência tornar-se-á incapaz de recriar, transformar, inovar, o caminho do conhecimento, nas suas diferentes vertentes.

O mito catapultou a expressão simbólica, talvez para resguardar um conhecimento que ainda estava inacessível ao comum dos imortais (mortais apenas porque não se dão conta da sua imortalidade), para registar e arquivar esses ensinamentos, que teriam de esperar pelo momento da maturidade intelectual e moral do ser humano, necessário para a sua autêntica assimilação. O conhecimento traduzido por símbolos e a extensão da narrativa mitológica, não se dissociaram da relação com as diversas instituições e academias científicas, mas não deixa de ser evidente, a confrontação que os emblemas e os símbolos, desenvolveram nos atores da ciência. Então, parece coexistir uma espécie de paradoxo, quanto à assunção simbológica, quando constatamos a presença de emblemas e de símbolos na representação dessas instituições.

Selo da Academia das Ciências de Lisboa (1779), Academia das Ciências de Lisboa

A título de exemplo, entre muitos outros, a Academia das Ciências de Lisboa tem como máxima no seu brasão, Nisi utile est quod facimus stulta est gloria (Se não é útil o que fazemos, vã é a glória), parecendo ter uma representação de elementos misturados da efígie da República e de Hermes ou Mercúrio, que segura na sua mão esquerda, o brasão de Portugal, e na sua mão direita, o caduceu (sem asas) e, ainda aos seus pés, tem a presença de um mocho. Ora, o caduceu tem duas serpentes entrelaçadas, que representando o número oito, também simbolizam o equilíbrio entre as forças antagónicas, o movimento cósmico eterno, o fundamento de regeneração e de infinito. E o mocho como símbolo da sabedoria. Concluímos assim, que as instituições de ciência, pelo mundo fora, não conseguiram abandonar a força e a atração dos símbolos que estão intrinsecamente conectados com os seus objetivos e natureza.

Nesta trajetória da construção do conhecimento, torna-se interessante evocar alguns exemplos de fenómenos que foram inicialmente, retratados na sua versão mitológica, para que mais tarde, a ciência viesse expressar a sua interpretação do fenómeno. Um desses exemplos, é o magnetismo terrestre, cuja manifestação deu motivos para uma leitura mitológica, no seio dos Antigos. Por exemplo, o astrónomo, geógrafo e matemático, Ptolomeu (90-168), mencionou que nas proximidades da ilha de Bornéu, existiam montanhas com grandes poderes de atração, e por isso, os navios eram construídos com cavilhas de madeira, para que os pregos de ferro não fossem arrancados, pelos efeitos da magia dessas montanhas. Este fenómeno transformou-se na lenda da montanha magnética, persistindo até ao século XVII, até que William Gilbert (1544-1603) viesse interpretar os mecanismos para a teoria moderna do magnetismo. Sobre este tema também, o cartógrafo português Luís Teixeira (séc. XVI), elaborou uma carta de navegação onde estavam representadas as linhas isogónicas, ou seja, as linhas de igual declinação magnética, tão fundamental para proceder às correções de navegação, sendo necessário um reajustamento nas bússolas.

Linhas isogónicas positivas (vermelhas), negativas (azuis) e declinação nula (verdes), National Centers for Environmental Information (USA)

Em 1538, D. João de Castro (1500-1548), registou este fenómeno, no cabo das Agulhas, na ponta mais a sul do continente africano, com a seguinte descrição, no seu roteiro Esmeraldo de Situ orbis: (…) Este cabo das agulhas he o lugar onde os pilotos tem por máxima que as agulhas lhe não varião cousa alguma(…). Também o navegador Cristóvão Colombo, em 1492, já tinha anotado no seu diário de bordo, que em certas regiões do Atlântico Norte, quando navegava para o Novo Mundo, as agulhas nordesteavam, dando conta, sem ter conhecimento, desta variação da declinação magnética. A observação deste comportamento geofísico, deu inicialmente origem à lenda da montanha magnética, para mais tarde, a ciência explicar este fenómeno com a sua própria linguagem. A ciência per se não tem intenção em despersonalizar o mito, apesar de nos deixar uma ideia contrária, sobretudo desde o século XIX, fruto dos posicionamentos enraizados no positivismo dos seus intérpretes.

Nesta convivência entre o mito e a ciência, não podíamos deixar passar, tudo aquilo que nos deixou a fonte da tradição oral, com a sua simbologia própria, quanto aos fenómenos meteorológicos e do clima, os quais assumem, cada vez mais, uma enorme influência na vida de todos nós. Em 1996, o meteorologista Manuel Costa Alves conseguiu identificar cerca de 1900 adágios populares contextualizados com a ciência meteorológica e do clima. Desde a navegação marítima e aeronáutica, passando pelos efeitos que o tempo e o clima têm na agricultura, até à interferência que estes fenómenos têm no nosso comportamento quotidiano, a observação meteorológica, desenvolveu precocemente, as suas relações com o ser humano. Sem podermos contextualizar todo esse imenso adagiário popular do tempo e do clima, recorremos a um exemplo que já vem desde os princípios do século XVI, quando os portugueses sistematizaram o caminho de ida e volta, para o Extremo Oriente, desde Lisboa.

A estrela Polar ou Polaris foi fundamental para a navegação astronómica no hemisfério norte, para medição da latitude no período das grandes viagens marítimas, Torsten Bronger. Creative Commons

Refere o adagiário, que no regresso das naus que vinham da Índia, carregadas de especiarias, e aproximando-se do destino, entre a Madeira e os Açores, era comum ouvir-se: Polar pelo velacho, dois pingos de água, terreiro do pacho. O que significava esta linguagem carregada de símbolos? Quando se encontravam bem avançados no hemisfério norte, e a leitura astronómica indicava que a estrela Polar estava alinhada pelo velacho (uma das velas que se encontra no mastro de proa, habitualmente utilizada com vento forte e favorável), dois pingos de água, porque chovia quase sempre, no termo da viagem, devido ao sistema frontal típico dos Açores, e seguiam em cruzeiro até ao tão ansiado destino final, o Terreiro do Paço em Lisboa. É interessante analisar, como sem o conhecimento das explanações dos comportamentos geofísicos, os navegadores dessa época observaram atentamente este fenómeno repetitivo, traduzindo-o através de um adágio, que se plasmou no tempo.

Outra referência importante feita por Helena Blavatsky, diz respeito às fragilidades provenientes da aceitação da letra morta da Bíblia, e de outras fontes sagradas. Todos estes textos foram escritos num contexto histórico muito específico, e em condições de profundo despertar interior, de ampla reciprocidade com o divino, um tempo de visualizações imateriais, coletivas e individuais, incompreendidas no materialismo do nosso tempo. Épocas onde o mito e a profecia se confundem, interpenetram, transcendem, dialogam, em busca da identidade e natureza da alma ou espírito, que em sânscrito é atman, o espírito universal, o nephesh ou ruach, em hebraico, a psiqué, do grego, a animus, do latim, cujo significado deriva da ideia de respiração, relacionados também com o sopro ou o vento. Esta realidade conhecida dos estoicos, o pneuma, ou seja, a força racional que rege o mundo e que originou no cristianismo, a imagem do parákletos, aquele que é chamado para ajudar, o intercessor, o mentor, o paráclito ou o Espírito Santo, como referiu Santo Ambrósio (c. 340-397): o Espírito Santo não faz parte das criaturas e das coisas criadas, mas está acima de todas as coisas criadas. Se aceitássemos a palavra morta dos textos sagrados, nem conseguiríamos discernir o ecletismo do mito, tão bem patenteado nesta multiplicidade de representações do espírito universal.

Esta interpretação no texto bíblico daria lugar ao mito do Quinto Império, oriundo da extensão criativa, simbolizada na profecia de Daniel, do Antigo Testamento, e de certa forma relacionado com a idealização do mito messiânico, pelo abade cisterciense, Gioacchino da Fiori (1135-1202), isto é, o advento da plena vivência espiritual, na era do Espírito Santo. Este filósofo místico recriou as Idades da História, fundamentadas nas três Pessoas da Santíssima Trindade. A Primeira Idade, consubstanciada no poder absoluto, de Deus Pai, simbolizada e intrínseca a todo o Velho Testamento. A Segunda Idade que converteu a sabedoria divina em revelação, simbolizada na letra viva do Novo Testamento. A Terceira Idade, claramente identificada com o mito messiânico, que ainda não chegou, simbolizada na pomba branca, que anuncia o amor e a fraternidade universal, na regência da Terceira Pessoa da Trindade, ou a via para a regeneração plena da convivência humana e a perfetibilidade das relações com o divino.

E aqui, esta entidade merece ser comparada com um dos deuses da Trimurti, a Trindade do Panteão do hinduísmo, identificados com cada um dos três gunas: representado por Brahma, o criador personificando o Rajoguna; Vishnu, o preservador, que incorpora Sattvaguna; e Shiva, o destruidor-regenerador, que interioriza o Tamoguna. Neste exercício de simbologia comparada, encontramos semelhanças entre a natureza pura do indivíduo sattvico e aquele que está preparado para conviver na plenitude do Espírito Santo, sendo irrelevante a comparação linear e direta, entre a Santíssima Trindade e a Trimurti. O que importa reter é o carácter universal do mito e da profecia, presente em tradições filosóficas e religiosas tão diferenciadas, no seu contexto temporal e geográfico.

O profeta Daniel, do Antigo Testamento, ajoelhado perante o rei Nabucodonosor e o sacerdote idólatra do rei. Daniel está a interpretar o sonho do rei sobre os reinos do mundo. Uma representação do sonho é mostrada ao lado do rei, Gospel Media

Como sublinha Blavatsky, não devemos cair nos erros mais grosseiros e supersticiosos, que aqueles produzidos pela mente de um selvagem, apesar deste já conter a semente do divino, cabe-nos interiorizar efetivamente o valor e o alcance da simbologia, presente nos textos sagrados. Neste âmbito, e voltando ao exemplo da profecia de Daniel, podemos recorrer às observações muito profundas realizadas pelo filósofo natural, Isaac Newton (1642-1727), um vulto da ciência que explorou os meandros da mecânica clássica, mas muito imbuído nas suas reflexões metafísicas. Mas no caso específico, basta-nos contextualizar genericamente, o sonho do rei Nabucodonosor, profetizado por Daniel, e interpretado por Isaac Newton. Então, nesse sonho, havia uma estátua que representava quatro grandes nações, cada uma com o seu metal, como símbolo: a Babilónia com a cabeça de ouro; a Pérsia com o peito e braços de prata; a Grécia com o ventre e coxas em bronze; e Roma com as pernas em ferro.

O valor simbólico relativo destes metais era bem conhecido à época do profeta Daniel, facto que mais tarde, a ciência viria a comprovar pela posição que cada um, desses metais, ocupa na tabela de potencial de equilíbrio. Por outras palavras, e de forma simplista, trata-se da capacidade que um metal tem para não se deixar corroer, através de um determinado processo eletroquímico, quando dois metais estão em contacto, designado por corrosão galvânica, em que um deles sofre uma corrosão preferencial em relação a outro. Foi graças a Walther Nernst (1864-1941) que em 1889, elucidou sobre a teoria das pilhas galvânicas, conseguindo determinar o seu potencial eletroquímico. Então, no caso da profecia de Daniel, e segundo a interpretação de Newton, o ouro é o metal mais nobre, seguido da prata, bronze (liga de cobre com estanho) e ferro, fazendo-nos crer numa decadência intrínseca e gradual daqueles impérios. Muito do nosso legado civilizacional ocidental, advém do quarto império, que era representado pelo império Romano, simbolizado pelo ferro, um metal que se deixa facilmente corromper ou corroer, mas que nos faz aspirar ao advento do Quinto Império, que emergirá sobre os anteriores, que crescerá e perdurará até ao fim dos tempos, indestrutível, num estado de consciência absoluta, onde o Ego Humano atingiu o mais alto grau de perfeição. O Quinto Império como condição para a ascensão ao Nirvana.

Podemos concluir que a intensa complexidade do conhecimento é um dos maiores desafios para a evolução da Humanidade. Este caminho não é compatível com a diminuição ou desprezo por qualquer área do conhecimento, procurando correlacionar todas as suas redes que se entrecruzam, e que se complementam, agregando todas as ligações possíveis, sem deixar de parte, os domínios profético, mitológico e simbólico. Ainda não temos a consciência discernida para olhar o todo, a partir das partes. Mas sem a continuidade em perseguir a ligação das partes, jamais conseguiremos interiorizar o todo.

Carlos Paiva Neves

Imagem de destaque: O poeta romano Virgílio, aqui retratado no manuscrito do século XV Vergilius Romanus, preservou muitos detalhes da mitologia grega nas suas composições. Domínio Público