Quando Richard Wagner estava a começar a idear o seu Parsifal, e tinha lido, quase com desagrado o tão complexo e superficial livro de Wolfram von Eschenbach, escreveu uma carta a Mathilde Wesendonck sobre as suas reflexões a seu respeito.

Explicava à sua amada, a quem lhe inspirou a sua Isolda, que queria focar o drama na personagem de Amfortas, o rei do Graal que sucumbiu à tentação da matéria, com a angústia de servir Deus, e senti-lo, espiritualmente, no seu próprio sangue e corpo ferido pelo mal. Mas, claro, era impossível fazer esta ópera sem que o herói Parsifal radiasse mais e mais protagonismo, quem no final irá redimir o rei caído.

Parsifal foi o personagem eleito por Wagner no seu último, e quiçá, o mais sublime dos seus dramas. Antes de escolhê-lo tinha pensado fazer um drama musical sobre Siddhartha Gautama, o Buda e as suas tribulações antes de conquistar a verdade definitiva e a libertação. Influenciado por Schopenhauer e outros filósofos alemães que começaram a centrar-se nesses temas[1] e metafísicas. Mas deve ter percebido que ainda não era o momento. Também poderia ter escolhido um santo que é a versão medieval do Buda, São Josafat. A narração da vida do Tathagata transformou-se na mente medieval no eremita Josafat (contração fonética de «bodhisatva») e  nos seus encontros com Barlam. O próprio Lope de Vega não foi alheio à beleza desta história e teatralizou-a.

Mas por fim Wagner decidiu-se pelo herói arturiano Parsifal, com o seu próprio ideal de compaixão. Cristão, mas num contexto que aceita e ensina a reencarnação, como vemos no libreto deste último drama musical do autor de O Anel de Nibelungo.

Parsifal. Museu do Prado, Madrid. Snappy Goat

Bem, nesta obra, em Parsifal, aparece uma personagem, que finalmente se torna ainda mais importante do que Amfortas e do que o herói do Graal. É Kundry, que sob o poder magnético do feiticeiro Klingsor, tenta os cavaleiros do Santo Cálice e converte-os em detritos, em escravos, se não sucumbissem antes diante do encanto das raparigas flores.

Numa chave, Kundry deve ser a «heresia da separatividade», pela qual dá mais importância a si mesmo do que à ordem natural, ao vínculo com tudo o que existe e vive, ao Eu universal. Noutra é a Luz Astral, a alma psíquica da Natureza, em todos os seus registos, desde os mais excelsos e luminosos até aos mais infernais, aquela serpente, que com os seus anéis tenta sufocar o aspirante à liberdade suprema, e que chamamos de mal. Mas que na sua dimensão mais pura e brilhante, na sua face divina, pura luz, pura sabedoria, é a serpente da eternidade, da luz espiritual, luz que como a física banha e tece e envolve o infinito em si, dentro e fora. Demon est Deus inversus.

No texto do libreto de Wagner, ela ri-se do Salvador:

«Ai! Por acaso não conhecias a maldição que, desperta ou adormece, viva ou morta, na alegria ou na tristeza, me atormenta incessantemente, com uma dor cada vez mais aguda e penetrante. Eu o vi… vi-o e… ri-me! Então, Ele olhou para mim! E agora procuro-o de mundo em mundo para me encontrar com Ele novamente. Quando estou realmente desesperada, creio que os seus olhos me olham de perto, e que o seu olhar repousa sobre mim. E mais uma vez essa risada amaldiçoada surge de mim, quando um pecador cai nos meus braços! E rio! Rio! Não posso chorar, apenas gritar, vagar, enfurecer-me, numa noite interminável de loucura, da qual, acordo arrependida. Por Ele definhando de desejo, conheci-o, de Ele zombei, deixa-me que chore sobre o Seu peito, contigo, apenas por uma hora, e embora Deus e o mundo me tenham rejeitado, contigo serei capaz de livrar-me dos meus pecados e de me redimir.»

Parsifal supera esta prova e Klingsor não pode feri-lo com a Lança Sagrada, que passa para as mãos do herói, e com ela e com a sua magia desfaz e faz cair em ruínas toda a fortaleza do feiticeiro.

Kundry amaldiçoa-o, amaldiçoa os seus caminhos, torna-se no labirinto que ele terá que superar, sem o fio de Ariadne, mas com a luz da sua fé e pureza. Ou seja, quem o coração das trevas derrotou, ainda terá que enfrentar milhares de provas, sofrimentos e fadigas para regressar ao Castelo do Graal e se tornar no seu novo rei, redimindo Amfortas:

«Se saísses daqui, se tentasses encontrar todos os caminhos do mundo, os trilhos que procuras, não os encontrarias: amaldiçoei para ti esses caminhos e trilhos que te trouxeram até mim.»

Mas, finalmente, esta mulher de milhares de anos, que renasce com a natureza na Primavera, que dorme no Inverno, que conhece as propriedades e remédios de plantas e venenos, que socorre com a sua ciência e a sua humildade cada uma das dores dos cavaleiros do Graal, e que viaja as distâncias, voando, à velocidade do pensamento, também é redimida e banha com os seus cabelos e lágrimas os pés do Salvador, o novo rei do Graal. A Natureza só cede ao olho puro do Espírito, como nos ensina este maravilhoso livro, «Voz do Silêncio»:

«Ajuda a Natureza e trabalha com ela; e a Natureza te olhará como um dos seus criadores e te prestará obediência. E abrirá de par em par, as portas das suas câmaras secretas, e revelará diante do teu olhar os tesouros escondidos nas profundezas dos seus seios puros e virgens. Imaculada diante da mão da matéria, ela mostra os seus tesouros apenas ao olho do Espírito, o olho que nunca fecha, o olho para o qual não existe véu em todos os seus reinos.»

Kundry

Misteriosa personagem, a de Kundry, e tão misteriosa como a que fala no texto gnóstico «O Trovão», e que parece representar a infinitude da luz e sombras da alma da Natureza, a luz espiritual no seu extremo e o abismo da matéria no outro, e todos os passos em que a luz do Logos Solar penetra no seu íntimo coração .

Texto maravilhoso, este do Trovão, um desafio para todos os filósofos e eruditos, tentar decifrar o significado e o porquê do que disse.

Kundry, pintura da autoria de Rogelio de Egusquiza, Museu do Prado, Madrid, 1906. Domínio Público

Seguindo os estudos e tradução de Antonio Piñero[2], este opúsculo[3] faz parte do compêndio encontrado em Nag Hammadi em 1945. É, em particular, o segundo dos oito tratados do Códice VI, e o seu título é, em copta grego (greco-copta), «tebronte: nous nteleios», que traduz como «o trovão: o intelecto perfeito». O texto segue o formato das chamadas aretologias, em que se enumeram as perfeições (areté) de um deus ou deusa, por exemplo, as Isíacas, na forma: «Eu sou…», mas também tem o espírito e a forma dos paradoxos enigmáticos, tipo koan zen, da filosofia grega antiga.

Quem fala, como Kundry, é uma Sofia-Eva. Eva tentadora, Sofia redentora. A luz da sabedoria e o ímpeto avassalador da vida. As águas doces do céu e as abismais e salgadas da cosmogonia mesopotâmica (Apsu e Tiamate, respetivamente). Luz que guia, calor que abriga e ampara, fogo que consome.

 

Vejamos algumas de suas declarações:

«Eu sou a que foi enviada do poder e veio para aqueles que pensam em mim e fui encontrada naqueles que me procuram. Olhai para mim, os que pensam em mim e escutai-me, ouvintes. Os que me estão esperando, acolham-me junto de vós; e não me tirem da vossa vista; e que não me odeie nem a vossa voz nem o vosso ouvido; e não me ignorem em nenhum lugar ou em qualquer momento.

Atenção! Não me ignorem. Pois eu sou a primeira e o última, a honrada e a desprezível, a prostituta e a respeitável, a esposa e a virgem, a mãe e a filha, os membros da minha mãe, a estéril e aquela que tem muitos filhos (…) o conforto dos meus sofrimentos, a noiva e o noivo; e foi meu marido quem me gerou. Eu sou a mãe do meu pai e irmã do meu marido; e ele é o meu rebento (…) sendo ele o meu rebento no tempo, a minha potência dele. Eu sou o cajado do seu poder na sua juventude e ele é o varapau da minha velhice; e o que ele quer é o que me sucede. Eu sou o silêncio incompreensível, a ideia cuja memória é frequente, a voz cujo som é variado e a palavra cuja aparência é múltipla; Eu sou a pronúncia do meu nome.

Por que me amam os que me odeiam e me odeiam os que me amam? Aqueles que me negam, confessam-me; e aqueles que me confessam, me negam. (…) Porque sou o conhecimento e a ignorância, a vergonha e a ousadia, sou poderosa e estou assustada, sou a guerra e a paz.» (…)

Eu sou a que foi odiada e amada em todos os lugares. Sou aquela a que chamam Vida e chamaram Morte, a que chamam Lei e chamaram falta de Lei. (…)

Eu sou o julgamento e a exculpação. Eu, eu estou livre do pecado e a raiz do pecado procede de mim. Eu sou aparentemente o desejo e o autodomínio existe dentro de mim. (…)

Portanto, prestem atenção, ouvintes, assim como vós também, anjos, e aqueles que foram enviados, e os espíritos que se ergueram dos mortos. Pois, eu sou a que unicamente existe e não tenho quem que me julgue. De facto, são muitas as formas agradáveis que existem nos múltiplos pecados e devassidões e paixões vergonhosas e prazeres efémeros que os retêm até ficarem sóbrios e se apressarem para os seus lugares de descanso. E me encontrarão nesse lugar, viverão e não morrerão novamente».

Nada pode excluir da vida qualquer um desses contrastes e até contradições, e todas elas são mãe de conhecimento e experiência. Como disse Miguel de Unamuno, é de alma medíocre quem não aceita paradoxos, pois é o reino em que estamos evoluindo. Claro, que esta mesma evolução nos exige vencê-las, ou harmonizá-las, ou encontrar o lugar certo de cada uma destas verdades, e não confundir caoticamente o que está acima com o que está abaixo.

 

José Carlos Fernández

Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal

[1] Recordemos a paixão de Beethoven pelos Upanishads, cinquenta anos antes.

[2] Ele mesmo declara que «é um pedaço de vigor extraordinário, sem paralelo na literatura antiga».

[3] «Textos Gnósticos» Biblioteca de Nag Hammadi I: Tratados filosóficos e cosmológicos. Edição de Antonio Piñero, pág. 451 y ss.