Dentro da fortaleza mais ou menos estável que somos e vamos sendo, ou que acreditamos ser, oculta-se a nossa verdadeira identidade, à qual só não somos mais fiéis por falta de espírito de aventura e por medo do que por lá possamos encontrar, mas, sobretudo, por medo do que até lá possamos perder, por mais impessoal e transitório que isso seja. Por não sabermos que nome receberemos e que nome deixaremos de ter, que tesouro interno encontraremos e que tesouro ficará por achar à superfície, entre tantas outras desculpas para não avançarmos em direção a nós mesmos. Às portas desta fortaleza, as quais não nos atrevemos a atravessar, como que estacados na antecâmara de um túmulo, vamos aguardando por melhor oportunidade e perdendo a vontade de entrar, vamo-nos esquecendo de procurar a nossa essência e aceitando tudo o que nos possa, ainda que falsa e momentaneamente, saciar e dar uma identidade. Mas bem sabemos que sem entrarmos na nossa fortaleza, não nos aproximamos de nós próprios, nem sequer dos outros, e vamos assumindo a solidão e os comportamentos estranhos, vamos vagueando por onde não habita a civilização e vamo-nos tornando violentos, porque nos invade toda uma legião onde nos perdemos e dificilmente nos voltaremos a achar. Às portas desta fortaleza, vamos encontrando muitos nomes e muitas aparências de resposta, mas não as perguntas que deveríamos fazer, não nos perguntamos quem somos nem como nos chamamos, pois, se o fizéssemos, isso quereria dizer que estávamos prestes a entrar e a iniciar um caminho de autodescoberta. No entanto, por sorte, mesmo que não nos perguntemos a nós mesmos como nos chamamos, durante as nossas muitas oportunidades de convivência, alguém acaba sempre por aparecer e nos colocar essa pergunta, para a qual teremos de dar muitas respostas, ou nenhuma, a quem diremos ter muitos nomes, ou nenhum, muita coisa que nos defina mais ou menos, ou nada em concreto, mas o importante é que isto nos põe a pensar sobre o que realmente somos, quer não saibamos o que dizer, quer digamos coisas a mais, incapazes de expressar alguma individualidade real. Mas isto põe-nos, realmente, a pensar e lança-nos num diálogo interno. Há quem, astutamente, prefira autoproclamar-se “ninguém” e há quem, por indecisão, não tenha outro remédio que não seja autoproclamar-se “legião”, há quem saia vitorioso do vazio e há quem permaneça derrotado pelo já preenchido, há quem seja Ulisses prestes a cegar o Polifemo e quem seja possesso diante de Cristo, há quem abra os braços à vida e a salve e há quem os feche à vida em gesto de súplica, pedindo antes para ser salvo. É pensando em todas estas questões que nos vão assaltando e vivendo os desafios e as muitas dúvidas que nos fazem voltar para dentro à procura de resposta, que podemos encontrar algum consolo e resposta na parábola do Possesso de Gerasa, já que esta ecoa alguns dos estados em que nos vamos encontrando ao longo do dia e ao longo da vida, quando estamos às portas de um túmulo ou às portas do que nos deixámos ser e, sobretudo, quando nos perguntam e quando nos perguntamos a nós mesmos quem somos e quando, perante a pergunta, nos descobrimos cheios, multifacetados e invadidos, sem espaço para nós mesmos, sem resposta adequada.

Quem sou? Imagem de Chico Lype LPO. Pixabay
Há alguns anos atrás, da primeira vez que lemos a parábola de Marcos, não diretamente na Bíblia, mas numa citação que dela se fazia num artigo anónimo sobre doenças nervosas e possessões demoníacas, houve uma frase esquizofrénica que nos impactou muito: «o meu nome é Legião, porque somos muitos». Como temos muito bons filósofos por instrutores, já nessa altura havíamos aprendido que o coração deteta a resposta muito antes de a mente ser capaz de formular a pergunta, e detivemo-nos neste dito por alguns minutos, como que à espera de uma revelação. A verdade é que se passaram horas, dias, meses e até anos, e muitas vezes nos vinha o dito do possesso de Gerasa à mente, identificávamo-nos com a resposta, mas não encontrávamos a derradeira pergunta que a precipitava, nem o porquê da nossa curiosidade. Talvez gostássemos demasiado de deambular à roda das histórias de possessão demoníaca e de exorcistas, talvez gostássemos muito das legiões romanas e nos descobríssemos, realmente, invadidos pelo seu esplendor e organização, talvez gostássemos das multidões de que fugíamos, talvez, quem sabe, até gostássemos dos milagres de Cristo e corrêssemos para ele se o encontrássemos de verdade, talvez quiséssemos largar tudo e seguir algo maior do que nós, talvez compreendêssemos que devíamos, antes, ser fieis à nossa missão “local” e “familiar”, e assim nos entretivemos durante muito tempo, entre túmulos interpretativos e montanhas hipotéticas, mas sempre longe de nós próprios, e nem por meio de grilhões nos detivemos a escutar o coração, esquecendo a sua linguagem e identificados apenas com alguma ferida ou solidão que nos entretivesse. Só começámos a compreender algo da parábola muitos anos depois, quando nos identificámos realmente com ela, quando nos compreendemos possuídos por uma legião de sombras e quando vislumbramos um Cristo “libertador” capaz de a expulsar. Só detectamos a pergunta à resposta que já lá estava quando tratámos de fazer uma coisa muito egocêntrica, mas inicialmente necessária: quando da parábola tentámos fazer ego-história ou autoanálise, quando nos metemos a vaguear pelos túmulos e pelos montes áridos da nossa própria personalidade, depois de a vermos prestes a ruir. É que a parábola do Possesso de Gerasa, nas suas entrelinhas, fala-nos ao coração, cruza o rio que nos afasta do mundo, dá-nos algo para onde correr e uma ordem de expulsão ao que temos a mais dentro de nós, como faria um escultor com um bloco de mármore. É a parábola daquele que se sabe invadido pelos “muitos” sem nome, daquele que não sabe identificar-se com nada que não seja alheio à civilização, daquele que não se deixa agrilhoar pelos seus semelhantes, que não se compromete com nada nem ninguém, que é violento para com a sua própria essência, que só conhece o passado, onde passam os seus sonhos desfeitos como nuvens ao sabor do vento, onde passa o que deveria e poderia ter sido mas que nunca foi, e um grande conjunto de outras velharias emotivas onde acredita poder encontrar valor. Mas depressa percebemos que a parábola nos fala também do perigo de não nos descobrirmos “legião”, como única forma de nos libertarmos dela e de regressarmos à nossa natureza real, pois todos nós, tal como o possesso, também nos vamos encontrando perdidos entre túmulos e montes, entre o que já morreu e o que não volta e sempre dependentes de um género de deus ex machina que nos venha, por obra e graça, libertar, mas que, no fundo, e como podemos comprovar, não é mais do que o melhor de nós mesmos a arrancar-nos do pior que fomos permitindo erguer à nossa volta. Por vezes, ao deitar, sem sono, somos surpreendidos por aquele milagre que de vez em quando nos visita, onde o aparentemente cheio, ao ser confrontado, se esfuma e dá lugar ao vazio, onde nada tem um nome, onde tudo está por identificar, onde todas as identidades são outras que não a nossa, onde não temos nome pelo qual nos chamarmos a nós próprios e posicionarmos perante a vida. E não encontramos sossego nesse vazio interior à espera de ser preenchido, não encontramos o fundo sólido onde repousar a cabeça, nada que o preencha, nada que o habite verdadeiramente. A nossa fortaleza é um poço feito de vento e ecos dos que já foram invadidos por todos os horrores noturnos e uma legião de fantasmas. Mas isto é, de facto, um milagre. Uma luz paira sobre nós e põe-nos a escuridão à vista, um Cristo desce do barco e desatamos a correr, ferozes, para ele, para que nos pergunte quem somos, e lá espreitamos nós para dentro, lá reconhecemos que no fundo somos uma enorme legião, lá vemos que fomos invadidos e nem o sabíamos, percebemos que somos trespassados por todos punhais da falsa tolerância, enganados por todos os reflexos das opiniões, levados à escravidão por todas as aparências. Enfrentamo-nos e lá nos vemos “legião”, recordamo-nos do dito do possesso e já lemos o passo de outra maneira. Quando nos identificamos com o possesso, entendemos que a única pergunta que lhe é feita é a mais importante de todas: «qual é o teu nome?». É uma pergunta que, por mais que nos a façam, não a fazem as vezes suficientes. Pois se fizermos esta pergunta, uma legião inteira aparece. Se a mandarmos embora, lança-se, em pânico, no mar, nas águas puras e detentoras do fogo espiritual do batismo que nos darão o nosso verdadeiro nome. A toda esta legião interior faltamos nós próprios, é como se fossem estilhaços de cerâmica que vamos colando à nossa volta para que tenham uma aparência formal, ecos de outras vozes que tomam a vez da nossa, e lá nos vamos reconhecendo, que somos muitos e que temos muitos nomes, que somos uma legião! Uma certa glória organizativa escapa-se-nos da boca, mas uma ausência de identidade permanece afiada no coração. Surge uma única certeza, é que na verdade, não sabemos quem somos, nem qual é o nosso nome, mas percebemos, isso sim, máscaras que são uma legião, medos que são uma legião, certezas e opiniões que são uma legião, mas perante a qual ninguém dá ordens, que fazem o que querem, violentam o que querem e retiram-nos da corrente da vida, manipulam-nos, são autodestrutivos e, sem governo, tendem para o mal e para a queda, querendo levar-nos com eles. Mas toda esta visão apocalíptica interior, à qual demos o nome de milagre, só se dá porque algo em nós, ou nos céus, acredita e confia que somos capazes de crescer. A perceção do nosso vazio interior é prova da conquista territorial dentro de nós, é prova de que foi dado mais um passo nas trevas, é prova de que detectamos o inimigo que se esconde e de que ele nos reconheceu. Esse inimigo amedronta-se e ajoelha-se à nossa frente, roga-nos que o deixemos ficar, mas o seu destino já está traçado. Pois há algo em nós que nos diz que a vida, tal como está, é insustentável, algo nos diz que somos um péssimo exemplo de nós próprios, algo nos diz que a nossa fortaleza tem muitas portas e janelas abertas, ou rombos, por onde entra tudo aquilo que não deveria entrar. Perante essa luz divina que nos alumia as trevas, armamo-nos com as armas do filósofo e pomo-nos em perseguição de tudo aquilo que está mal, lutamos para salvar a fortaleza, enfrentamos muitas legiões e muitas noites de insónia se for preciso, com a certeza de que conseguiremos expulsar todos os males da nossa terra e fazer dela um paraíso no mundo. Como tal, passemos a aproveitemos melhor as vozes exteriores durante o dia, sábias como são, para aprendermos com elas a manejar as nossas armas, pois sabemos que mal estas se calem se levantará uma grande algazarra interior, um verdadeiro banquete de fantasmas do nosso passado onde sempre chega mais um para brindar em nome de mais este ou daquele demónio, e demónios é coisa que não falta. É com uivos funestos que celebram ainda mais uma memória que julgávamos enterrada, é rangendo os dentes que tragam mais uma derrota ou oportunidade desperdiçada, é com medonho gargalhar que assinalam todas as vergonhas passadas. Não os deixemos adiantar-se em muitos mais brindes, pois evocarão o nome de mais dois ou três demónios que não conhecíamos, pois ficaremos embriagados e acabaremos por adormecer no mesmo serão de sempre, dormindo e acordando à entrada de túmulos, exaustos de cansaço, depois de muito rodopiarmos em torno do que não somos, embriagados por tantos dos nossos erros lembrados, fatigados por tantos deles serem aceites e interiorizados. Se, pelo contrário, nos levantarmos perante este burburinho medonho, daremos de caras com um majestoso caos informe, ainda que seja, para já, incapaz de convidar o espírito de Deus a pairar sobre as nossas águas obscuras. Ou então, seremos um orgulhoso pedaço de argila, ao qual o oleiro é ainda incapaz de dar forma, por não encontrar nem modelo nem finalidade, mas já vamos no bom caminho.

Fortaleza, de Sandro Botticelli (1470). Domínio Público
Levantemo-nos um pouco mais alto, e seremos essa mesma luz que paira sobre o nosso caos, e seremos o oleiro confiante no seu ofício, seremos algo construído dia-a-dia. Não tenhamos medo do abismo insondável interior, nem desse Deus interior que acabará mesmo por nos sondar e iluminar toda esta água obscura, densa, petrolífera, como que à espera da chispa. Não tenhamos medo se não vier logo nenhum oleiro de fora, tornemos adequado o material, moldemo-nos a nós mesmos, abrindo espaço para o espírito entrar. A todo o possesso de Gerasa surgirá sempre um Cristo para lhe mostrar o caminho. Saibamos que este é o Cristo que levamos no nosso coração, somos nós próprios, é aquilo que quer que a nossa natureza passe a expressar-se tal como é, que fale desde o coração, como uma janela que abrimos apesar das trevas para o espírito de Deus passar, como um exorcismo que vamos aprendendo a realizar, e do qual vamos perdendo o medo. Este exorcismo é diário e dá-se de cima para baixo, com ordens, mas, sobretudo, com compreensão. De facto, aproveitando o que Rudolf Bultmann nos diz sobre o exorcismo antigo, sabemos que este se divide em seis fases essenciais, as quais podemos usar para aplicar sobre nós próprios:
- Ir ao encontro do possesso;
- Descrição e compreensão do carácter perigoso da possessão;
- O demónio reconhece o exorcista;
- Exorcismo (identificação do nome do demónio e expulsão do corpo);
- Garantia de que o demónio abandonou o corpo;
- Espanto das testemunhas.
Curiosamente, a história do Possesso de Gerasa contém estes seis momentos durante o exorcismo, ao qual poderíamos adicionar um sétimo, enquanto redefinição do dever e da nova vida daquele que deixou de estar possuído. Centrando-nos agora na parábola, o que esta nos diz é o seguinte:
Para além dos elementos de interesse pessoal que encontrámos neste episódio e de muitos outros que, seguramente, o leitor há-de encontrar, existem outros que gostaríamos ainda de referir e sobre os quais merece a pena ponderar.
Primeiro, Jesus, ao sair do barco, faz com que o possesso corra na sua direção, como se há muito que o esperasse, da mesma forma com que, apesar de tudo, esperamos sempre o melhor de nós próprios. Depois, este possesso que vivia nos túmulos e nas montanhas, que tinha uma força formidável e que ninguém conseguia controlar, era violento, mas infligia violência sobretudo para consigo próprio, dizendo-nos, claramente, a quem fazemos de facto mal quando não conhecemos a nossa essência e o nosso nome. Este dirige-se ainda a Jesus como se fosse, ou pudesse ser, ele mesmo, o exorcista, falando primeiro do que ele, ainda que prostrado à sua frente, como um subordinado, e conjura-o (horkízō) em nome do seu Pai, Deus, revelando-nos as nossas capacidades inatas de nos libertarmos a nós mesmos, bem como a forma humilde com que nos dirigirmos ao que temos de superior e de melhor, reconhecendo-lhe uma origem ainda mais elevada. Este, ao ser questionado sobre o seu nome, parece comparar-se a uma invasão, como já vimos, neste caso, do exército romano, como algo impossível de se combater ou derrotar, mas que, ao ser identificado, recebe ordem de expulsão, o que nos revela a importância de uma disciplina e de sermos capazes de nos governarmos a nós mesmos. Depois de receber a ordem de expulsão, o demónio, ou os demónios, supostamente com ânsias e ligações territoriais, como faz o que temos de mais impuro em nós, pede-lhe que o deixe permanecer naquela região. O facto de o demónio selecionar o porco, que é um animal impuro, como novo recetáculo, é curiosa, e provoca uma histeria que os faz lançarem-se ao mar e morrer, semelhante ao exército egípcio que é engolido pelo mar ou ao planeta Vénus que se lança ao mar em perseguição ao sol, revelando aquilo que é sacrificado, para além de outros aspetos históricos que nos abstemos de referir.

Jesus exorcizando o endemoninhado de Gerasa, do manuscrito Hitda Codex. Domínio Público.
Esta parábola tem sido identificada de várias formas, sobretudo como transtorno de personalidade, ainda que nem todas as alterações ou “multiplicações” da personalidade necessitam de ser consideradas patológicas. Muitas podem ser as causas de uma personalidade descontrolado ou obscura, como a falta de segurança em nós mesmos, a falta de segurança na sabedoria e na finalidade da vida, todas as formas de competição e combate externos, as seitas e os fanatismos religiosos e políticos que espreitam por todas as partes, todas as formas de pandemia que nos vão trancando dentro de ilusões de nós mesmos, entre muitos outros exemplos que poderíamos evocar, que nos dão a realidade e a aparência do múltiplo. Tudo isto faz com que a personalidade não se desenvolva de forma equilibrada, como se não chegasse a sair da infância. Ou pior ainda, é como se a nossa personalidade frágil não tivesse aprendido sequer a andar necessitando para sempre do seu pai e da sua mãe para caminhar, como se fossem muletas de pernas enfraquecidas. A personalidade é um tronco quadrado que começa por assentar em duas pernas básicas: o temperamento e o carácter. Estes correspondem, tal como os nossos pais, a aspetos que não dependem inteiramente de nós, pois o temperamento tende a ser congénito e o carácter tende a ser normativo e, como tal, geográfico-temporal. Com o tempo, a personalidade deveria ter pernas fortes e treinadas o suficiente para não falharem nos momentos mais importantes, e saber-se detentora de um coração a bater dentro do quadrado que lhes desse o ritmo necessário à vida, por forma a poder dirigir-se, através desse mesmo coração, para cima, para uma consciência circular que se pudesse expandir por todas as partes, ou oval que, apesar de procurar amavelmente um ponto de apoio na terra, sempre vai apontando o céu com o seu vértice suave: é para aí que cresce a personalidade. Em todo o caso, a personalidade é sempre uma aparência, ou máscara, de si mesmo, que o ser humano utiliza para se apresentar aos outros, que requer uma constante moderação, autodisciplina, prudência, tolerância, generosidade, integridade, e a capacidade racional e espiritual de controlar o que é irracional e instintivo como se de um cavalo descontrolado se tratasse ou, como é o caso, de uma legião.
Mas assim é, de vez em quando, ou quando o queremos de facto, a vida dá-nos uma oportunidade, ilumina-nos um caos informe interior para que, como oleiros, sejamos capazes de dar forma ao que somos. Para que nos moldemos de acordo com a nossa natureza. Dá-nos luz para que façamos uma tradução desse caos, ainda que, no melhor dos casos, façamos transladações absurdas, querendo arrancar por inteiro os tantos cadáveres em decomposição que vamos encontrando. Existem momentos na nossa vida em que nos sentimos um caos informe, onde não há Deus que paire sobre o nosso abismo e brilhe sobre as nossas trevas, onde parece que a luz é capaz de iluminar todos os recantos do mundo, menos o recanto que nos deixámos ser. Mas estejamos atentos a quem vem ao nosso encontro, estejamos atentos a nós mesmos, e veremos que podemos regressar à civilização, à luz e a nós próprios, cumprindo assim o que se espera de nós, entre os vivos e entre os mortos.
Mas, apesar de tudo o que dissemos, não pretendemos que este testemunho liberte o leitor do que quer que seja ou lhe aligeire a dificuldade. Não somos capazes de o fazer. A insónia continua a revisitar-nos com alguma regularidade e os fantasmas ainda gostam de cantar as nossas derrotas e oportunidades desperdiçadas com brindes efusivos. É um hábito que ganharam e até já nos vamos divertindo com eles, e no final da noite ainda os convidamos, caso não tenham melhor que fazer, para nos darem o prazer da sua visita no dia seguinte, e assim vamos mantendo por perto todos aqueles inimigos que ainda não somos capazes de derrotar. Mas queremos, ao menos, que o leitor saiba, caso se veja sozinho nas trevas, que tem com ele o Cristo interior que o recorda da sua natureza, que o observa e que responderá sempre que for chamado a expulsar todos os outros nomes e tudo o que não se é. E mesmo que não identifique logo esse Cristo, que nunca perca o ânimo de avançar nas trevas, que se saiba próximo dos demais, tanto que bastaria levantar o braço para tocar no ombro amigo daquele que também se crê sozinho na sua luta, e aí, quando o Espírito de Deus descer e lhe perguntar pelo nome, dirá: «sou o mesmo que tu és», «sou o mesmo que o meu irmão» e por isso é que «sou o que sou» e «sou aquilo que é», e todos juntos somos a legião de Deus que marcha sobre o mundo, cantando o seu nome, profundamente identificados com ele.
Ricardo Martins
Imagem de destaque: Mosaico do exorcismo do demónio de Gerasa na Basílica de Sant’Apollinare Nuovo em Ravena, que data do século VI d.C. Domínio Público