Nem a morte silenciaria uma paixão de 500 anos

Notável em praticamente cada polegada de execução, obra-prima dentre todas, a Mona Lisa, além da alta técnica com que foi construída, registra um tratamento a seus elementos principais consoante ao melhor do estilo do génio Leonardo da Vinci. Aquele clima etéreo que tanto marcara sua produção, aqui se verifica, pela primeira vez, em grande versão turbinada: aplicando-se a técnica do sfumato em seu nível mais avançado, emprestou assombrosa aura de mistério à composição.

Apesar de ter elevado o sfumato a um novo patamar ao uni-la à pintura a óleo, Leonardo da Vinci não é seu criador, como comumente se considera. Esse termo italiano significa “tornado fumaça”, “esfumaçado”, “evaporado”, pois era o que acontecia com as marcas de pincéis sobre uma pintura: praticamente sumiam. O procedimento, na verdade, tem origem remota e imprecisa, cuja aplicação sistemática vem sendo demonstrada há milênios, sobretudo, no desenho e em técnicas a seco. Seja como for, com Da Vinci, o sfumato (incluindo uma nova técnica de glacis) consistia na aplicação de uma camada de óleo misturado a uma quantidade mínima de pigmento colorido por sobre uma base branca no suporte da pintura. A partir disso, obtinha-se uma fina camada que reproduzia um tom colorido etéreo, evanescente. Tal procedimento permitia que a luz, ao atravessar esse “véu”, esbarrasse no fundo do suporte e refletisse para o expectador. Os vários tons de sombra nas obras tardias do artista, na verdade, devem-se às sucessivas aplicações dessas camadas. Apresentando cada uma delas pigmentação específica, umas sobre as outras, obtinha-se um efeito de constância vibrante.

Uma técnica revolucionária

O peculiar processo surgiria apenas nas últimas obras do artista e, provavelmente, a Mona Lisa foi a primeira em que foi utilizado. Algumas evidências a esse respeito foram confirmadas pelas recentes descobertas sobre o quadro feitas pela especialista Mady Elias, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, e pelo engenheiro Pascal Cotte da Lumiere Technology (digitalização multiespectral). Do ponto de vista artístico, era uma tarefa que dependia de carga extra de paciência e minúcia do autor. Por outro lado, por meio de suas mãos, evoluía-se a uma esfera mágica, para além de tudo que se tinha visto em termos de produção visual humana.

Artifício para criar efeitos de volume bem característico do Renascimento italiano, o sfumato é empregado na arte pós-medieval com o propósito de se criar uma atmosfera sobrenatural. As representações de efeito bidimensional próprias do medievo, ainda que resguardem signos e possuam seus próprios códigos, estavam bem longe de qualquer resultado mais realista que se quisesse considerar. Assim, não é muito difícil imaginar a reação daqueles que, graças ao sfumato, testemunharam a transição neste dramático capítulo na História da Imagem.

Considerando a filosofia e os interesses de Leonardo pelos estudos da Ótica, da Natureza e suas várias implicações dimensionais, pode-se encarar esse recurso como uma necessidade em sua produção artística. É importante também notarmos aqui aquelas anotações (no Itinerário) de De Beatis, por ocasião do encontro com Leonardo e a “Gioconda” em 1517. Referindo-se à figura da mulher como “perfeita” e “parecendo estar viva”, o secretário descreve o momento como a descoberta de uma imagem fascinante, extraordinária. Para o público dos séculos XV-XVI, a impressão deve ter sido exatamente esta: a de um realismo apavorante.

E é aqui que o plano bidimensional se vê em crise, pois, juntamente com o uso da secção áurea, a figura central na composição pictórica passaria a se integrar ao conjunto, ao todo. Isso equivale a dizer que a imagem do já iconográfico modelo esquemático da Gioconda imaginado por Leonardo partiu do desejo desse “Homem universal”, renascentista, que enxerga seu género de forma integrada à Natureza… em que ambos os elementos são representações de Deus.

Como em outros trabalhos autorais, a Mona Lisa também segue o uso da secção áurea. Extensamente utilizada na Renascença, a seção áurea é um recurso estrutural para composições matemáticas em arte e engenharia, descoberto na Antiguidade que se opõe ao princípio do cruzamento de eixos. Assim, o artista fazia com que, a partir da estratégica subdivisão da imagem em vários retângulos, fossem produzidas partes maiores e menores que se autogerariam ao infinito. De certa forma, este artifício pretende a mesma “ilusão psicodélica” da geometria na arte islâmica e, por conseguinte, o efeito conduzirá nossa visão à orientação em espiral resultando numa transcendente ordenação no espaço, como também seria o ritmo natural. Aliás, a observação e estudo da natureza (logos científico) sempre foram pilares das conquistas renascentistas. De fato, o pensamento matemático – em um sentido mais de “abstração platónica” que, necessariamente, de “exatidão fria” – de Da Vinci viria a ser confirmado de forma inovadora também por meio da Tese Goldblatt.

O pai desta descoberta, Maurice H. Goldblatt, foi um especialista e crítico de Arte na Chicago do início do século XX – tendo atuado, inclusive, desmascarando falsificações da Mona Lisa. A tal tese assegurava que somente em autênticos “leonardos” via-se que a linha da boca de um sorriso feminino era desenhada no arco de um círculo que, quando estendida, tocaria o canto externo em um ou ambos os olhos. Também aponta que, em casos onde a cabeça da modelo apresentava-se descoberta (como na Mona Lisa), seu contorno é “o arco de outro círculo duas vezes o diâmetro do primeiro círculo”.

Sabe-se bem que Da Vinci defendia o conceito de que o Criador se manifestava e repousava em tudo que fosse Criação – dentro ou fora de nossos sentidos, daquilo que somos capazes de compreender. É aí também que percebemos o caminho aberto através da mente do artista: somos inseridos nessa mesma Natureza da qual somos fruto. No entanto, o Homem a altera na medida em que cria outros pontos de vista que não se restringem à primeira impressão por ela proporcionada. Aí reside a polidimensionalidade do “real”, algo que a concepção medieval do poder atuante – e, muitas vezes, limitador – de Deus inviabilizava totalmente.

Com a Mona Lisa, Leonardo estreia uma “alquimia elétrica” na atmosfera, recriação de um universo “irreal” (ou de “uma nova realidade”) fora de nosso tempo-espaço. Em um nível de impacto social, devemos considerar que saber avaliar e refletir sobre os elementos circunstanciais ou determinantes nesta pintura decerto deva ampliar e revolucionar nossa compreensão sobre todos os aspectos que envolvem a obra: o artista e sua produção artística como um todo, a modelo em si, a cidade e época em que foi produzida e o universo onde todos esses elementos se harmonizam. Enfim, o fascinante mundo que cerca os estudos da transição da Idade Média para a Modernidade – ou seja, para a vida como hoje a conhecemos.

O jovem Salai e o velho Leonardo

Outro relevante fator renascentista sobre a Mona Lisa parte do grande interesse de Leonardo pela busca de um ideal da beleza (ordem) maior: o princípio dual ou “dos opostos” nas coisas. Essa questão do dualismo nos remete a Heráclito de Éfeso (c.535-475 a.C.) e seus pensamentos sobre o cosmo e o uno, o devir e a harmonia. Também os estudos sobre Fibonacci e a razão áurea, a força do equilíbrio simétrico, viriam a ser de uma importância singular em suas composições. Em especial, na iconografia de Da Vinci que aborda os temas sobre juventude-maturidade e androginia, temos alguns exemplos de como tais implicações filosóficas seduziam seu génio.

Um bom exemplo de como Da Vinci, na qualidade de artista-designer, deixava-se seduzir pela complexidade diversa que há em tudo, pela ideia de que cada um de nós é um universo e que o universo também é cada um de nós, repousa na Universidade de Oxford, Christ Church, em um desenho do conjunto Alegoria à política de Milão, executado entre 1483 e 1487. Ali, temos duas místicas fazendo uso de um espelho mágico, além de alguns antigos símbolos significativos para a alquimia e o hermetismo (controle dos elementos naturais); ou seja, a presença de aves e de elementos serpentiformes: o magnetismo e a eletricidade.

Uma daquelas mulheres se apresenta no mesmo esquema gestaltiano, com uma face jovem e outra, velha. Aliás, a leitura adicional aí cabível, a temática da efemeridade do Homem, foi mais uma das constantes nas filosofias ocultas e nas artes da Idade Média à Renascença, seguindo (mais acentuadamente) até o Romantismo e o Expressionismo. Mas Christ Church ainda nos reservará outro desenho denominado Alegoria do prazer e da dor, de 1480, onde se vêem duas figuras masculinas – um jovem e um senhor – que se projetam do mesmo corpo. A ideia aí é ilustrar a necessidade do prazer para a existência da dor e vice-versa: mais uma vez, a questão dos unos e dos opostos.

“Cabeças de velho e jovem” (Uffizi, Florença): obsessão com a força dos opostos e um ideal de beleza. Domínio Público

Já em idade avançada, e sem muito o que esperar para daí em diante, o artista se permite o “filosoficamente incorreto” e passa a meditar sua homossexualidade compreendendo-a mais como uma superação do ego (como quer a gnosis). A ideia seria assumir, de maneira sincera e espontânea, o fenómeno do amor e do sexo como manifestações de natureza mais espiritual e vibracional que como ferramentas de procriação… e, nisso, não há que se falar exclusivamente da heterossexualidade. Quer enxergar na conduta apenas mais uma possibilidade na complexa ordem das coisas, do cosmo: algo que deveria ser natural, livre de se restringir a qualquer convenção… esta, sim, uma artificialidade humana gerada por interesses e conveniências. Aliás, à época, punível com a morte. Todavia, o que nos interessa é que Leonardo, então, se sentirá mais à vontade para aplicar sobre a Mona Lisa outro elemento a sintetizar a dimensão da complexa e multifacetada natureza humana: a Gioconda é andrógina, produto do HOMO UNIVERSALIS, um ser humano perfeito. Ou seja, sua identidade é jovem (versão “Mona Lisa de Isleworth”) e madura (Louvre), como ela também é… masculina e feminina. Na verdade, a Mona Lisa somos todos nós.

Prof. Átila Soares da Costa Filho

Prof. Átila Soares da Costa Filho é bacharel em Desenho Industrial (PUC-RIO) e pós-graduado em Arte e Tecnologia, Filosofia e Sociologia, História da Arte, Arqueologia e Patrimônio, História e Antropologia, História da América, Arquitetura e Patrimônio. É membro do Conselho Científico na Mona Lisa Foundation (Zurique), na Fondazione Leonardo da Vinci (Milão), no Centro Studi Leonardeschi (Varese), no projeto L’Invisibile nell’Arte c/o Comitê Nacional para a Valorização do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Roma), e na revista internacional técnico-histórica, Conservation Science in Cultural Heritage, publicada pelo Departamento do Patrimônio Cultural da Universidade de Bolonha (campus de Ravenna).

Referências Bibliográficas:

Argan, Giulio Carlo. Arte e crítica de arte. Lisboa: Estampa, 1988.

Baccarini, Enico; Pinotti, Roberto. Itália esotérica. São Paulo: Madras, 2005.

Costa Filho, Átila Soares da. A Jovem Mona Lisa. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013.

Pomilio, Mario; Chiesa, Angela Ottino della. “L’opera completa di Leonardo pittore”. Coleção Classici dell’arte, vol.12. Milão: Rizzoli, 1978.

Santillano, Giorgio de et al. Leonardo da Vinci (An Artabras Book). Nova York: Reynal & Co. e William Morrow & Co., 1965.

Vasari, Giorgio. Vidas de pintores, escultores y arquitectos ilustres. Buenos Aires: El Ateneo, 1945.

Imagem de destaque: (Salai como) “João Batista”, ateliê de Leonardo da Vinci (The Walters Art Museum, Baltimore): Jovem amante do génio toscano também foi um de seus mais próximos pupilos. Creative Commons.