O filme de Gerard Corbiau, O Mestre da Música (Le Maître de Musique), eleva-se ao que poderá ser considerada uma obra de Arte, não só pela conjugação de várias formas de expressão artística – música, canto, texto/argumento, imagem – mas também pela mensagem humanista e filosófica que encerra. A harmonia destes vários aspetos do filme conduz, assim, ao cumprimento de uma função comum a qualquer obra de Arte digna de tal nome: despertar a necessidade de reflexão sobre o posicionamento do Homem na vida e no Universo, no sentido da realização do Bem, através da experiência do Belo.

A reflexão que aqui é apresentada incide sobre os aspetos da mensagem do filme que poderão contribuir para o nosso crescimento e enriquecimento enquanto seres humanos, ou seja, para o despertar do ideal filosófico que existe em cada um de nós, por vezes de forma inconsciente ou em potência.

É apresentado, em primeiro lugar, um breve resumo do filme, para melhor contextualização das ideias desenvolvidas posteriormente.

 

Resumo do Filme

Joachim Dallayrac (interpretado pelo célebre barítono belga Jose Van Dam), atinge o auge da sua carreira de cantor lírico. No final de um arrebatador espetáculo, na cidade de Londres, Dallayrac anuncia que aquela seria a sua última atuação em público.   A saúde debilitada leva-o a dedicar-se exclusivamente à formação de jovens cantores, abandonando os palcos onde cantara a beleza de obras imortais.

Seus discípulos são a bela Sophie e Jean, este um jovem vagabundo que encontrara nas ruas de Paris e que acolhera em sua casa, intuindo o potencial da sua voz. A ação centra-se, então, nas aulas de canto, permitindo a construção da personagem do dedicado professor. O amor pela música, a sensibilidade artística e, acima de tudo, o empenho na formação e desenvolvimento dos seus alunos de canto vão desvelando o carácter disciplinado do Mestre da Música que conduz os jovens no sentido da perfeição.

A mudança na ação acontece com a visita do tio de Sophie, anunciando um concurso de canto organizado pelo Principe Scott, um mecenas milionário que odeia o mestre Dallayrac e que ambicionara, outrora, o título de melhor cantor – “Ele considerava-se o melhor cantor”, afirma Joachim numa cena do filme – tendo desafiado o seu rival para um duelo de canto, durante o qual perdera irreversivelmente a sua voz, não tornando a pisar os palcos. O filme sugere, portanto, a intenção de vingança de Scott, acreditando colocar o seu protegido pupilo em competição vantajosa com os alunos de Joachim.

O concurso realiza-se e a bela Sophie e Jean arrebatam o público com a sua sublime performance. Porém, a semelhança das vozes do protegido de Scott, Françoise, e de Jean surpreende o publico e o júri, e aqueles são desafiados a cantarem em conjunto com os rostos tapados. Scott sugere um duelo de canto! Os dois concorrentes cantam fabulosamente até ao momento em que a voz de Françoise falha fatalmente! Sophie e Jean vencem inequivocamente o concurso e o que acontecera há muitos anos atrás repete-se naquela noite!

As cenas finais do duelo alternam com a morte de Joachim, num outro espaço, num mesmo tempo…

Para a Beleza deste filme contribuem as eternas composições de Mahler, Verdi, Bellini, Mozart, Offenbach, Schubert e Schumann.

José van Dam / Vimeo

José van Dam / Vimeo

Reflexões sobre O Mestre da Música – contributo para o despertar do verdadeiro filósofo

O conteúdo da mensagem do filme de Corbiau pode ser compreendido sob várias perspetivas, tal como um quadro pode ser apreciado a partir de diferentes pontos da tela e suscitar diferentes interpretações, de acordo com a sensibilidade e com o universo referencial de quem o aprecia.

A interpretação que aqui é apresentada assenta em dois conceitos filosóficos implicitamente incorporados na globalidade do filme e particularmente nas características e atitudes de cada uma das personagens. São, então, o conceito de sofista, tal como definido pelo escritor e filósofo Fernand Schwarz, e o conceito de filósofo, de Jorge Angel Livraga, filósofo e fundador da escola de filosofia Nova Acrópole.

Segundo Fernand Schwarz, o desenvolvimento de uma visão vincadamente utilitária da vida que caracteriza os sofistas está na base do modo como é perspetivado por estes o estudo da retórica, ou seja, “enquanto arte de advogar e argumentar para vencer o adversário.” A sua finalidade é, assim, “trazer aos jovens os meios necessários para vencerem em qualquer circunstância” (Schwarz, 2006:26) e, agnósticos, abandonam a ideia de pôr o saber em relação com a metafísica e fazem do homem um deus que não necessita de valores éticos, catárticos ou espirituais. O importante para eles não é vencer-se a si mesmo, mas vencer os seus opositores e obter os benefícios procurados pelas satisfações temporais (Schwarz, 2006:27).

O filósofo, pelo contrário, é movido pelo Amor à Sabedoria, buscando-a na “divina harmonia de meios que nascem na música da Natureza” (J.A.Livraga) (1), e “vai-se transformando à medida que conhece; o seu conhecimento, ao chegar ao fundo das coisas, converte-se num estilo de vida. Vive uma Filosofia Ativa, ou seja, pensa, sente e atua de maneira harmónica” (Délia Steinberg Guzmán, 1995:96).

À luz destes dois conceitos, é inequívoco o reconhecimento de princípios sofistas em Scott e no seu pupilo, Françoise, e dos ideais do verdadeiro filósofo em Joachim Dallayrac e nos seus discípulos, Sophie e Jean, tendo em conta o filme na sua globalidade.

A Beleza é a nota dominante do filme. Joachim e Scott, através dos seus pupilos, dão voz às mais belas e imortais composições de Mahler, Verdi, Bellini, Mozart, Offenbach, Schubert e Schumann, mas distingue-os o uso que cada um deles faz dessa forma de arte que é a música.

Em Dallayrac, o Amor à música e à perfeição do canto lírico são as estrelas que guiam o seu caminho de cantor e de mestre. Este assume assim o dever do verdadeiro filósofo, “o cuidado e a guarda de outras pessoas”, tal como proclamado por Platão.

Vemos aqui plasmado o Amor e o Bem como veículos de ascensão e é neste sentido que o mestre conduz os seus alunos no rigoroso trabalho de eternização das mais belas interpretações musicais. O facto de ter acolhido Jean como seu aprendiz sem qualquer vislumbre de retribuição material é um detalhe do filme que contribui para o entendimento da Arte como forma de ascensão ao Bem e à Beleza eternas. “Deixa que a música entre em ti e ela fará fluir a voz” são as palavras do mestre que instrui os jovens cantores a ouvir a música com o coração e a deixá-la entrar na Alma num perfeito equilíbrio com a Beleza transcendente que paulatinamente os vai transmutando. É colocado, assim, o saber em relação com a metafísica, tal como refere Schwarz.

“Qual o segredo de Joachim?” é a pergunta que Scott faz a Sophie num contexto que deixa perceber o carácter manipulador do milionário, ávido de riqueza e reconhecimento social. Numa das cenas finais do concurso de canto, após acesa aclamação dos jovens vencedores, Scott dá instruções a um dos seus colaboradores para a preparação dos contratos que lhe garantiriam a rentabilização das vozes de Sophie e de Jean, abandonando assim o seu protegido Françoise, pois não mais serviria os seus interesses pessoais.

Joachim, pelo contrário, e apesar de assumir perante sua paciente e compreensiva mulher que amava Sophie, não se desvia da sua missão de formador da voz e do carácter disciplinado dos seus jovens hóspedes. O sentido do dever de Joachim reconhece-se no rigor que exige dos seus alunos e no domínio que impõe a si próprio, não permitindo a Sophie o espaço que esta reclamava para expressão da sua inicialmente tímida e posteriormente declarada paixão. O desenlace do filme confirma a superioridade do carácter de Dallayrac – a harmonia entre Sophie e Jean, artística e afetiva, que o sensível professor anteviu como futuro brilhante para os jovens.

Scott, por sua vez, dá expressão ao seu desejo de vingança e tenta seduzir Sophie, perspetivando não só os benefícios pessoais que esta lhe traria, mas também a conquista de alguém que Joaquim estimava, manifestando, assim, uma “amizade” circunstancial como se de mais um objeto de consumo se tratasse – o objetivo sofista, portanto: vencer e satisfazer as necessidades e caprichos temporais.

É inquestionável o facto de este belo filme suscitar um movimento interior no sentido do conhecimento e da elevação da alma, despertando o que, segundo Jorge Angel Livraga, está em todos nós – o philo-sophos, isto é, “o apaixonado da sabedoria e da profundidade das coisas” (J.A.Livraga, 2007:51) e levando-nos a participar na Beleza manifestada através da música.

Um outro aspeto que poderá ser considerado nesta reflexão é o posicionamento do espetador em relação às personagens do filme e particularmente em relação a Scott e Dallayrac. O que acontece, por exemplo, na Literatura, é a frequente identificação do leitor com a personagem principal (Stephens, 1992). No cinema, poder-se-á considerar este mesmo processo de identificação. Em O Mestre da Música Joaquim Dallayrac encarna, assim, as características que suscitam a simpatia e a empatia do espetador, colocando em evidência virtudes morais e elevação de caráter que inspirarão certamente quem apreciar esta obra de arte. Esta ideia pressupõe o movimento inverso em relação a Scott – o processo de distanciamento do espetador, numa espécie de negação das características que esta personagem configura.

O que aqui se pretende sugerir é que a consciencialização deste processo de identificação / distanciamento do espetador poderá contribuir para o entendimento da importância de assumirmos não só a perspetiva da personagem principal, mas também da personagem da qual natural e irrefletidamente nos distanciamos. Por outras palavras, se em vez de recusarmos, nos aproximarmos também de Scott, reconheceremos não só o filósofo, mas também o sofista que existe em cada um de nós e sobre o qual deveremos trabalhar no cumprimento do movimento evolutivo da clareza. As palavras de Délia Steinberg Guzmán confirmam esta ideia:

Um dos males mais frequentes no jovem filósofo – que pode inclusive chegar a esterilizá-lo e a paralisá-lo – é pensar que já alcançou o seu tão desejado despertar consciencial, com o que detém o seu próprio progresso. Vê as coisas como gostaria que fossem; vê-se a si próprio como gostaria de chegar a ser e considera que esse sonho, essa visão errada é a realidade. Assim, para quê esforçar-se mais se já tem aquilo que desejava? A partir daí, deter-se-á sem se dar conta, anulará as suas possibilidades de desenvolvimento espiritual e olhará os outros com algum desprezo (D.S.Guzmán, 1995:17).

O Mestre da Música, um filme que nos convida a conduzir o pensamento na direção de belas notas musicais.

 

Delia Steinberg Guzmán / Nova Acrópole Brasil

Delia Steinberg Guzmán / Nova Acrópole Brasil

 

Referências Bibliográficas
Livraga, Jorge Angel. Manual de Filosofia Sabedoria do Oriente.
Guzmán, Delia Steinberg (1995). A Arte de Triunfar na Vida. Porto: Edições Nova Acrópole.
Livraga, Jorge Angel (2007). O Despertar do Homem Interior em pleno Século XXI. Lisboa: Edições Nova Acrópole.
Schwarz, Fernand (2006). A Sabedoria de Sócrates. Lisboa: Edições Nova Acrópole.
Stephens, John (1992). Language and Ideology in Children’s Fiction. UK: Longman.