O Ser Humano e o Cão estão unidos desde o início, e talvez possamos dizer que um não existiria sem o outro. O Cão, porque nasceu ao aproximar-se da mente humana, e foi moldado por esta, e o Ser Humano, porque, tirando proveito das muitas forças do Cão, como fiel protetor e corajoso caçador, pôde sobreviver às muitas idades negras que o nosso mundo já viveu. O kanji (caracter japonês) para cão ilustra bem esta relação já que se escreve “犬” (lê-se inu) e é claramente representado por um Ser Humano de braços abertos com um pequeno traço assinalando o seu inseparável companheiro, situado alto e perto da cabeça.
Quem tem a oportunidade de viver com um cão pode confirmar que estes são seres especiais pois, talvez mais que qualquer outro animal, estão intimamente ligados ao Ser Humano. Ao passearem juntos, um cão frequentemente procurará o olhar do dono para saber como reagir perante o inesperado. Se o dono está medroso ou ansioso, a ameaça está confirmada e o cão prepara-se para o defender. Por outro lado, se o dono está tranquilo, isto transmite ao cão que não existe ameaça, e que não deve ladrar ou morder.
Esta ligação vai mais além da visão, e não faltam histórias de cães que, seguindo uma qualquer bússola misteriosa, atravessaram grandes distâncias, por terrenos desconhecidos, só para no final se reencontrarem com os seus desaparecidos donos. O olfato apuradíssimo que os caracteriza não é suficiente para explicar estes eventos, uma vez que em alguns casos a deslocação dos donos foi feita de avião, o que apagaria qualquer rasto olfativo para o cão. E se deixar um cão noutro país for um caso demasiado raro, conseguimos encontrar um exemplo mais comum: Quem nunca foi alertado pelo seu cão da chegada de um familiar muito antes de este bater à porta ou estacionar o carro longe de casa? Um conhecido autor, Rupert Sheldrake, famoso pela teoria dos campos mórficos, dedicou um livro inteiro a este fenómeno, intitulado “Cães que sabem quando os seus donos estão a chegar a casa”. Uma leitura recomendada para qualquer cético.
Ao aproximar-se do Ser Humano, as características mais úteis do lobo foram sendo selecionadas. Agressividade e descontrolo passariam o inverno na rua e acabariam por desaparece, enquanto fidelidade e coragem seriam bem recebidas dentro de casa e sobreviveriam. O notório “sopro nasalado” do lobo converter-se-ia no ruidoso e intimidante ladrar do cão moderno; características comportamentais inicialmente, mas com o tempo, também as características físicas se foram modificando.
Dentro da variabilidade que sempre existe, haveria lobos que corriam mais, ou que escavavam melhor, ou que nadavam durante mais tempo, ou que mordiam e prendiam sem largar, e foram estas características que foram sendo procuradas de geração em geração, cruzando indivíduos com forças semelhantes e de entre a sua descendência, selecionando aqueles nos quais as características procuradas eram mais notórias. Com o tempo, isto modificou o próprio corpo dos cães, o que deu origem à multitude de raças que hoje encontramos.
O que no início era uma relação proveitosa para ambas as partes, produzindo cães mais fortes, rápidos, fiéis, protetores, escavadores, nadadores, com o materialismo e falta de bom-senso vivido nos últimos cinquenta anos, não só o Ser Humano sofreu, mas também o seu fiel companheiro.
Os Pugs têm cada vez o focinho mais curto e os olhos maiores, uma característica que acarreta vários problemas de saúde, mas num mundo que troca a essência pela aparência, talvez sejamos levados a pensar que a raça está cada vez mais “fofa”. E há uma boa explicação para isso. A Neotenia é um fenómeno conhecido que consiste na retenção de características juvenis em adultos e muitas vezes está relacionada com a perceção de “fofura”. Em muitas espécies, incluindo o Ser Humano, características como olhos maiores, narizes menores e bocas menores estão associadas a traços infantis, o que pode evocar respostas de cuidado e afeto dos outros. Este conceito é frequentemente utilizado na arte, design e marketing para criar personagens ou produtos atraentes. O problema surge quando o produto atraente é um ser vivo.
Infelizmente não são apenas os Pugs que têm sofrido deformações estéticas nos últimos anos a fim de salientar características que, apesar de os tornar distintos, podem ser fatais. Seguem-se várias imagens comparando fotografias recentes e antigas.
Como estes, infelizmente existem muitos outros exemplos. Quando se procura pronunciar uma característica física sem ter em consideração o bem-estar ou a saúde do cão, ou até a forma como esta característica está relacionada com o resto do corpo, é natural que surjam desequilíbrios. Usando um exemplo facilmente compreensível, não posso trocar os pneus do meu carro por outros duas vezes maiores sem fazer algum tipo de adaptação, se não à carroçaria, certamente à forma como o conduzo. E é justamente isto que os criadores das raças estão a fazer aos nossos cães – a objetificá-los.
E como nos ensina a Lei dos Ciclos, o pêndulo ora pende para um lado, ora pende para o outro. Qual é o inverso de objetificar um cão? Tratá-lo como um ser humano, como um filho, ou como um bebé, o que acaba por ser uma violência nova, mas mais subtil e difícil de reconhecer. Afinal, que mal tem vestir um cão com um maiô e uma saia, ou transportá-lo num marsúpio de bebé, ou dizer que tenho dois filhos, um de duas patas e outro de quatro? É simples. Não estou a ter em consideração as necessidades reais do cão, nem as experiências que preciso de proporcionar-lhe para que se desenvolva e realize o máximo possível.
Como humanidade, temos o poder de fazer um bem tremendo, protegendo os ecossistemas ou ajudando-os a reerguerem-se depois de uma catástrofe, por exemplo, mas a mesma faca que salva vidas pode ser usada para ferir se não existir uma mão justa por trás da lâmina.
E se procurássemos a saúde e a felicidade do Cão, a obediência, a fidelidade, a coragem, como procuramos orelhas maiores ou patas mais curtas? E se os critérios que definem uma raça fossem comportamentais, além de físicos? Um pastor alemão seria um cão com esta e aquela característica física e capaz de ultrapassar em segurança uma parede de três metros de altura.
Como o mundo seria diferente se agíssemos por dever, e não porque temos o poder de agir.
Se em vez de amaçarmos cegamente o barro da vida, brincando como crianças, criando formas cada vez mais monstruosas, procurássemos expressar com intuição valores como o Bem, ou a Beleza, que raças novas nasceriam?
Kant ensinou-nos que “podemos julgar o coração de um Homem pela forma como ele trata os animais”. Tendo em conta os últimos anos, o coração do Ser Humano deve estar bastante deformado, obcecado com aparências, sem capacidade de ver o óbvio – que os nossos queridos cães não conseguem correr, brincar; por vezes mal conseguem respirar.
Porque é que a frase de Kant é tão válida? Porque os animais não se queixam, não protestam, não nos apontam o dedo e perguntam: Porquê? Se o fizessem, talvez os tratássemos melhor pelo medo da resposta que teríamos de dar. “Porque quis”, “Porque pude”, “Porque me apeteceu”, ou quiçá pior: “Porque se não fosse assim, não te conseguia vender.”
Tudo o que fazemos à natureza, fazemos mais tarde ou mais cedo a nós próprios, pois na verdade não existe separação, e a única linha que nos separa está na nossa própria mente. Se deformamos os cães, quanto tempo até começarmos a deformar os nossos filhos, que até certa idade também não se conseguem defender? Será assim tão improvável?
Procuremos religar-nos à natureza como sempre o fizemos antes de termos perdido o rumo. Partindo de um modelo original que foi aperfeiçoado durante milhões de anos, o do lobo, torna-se claro que quanto mais nos afastamos deste e de outros arquétipos, mais sofrimento causamos tanto aos animais, como a nós próprios.
João Pedro Pio