Mas um verdadeiro homem sabe que o seu adversário mais acérrimo, e até mesmo um grupo deles, não equivale de maneira nenhuma ao pior dos inimigos, o “outro” que “vive no seu peito”.
Carl G. Jung, Acerca da Psicologia do Inconsciente
O concurso de monografias deste ano da Nova Acrópole pede-nos para que dissertemos sobre o lado oculto dos filósofos. O que há para dizer sobre isto? Perante um tema tão amplo, em que quase tudo se poderia dizer, procurarei guiar esta exposição recorrendo a um subtítulo: “filosofia como uma forma de vida”. A razão de o fazer é simples. O lado oculto de um filósofo pede-nos que olhemos o filósofo além da sua vertente mais óbvia, isto é, as suas obras e pensamento. Se estas são aquilo que vemos à primeira vista, se esta é a face visível do filósofo, nesse caso teremos de olhar para a restante vida do filósofo para lhe conhecer o lado oculto.
A filosofia é uma antiga construção do ser humano, representa o amor ao conhecimento e a busca pela verdade que são inerentes ao espírito da humanidade. Com o decorrer dos anos, durante a sua história, a filosofia conheceu diversas correntes, vertentes e praticantes. Contudo, uma observação atenta mostra-nos que aqueles que são conhecidos como filósofos mostram um grau muito variável de compromisso com esta arte. Por outras palavras, nem todos são ‘verdadeiros filósofos’. Entendemos por ‘verdadeiros filósofos’ aqueles que não se limitam ao estudo, não se limitam a ter ideias ou a formular teorias. Os ‘verdadeiros filósofos’ devem, acima de tudo, viver de acordo com os seus princípios, praticar a sua filosofia. Assim estabelecemos o ideal do ‘verdadeiro filósofo’, e por isso dizemos que a filosofia é uma forma de vida.
Os filósofos são figuras que admiramos, de um modo geral, e nós membros da Nova Acrópole em particular. Contudo, apesar de toda a distinção com que os conhecemos, da grandeza das suas reputações, não nos devemos esquecer que eles são pessoas como nós todos. Também eles vivem vidas atormentadas por bons e maus momentos, alegria e tristeza, dor e prazer. Tanto nós como eles exibimos, em grau variável, uma diferença entre aquilo que pensamos, o que dizemos, e o que fazemos.
Porque será que isto acontece? Podemos culpar circunstâncias externas ou situações fora do nosso controlo, o que por vezes é válido, mas em muitas ocasiões acontece por nossa preguiça, ou pela simples força dos nossos instintos. Ficamos aquém das nossas expectativas, falhamos no cumprir dos nossos ideais. Enquanto humanos, criamos nas nossas mentes esses ideais, em relação ao que quer que seja que tomemos como objeto da nossa atenção. Quando falhamos a concretização desses ideais, ficamos aquém do nosso potencial humano, o que nos serve de recordação para o facto de que, quer o queiramos quer não, também nós somos animais. Por muito que o embelezemos com a nossa racionalidade e consciência humanas, nada apaga o substrato biológico da nossa vida material, o corpo e os seus instintos; a nossa natureza animal, a vertente menos bela e mais crua da nossa existência.
Quando nos abstraímos de tudo e nos perdemos em pensamentos, quando o humano esquece o animal nas suas considerações e projetos, estas, por mais bem-intencionadas que sejam, estão destinadas ao fracasso. A racionalidade por si só é insuficiente para governar o ser humano, pois os seus instintos animais se vão manifestar mais tarde ou mais cedo sob a forma de impulsos de difícil controlo. Quem nunca sentiu essas forças, imunes a qualquer argumento lógico, a operar dentro de si?
Sendo os filósofos seres humanos, também eles dotados deste lado animal que nos faz falhar, que nos impede de alcançar uma coerência perfeita com as nossas ideias, é natural que, à margem da grande figura intelectual se encontrem facetas menos abonatórias, do tipo que fica menos bem na fotografia de um filósofo. Assim aparece o lado oculto dos filósofos, que não é mais do que uma consequência da condição humana que também essas ilustres figuras partilham connosco.
Seria fácil apontarmos o dedo às incoerências por vezes gritantes, atirar a primeira pedra. Sugiro que suspendamos o julgamento por algum tempo, e que em vez disso tentemos aprender alguma coisa com o lado oculto dos filósofos.
Para fins de demonstração, será útil servirmo-nos de um exemplo concreto. Seleciono uma importante figura da filosofia moderna, Jean Jacques Rousseau, um filósofo do século XVIII cuja obra e pensamento marcaram profundamente um período da história, e que mesmo hoje estão de alguma forma na base das nossas sociedades democráticas. Contudo, sugiro que olhemos não para as ideias, mas sim para o homem e sua vida.
Rousseau nasceu em Genebra, na Suíça, filho de um comerciante, não propriamente rico. Foi maioritariamente um autodidata, com interesses variados, estudou quanto pôde alguns autores clássicos bem como outros seus contemporâneos. Sendo uma pessoa sem grandes meios próprios, toda a sua vida teve a necessidade de trabalhar para se sustentar, tendo desempenhado várias funções tais como professor de música, preceptor dos filhos de famílias abastadas ou secretário de um embaixador. Teria certamente uma boa imagem de si próprio, e noção do seu valor, pelo que tinha a legítima aspiração de se estabelecer e viver de forma independente, de acordo com o seu mérito. Era esse um dos seus ideais de vida, mesmo que fosse contrário ao costume da época, em que artistas e intelectuais viviam à mercê de patronos que lhes fornecessem sustento.
Rousseau esteve ligado à música grande parte da sua vida, tendo exercido durante muitos anos o trabalho de copista de partituras. A dado ponto da sua carreira compôs uma opereta que obteve sucesso em Paris, sendo inclusivamente mostrada ao rei que, considerando-se entretido se sentiu na disposição de oferecer uma pensão a Rousseau. A pensão real era um enorme privilégio, um sinal de triunfo, e um importante meio de subsistência. Toda a gente o felicitou pela grande honra, mas Rousseau, para choque de muitos dos seus amigos, rejeitou a oferta do rei, preferindo manter-se verdadeiro aos seus princípios.
O homem que escolhe viver pelas suas ideias, tomando um caminho mais difícil e rejeitando o conforto e certeza, pode considerar-se um verdadeiro filósofo. A atitude de Rousseau deve ter sido tudo menos fácil, mas diz-nos muito daquele que seria o seu grau de compromisso para com o ideal de independência.
Num outro episódio da sua vida, opôs-se aos intelectuais da sua época com um texto em que defendia que as ciências e as artes eram responsáveis pela corrupção do ser humano. O Discurso Sobre as Ciências e as Artes surgiu em resposta a um concurso da Academia de Dijon, que questionava se o restabelecimento das ciências e das artes havia favorecido o aprimoramento dos costumes (Rousseau venceu o concurso). Mais tarde na sua vida afastou-se de muitos desses intelectuais, preferindo levar uma vida mais simples e recatada, firmando-se como um mero copista de partituras musicais. Agiu novamente de acordo com as ideias que professou no Discurso.
Através dos relatos selecionados da vida deste homem procurei demonstrar a sua resolução e vontade de agir consoante aquilo em que acreditava ser o mais correto. Estes episódios permitem-nos afirmar que neste homem vivia um ‘verdadeiro filósofo’, tal como o definimos no início. Vejamos, contudo, como também nele existe um lado animal; como popularmente se diz, “no melhor pano cai a nódoa”.
A começar: as maiores obras de Rousseau foram escritas posteriormente ao Discurso já referido, escritas durante o período em que Jean Jacques havia rejeitado a vida de intelectual. Uma delas, Émile ou De l’éducation, é um tratado sobre como educar as crianças, apesar de o seu autor ter sido pai de cinco filhos que enviou para o orfanato. Os seus adversários contemporâneos atacaram-no ferozmente, e Rousseau viveu os seus últimos anos perseguido, pobre, isolado. O que se procura salientar com estes exemplos é a incoerência e a contradição entre as ideias do filósofo Rousseau e o que acontece na vida do ser humano Jean Jacques. Foi apenas a posteridade que o distinguiu e elevou à fama que hoje detém, mas certamente esta não olhou à tumultuosa vida do indivíduo.
Refletindo sobre este exemplo, sobre as contradições desta pessoa tão singular, aquilo que me parece mais interessante é a forma como ele continua a ser um intelectual e um filósofo mesmo quando diz que estes são inúteis e que corrompem a sociedade. Dá que pensar sobre aquilo que a filosofia é, o que representa e que influência pode ter na vida de uma pessoa. A filosofia é de certo modo uma força da natureza, que vive em certos indivíduos com a mesma força dos instintos animais latentes em todos nós.
Utilizaremos outro exemplo para ilustrar um outro aspeto do lado oculto dos filósofos. Desta feita, olhamos para a vida do escritor russo Liev Tolstói, considerado um dos maiores romancistas do século XIX. A sua obra literária é testemunho, através da grande humanidade das suas personagens, do seu conhecimento e capacidade única de ler o coração dos seres humanos. Nada disto, porém, impediu que o seu casamento tivesse sido bastante infeliz graças à marcada insensibilidade com que tratava a mulher. Mais um exemplo altamente contraditório da vida pessoal de um homem cujas ideias se imortalizaram.
É certo que nenhum de nós conheceu os membros deste casal, mas podemos teorizar que talvez existissem incompatibilidades entre os temperamentos de marido e mulher, numa época em que os divórcios não eram socialmente aceites (tal como Tolstói nos conta em Ana Karenina). Supondo que é este o caso, surge a questão: serão as diferenças de temperamento e as reações que elas provocam mais fortes que as nossas ideias? Talvez seja esse o caso em indivíduos com uma personalidade vincada, como aparenta ter sido o caso de Tolstói, o homem que apesar do seu mau exemplo doméstico era um defensor do pacifismo e da moralidade cristã, que como sabemos assenta em larga medida no tratar o próximo como gostaríamos que nos tratassem a nós.
Também aqui temos um exemplo do lado oculto dos filósofos, patente num temperamento pouco concordante com as ideias professadas. É mais uma vez a prova da humanidade destes seres; também nós, se olharmos para as nossas vidas em retrospectiva, nos apercebemos que quase de certeza já demos a alguém um conselho pelo qual não vivemos. Podemos trabalhar na nossa personalidade, e com viva força e dedicação chegar mesmo a mudar alguns dos seus aspetos. Temos, por outro lado, um temperamento inato, certas características inerentes à nossa pessoa que não conseguimos mudar. Mais ou menos disfarçadas, elas acabam por vir à superfície e se manifestar; têm uma força própria que foge ao controlo voluntário e à razão.
Dizemos uma coisa e fazemos outra; os seres humanos são naturalmente incoerentes. Por muito que nos custe a admitir, há aspetos da nossa personalidade e sobretudo do nosso temperamento de que não gostamos. Durante a nossa vida, sentimos inevitavelmente a incompatibilidade de certos traços com outros, com princípios morais, com ideias ou pensamentos adquiridos. Deste confronto surgem contradições e incoerências. Por esta razão, pela sua natureza humana primordial, se torna incontornável o lado oculto dos filósofos.
A natureza humana é mais forte do que qualquer ideia. Mas serão estas incoerências assim tão más? Será que estamos condenados a viver com elas, ou que nos devemos opor e lutar?
Para responder a esta questão, recorro, novamente a um exemplo. Olhamos para a vida de Nietzsche, e em particular para algo quase tão famoso quanto a sua reputação de filósofo. Falo da sua doença mental, a loucura que o castigou nos últimos anos de vida. Recorro à análise que Carl Jung faz do seu enlouquecimento. Diz-nos o psicólogo que Nietzsche, tão obcecado estava em eliminar a incoerência da sua vida, e em viver plenamente de acordo com as ideias (consideradas na época radicais) que defendia, desencadeou mecanismos psicológicos que não era capaz de controlar, e que em última análise o levaram a enlouquecer.
Tendo em conta que as ideias de Nietzsche antagonizaram de forma tão radical a sociedade e os valores do seu tempo, viver de acordo com o seu construto intelectual obriga-o a um isolamento e à rutura da maioria dos laços humanos. Não é difícil de imaginar os efeitos que isso tem numa pessoa, a angústia a que foi condenado um homem dotado de um pensamento tão profundo a que escolheu entregar a vida.
Entende-se desta perspetiva quem categoriza Nietzsche como um mártir da filosofia, mas o que este indivíduo fez é uma exceção e não certamente a regra, pois poucos de nós estariam dispostos a oferecer a sua sanidade mental desta forma. Regressando de novo à interpretação de Jung, a motivação extrema e a entrega com que Nietzsche empreendeu a sua busca por uma coerência contrária àquela que nos dita a nossa condição humana foram a causa da sua quebra psicológica. Da mesma forma que somos mais do que o intelecto enquanto seres humanos, a racionalidade é por si só insuficiente para vencer um sintoma da nossa humanidade. Ao tentar suprimir o seu ‘lado oculto’ através da força do pensamento, Nietzsche acabou por perder a razão, derrotado por ele.
O lema clássico “conhece-te a ti próprio”, tão importante no contexto da Nova Acrópole, é de importância para analisarmos esta problemática. O ‘verdadeiro filósofo’ procura conhecer-se a si próprio, e esta ideia implica que nos analisemos objetivamente, tanto quanto for possível que estejamos vigilantes e atentos em relação às nossas ações, para que desta forma possamos encontrar as nossas incoerências, as inconsistências da nossa personalidade. Talvez seja possível que, conhecendo-nos um pouco melhor, ganhando consciência daquilo que não encaixa assim tão bem no puzzle da nossa alma, possamos integrar os elementos da nossa personalidade em conflito num todo harmonioso e coerente.
Contudo, como bom desígnio humano que é, também a busca do filósofo pelo autoconhecimento está destinada, em maior ou menor grau, ao fracasso. Por cada ação nossa consciente e bem intencionada é desencadeada outra que foge ao nosso controlo, impulsionada pelos nossos instintos e pelas forças da nossa natureza animal e indomável, num xadrez de dimensões muito maiores do que nós.
Talvez esta faceta da existência humana seja inevitável, e talvez é por isso que até os grandes filósofos têm o seu lado oculto, tal como todos nós. Creio, no entanto, que aquilo que distingue os verdadeiros filósofos é isto: apesar de possuírem uma faceta menos agradável, íntima, mais contraditória ou incoerente, como qualquer outra pessoa, não a negam como sua, não lhe fogem, não a temem e, antes pelo contrário, na sua busca pela verdade e pelo autoconhecimento tentam descobri-la, trazendo-a à luz da consciência. Se conseguem ou não? O resultado final não é importante, pois a busca, o caminho, é já um fim em si para aqueles que encaram a filosofia como um modo de vida. Aqueles que, mesmo se dizendo filósofos, negam o lado oculto do ser humano, não são os verdadeiros.