Neste livro, Joseph Campbell explora a ideia de que as narrativas mitológicas geralmente compartilham uma estrutura fundamental. Daí o nome que escolheu, o monomito, já que os mitos são basicamente resumidos num, que contém todas essas características essenciais. Para explicar a jornada do herói, Campbell recorreu, além de alguns elementos de Freud, aos arquétipos de Jung, às forças do inconsciente e à estrutura dos ritos de passagem de Arnold van Gennep. Lembremos que a jornada do herói começa neste mundo normal e quotidiano, do qual parte à chamada da aventura, cruzando um umbral que o leva a um mundo sobrenatural onde não se rege a ordem e as leis do quotidiano. Embarca num caminho de provas, que tem de passar, até alcançar a vitória final e regressar vitorioso para conceder os seus dons aos seus semelhantes. Devemos considerar também que estas provas, apesar de serem simbólicas, podem aparecer na vida normal ou quotidiana de qualquer indivíduo e, uma vez chegado o caso, temos de reconhecê-las primeiro e depois superá-las. Ninguém está isento de provas nesta vida e, o ideal seria que o simbolismo dos mitos nos sirva de pauta, guia e orientação para poder enfrentá-las.
O filme que escolhemos, segundo este breve ciclo, passa-se no Japão do século XIX, quando este se abre ao mundo moderno e ocidental, produzindo-se o inevitável choque entre o que este traz e as suas tradições milenares. No meio deste processo aparece o protagonista, inicialmente como assessor militar do governo Meiji modernizador.
O Último Samurai
É um filme de 2003, de época, drama e ação dirigido por Edward Zwick que coescreveu o guião com John Logan e Marshall Herskovitz. É protagonizado por Tom Cruise, que também o coproduziu, e conta com um elenco muito bom de atores japoneses e de Hollywood. Podemos destacar Ken Watanabe, Timothy Spall, Hiroyuki Sanada, Tony Goldwyn, Billy Connolly e Koyuki Kato. Com música de Hans Zimmer e um cenário muito cuidado.
Argumento
Em 1876, um capitão aposentado do Exército dos Estados Unidos e veterano das guerras contra as tribos indígenas vive traumatizado pelos massacres que observou e dos quais teve que participar. Arruinado e alcoólico, ganha a vida em dificuldades, com demonstrações em feiras do Oeste, mostrando a sua habilidade para disparar e apresentado como um herói das guerras contra os índios, algo que ele odeia profundamente, mas que leva a cabo no meio do seu permanente estado de embriaguez.
É então que recebe uma oferta que vem de um poderoso ministro e empresário japonês comprometido com a modernização do país para treinar o recentemente criado exército imperial, que pensa usar para reprimir uma rebelião samurai contra o jovem imperador. O capitão, farto da sua vida – tinha escapado da morte várias vezes – aceita e marcha para o Japão com um sargento, velho amigo e companheiro, para fazer o que lhe é pedido. Ali conheceu um fotógrafo e tradutor britânico, conhecedor da mentalidade samurai.
Não tarda muito para dar-se conta que o chamado exército imperial é composto por camponeses conscritos com um nível de treino quase nulo. No entanto, sabem de um ataque samurai e o ministro ordena que marchem para os enfrentar, apesar dos protestos do capitão. O confronto é um desastre para o exército imperial, o seu amigo sargento morre e o capitão luta com todas as suas forças, matando um importante samurai, até cair praticamente abatido. No entanto, o líder samurai Katsumoto evita que o matem e levam-no prisioneiro.
Uma vez na aldeia, Katsumoto hospeda-o na casa da sua irmã Taka, que por sua vez é a viúva do samurai que o capitão matara na batalha. Aqui começa o processo de sua transformação. Além de curar as suas feridas, sofre com a necessidade de álcool e pede saquê – uma bebida alcoólica japonesa – aos gritos, pois sofre de síndrome de abstinência, um processo muito doloroso para um corpo viciado em álcool. É um processo de limpeza e eliminação do organismo de todo o álcool ingerido até que seja alcançada a sobriedade. Esta seria a prova física que supera depois de vários dias.
Então ele tem que tratar de entender o lugar e as pessoas onde se encontra. No princípio há muita agressividade e rejeição, tanto pela sua parte, como por parte da comunidade samurai onde permanece prisioneiro. Numa primeira entrevista com Katsumoto, descobre que essa localidade está isolada pela neve das montanhas e não poderá abandoná-la até à primavera, quando a neve derreter. Esse primeiro diálogo reflete com claridade a diferença de mentalidade entre a extrema cortesia japonesa e a maneira americana de ir direto ao assunto. Apesar de alguns encontros com catanas ou espadas de madeira, onde é espancado, mas mesmo assim demonstra a sua grande bravura como guerreiro, pouco a pouco começa a entender e a apreciar a cultura e o modo de vida dos seus anfitriões, além de fazer um esforço para aprender o idioma. Digamos que aqui vai superando a prova emocional, e deixar de os ver como estranhos e inimigos, para começar a admirar as suas virtudes, como a busca pela perfeição em tudo o que fazem. Inclusive exercita-se na arte do kenjutsu ou domínio da espada, que, após uma dura aprendizagem, chega a dominar.
Durante este processo o capitão compreende o porquê da modernização acelerada do Japão para os samurais, que simplesmente ignora as suas tradições e valores, enquanto Katsumoto e ele vão desenvolvendo um afeto mútuo não expressado com palavras. Uma noite, durante uma representação teatral, uns ninjas infiltram-se na aldeia com a finalidade de matar Katsumoto, e durante o combate que se seguiu, o capitão salva a vida de Katsumoto. Essa vitória e essa ação constituem o ponto de inflexão definitivo relativamente à sua atitude. Logo recebem um salvo-conduto para ir a Tóquio, onde Katsumoto planeia libertar o capitão, o que efetivamente faz. Ao chegar à cidade, o capitão descobre que o exército se transformou em algo altamente treinado e bem equipado, e voltam a oferecer-lhe o cargo que ocupava antes, mas ele rejeita-o. O ministro, que controla o imperador e, portanto, o país, observa que as simpatias do capitão mudaram e ordena que seja morto. Paralelamente, prende Katsumoto por porte de armas, o que se tornou ilegal na nova ordem. A ideia é desfazer-se dos dois e eliminar o perigo da rebelião samurai.
O capitão confronta os assassinos enviados para matá-lo e sai ileso graças às artes aprendidas durante a sua estada na aldeia samurai. Então descobre que Katsumoto está prisioneiro e, com a ajuda dos homens deste último, consegue resgatá-lo numa sangrenta operação de resgate, onde morre o filho de Katsumoto. Fogem e preparam-se para enfrentar o exército imperial. É aqui que se completa a transformação do personagem, que é aceite como parte integrante da força samurai, e é-lhe permitido vestir a armadura e carregar as armas do guerreiro samurai, de quem tirou a vida naquele distante primeiro confronto. A sua transformação agora está completa, alcançou a sua redenção e regressou do inferno do álcool, convertendo-se num samurai em todos os sentidos.
Marcham até à batalha onde, apesar da diferença de armamento, vencem o primeiro ataque do exército imperial, para depois terminar com uma carga de cavalaria samurai contra as baterias do exército imperial primeiro e finalmente as metralhadoras Howitzer que massacram os samurais. No último momento, o capitão ajuda Katsumoto a cometer seppuku e alcançar a morte honrosa do samurai derrotado. Ficamos a saber mais tarde que o capitão sobreviveu aos ferimentos e aparece numa audiência com o imperador, onde deve ser assinado um tratado com os Estados Unidos, que interrompe para dar ao imperador a espada de Katsumoto. O jovem imperador, que havia sido discípulo de Katsumoto, pergunta-lhe como morreu, ao que ele responde que é melhor contar-lhe como viveu. Isso faz com que o imperador reconsidere, rejeite o acordo comercial e de forma extraordinária se liberte da influência nefasta do seu ministro. Nada mais se sabe sobre o capitão, mas presume-se que pode acabar os seus dias regressando à aldeia onde foi feliz e por fim, morrer em paz.
Comentário
Neste caso, as provas que submetem a vida são de tipo bélico, já que se trata de um guerreiro, mas inclui a figura da descida aos infernos – no seu caso do álcool – e a sua redenção final. Nem todo o ser humano tem que experimentar provas parecidas, mas sim o seu equivalente em cada caso.
Interessou-me esta história cinematográfica do herói porque expressa claramente as provas pelas quais tem que passar no seu caminho de redenção consigo mesmo. Creio que isto foi muito bem conseguido, sem perder o sentido cinematográfico de aventura do bom cinema clássico.
As críticas foram em geral positivas, como no caso do Chicago Sun-Times, que afirmou que era um filme de conceção bela, escrito com inteligência, atuado com convicção e de um épico sensato, o que é pouco comum. Por sua vez, Mainichi Shinbun do Japão considerou que o filme foi uma importante melhoria considerando as anteriores tentativas de Hollywood de representar o Japão, notava-se que o diretor pesquisou a história do Japão, incluiu atores japoneses muito conhecidos e teve o cuidado de contratar especialistas para cuidar das formas corretas de fala coloquial e formal da língua japonesa. Este último não é trivial, pois, embora os personagens falem na sua língua nativa – salvo aqueles que são capazes de cruzar a barreira do idiomática – nem todos têm necessariamente a mesma forma de se expressar e isso pode ser notado pelos nativos dessa língua. É certo que os não falantes de japonês não são afetados por isso, mas não deixa de ser uma demonstração de grande profissionalismo e, por que não, de cortesia ao público japonês.
Conclusão
Considero um filme muito bem feito e um dos melhores que já fez Tom Cruise na sua já longa carreira. Neste caso, fomos poupados de feitos grotescos, como os samurais a falarem inglês ou coisas do estilo. Em resumo, uma boa experiência cinematográfica com um ar de cinema clássico e altamente recomendado.
Alfredo Aguilar
Imagem de destaque: Cena do filme O Último Samurai (2003). Captura de imagem do filme. Radar Pictures