Este é o título de uma obra publicada em 1949 pelo mitólogo, escritor e professor americano Joseph Campbell, onde analisa a partir da mitologia comparada a estrutura mitológica da jornada do herói arquetípico que podemos encontrar nos mitos de diferentes povos ao longo da história da humanidade. O professor Campbell constata que as narrativas mitológicas geralmente compartilham uma estrutura fundamental, o que ele chamará de monomito ou jornada do herói, que poderia ser resumida da seguinte forma: “O herói começa a sua aventura a partir do mundo conhecido, recebe o chamado à aventura que o leva a uma região de maravilhas sobrenaturais, ele enfrenta forças fabulosas num caminho de provações, onde evidentemente será testado e em algumas ocasiões receberá a ajuda de um aliado, e obtém uma vitória decisiva. Então o herói retorna da sua misteriosa aventura com a capacidade de conceder dons a seus irmãos.” Este processo tem fundamentalmente três etapas: a partida ou separação, que é quando o herói parte perante o chamado à aventura (ou à desventura conforme o caso); a iniciação, isto é, as aventuras que o testarão ao longo do caminho; e o regresso, a volta a casa e ao mundo quotidiano, transformado pela experiência.

Este trabalho influenciou vários artistas de diferentes gêneros e no cinema em particular, o uso da teoria do monomito, por George Lucas na realização dos filmes Star Wars, é conhecido e bem documentado.

Porém, devemos ter em mente que as provas que a vida nos apresenta não precisam necessariamente seguir à risca o padrão acima mencionado e podem ser apresentadas da forma mais inesperada numa situação aparentemente cotidiana, mas que leva ao personagem, ou candidato se seguirmos o padrão estrito, até uma ou mais situações extremas que testam sua integridade e força interior.

Nesta ocasião, mais uma vez dentro do conjunto de artigos sobre cinema, proponho dois exemplos, muito diferentes entre si, para encontrar o percurso do herói no cinema, embora que, em princípio, não seja essa, aparentemente, a intenção com que foram filmados.

High Noon
(Sozinho diante do perigo em Espanha) (Na hora marcada na América)

Este é um filme de faroeste americano de 1952, em glorioso preto e branco, produzido por Stanley Kramer e Carl Foreman a partir de um roteiro deste último, dirigido por Fred Zinnemann e protagonizado por Gary Cooper, Grace Kelly, Katy Jurado, Lloyd Bridges e Thomas Mitchell entre outros. A música de Dimitri Tiomkin encaixa-se perfeitamente e merece uma menção. A trama é coordenada de forma que a duração dos acontecimentos na tela seja igual à duração do filme, ou seja, em tempo real, o que por si só é uma conquista formidável.

Cartaz do filme. Domínio Público

O argumento

Em uma típica cidade do Oeste, no território do Novo México, temos um veterano Marshal que é muito eficaz nas suas funções e querido por todos na cidade. O Marshal terminou seu período como tal e decidiu casar-se com a sua jovem namorada para depois se retirar para outra cidade, abrir um negócio e viver uma vida sem sobressaltos. Após o casamento, porém, chega a notícia de que um bandido que o Marshal capturou anos atrás cumpriu a sua pena, foi libertado da prisão, e está de volta para se vingar. Prevê-se que esse personagem chegue no comboio do meio-dia e três membros do seu gangue já chegaram à cidade e esperam-no na estação ferroviária, um deles é irmão do bandido.

É aí que começa a sua prova, ele deve decidir se por senso de dever irá retomar o seu cargo e enfrentá-los ou partir com sua jovem esposa, como ela pede. Ela se tornou Quaker(1) porque odiava a violência e suplica para que ele se vá embora com ela porque esse problema já não é da sua responsabilidade. O Marshal responde que, mesmo que ele fosse com ela, eles ainda o perseguiriam. Soma-se a isso que o seu substituto só chegará dentro de um mês e que o seu assistente é um jovem impulsivo, ofendido porque o Marshal não o recomendou para o cargo e recusa-se a ajudá-lo ou a ter qualquer contato com ele.

Diante dessa situação, ele tem consciência de que deve enfrentar o problema, mesmo que arrisque a vida nisso. A sua jovem esposa dá-lhe um ultimato: ela partirá no comboio do meio-dia com ou sem ele. Por mais que isso o fira, ele não muda sua decisão e, pelo contrário, percorre a cidade visitando seus amigos para pedir voluntários que o ajudem diante do que está por vir. Aqui a prova torna-se mais acirrada, todos e cada um recusam-se, por uma razão ou outra, a ajudá-lo diante do perigo. Os seus antigos amigos e aliados evitam-o ou dão desculpas; O juiz que sentenciou o atirador prepara-se para deixar a cidade e ordena que ele faça o mesmo; Seu ex-assistente devolve o distintivo e se oferece para ajudá-lo apenas se ele conversar com as autoridades da cidade para torná-lo xerife, o que o nosso herói recusa por não o considerar qualificado. Todos querem evitar o confronto, apesar de ser inevitável, apenas um se oferece, mas quando descobre que é o único pede desculpas e diz que não pode, que tem família e tem que pensar nela. Até o Presidente da Câmara, que sempre foi um amigo muito próximo, lhe vira as costas e diz que o melhor é evitar o confronto para o bem de todos. Apenas um garoto de 14 anos se oferece para lutar com ele, o que nosso herói obviamente recusa.

Aos poucos ele fica sozinho, o tempo passa e depois de um confronto com o seu ex-assistente, que queria forçá-lo a deixar a cidade, ele fica sozinho no seu escritório onde escreve o seu testamento e se prepara para arriscar a sua vida e enfrentar o inevitável.

Ao mesmo tempo, a sua jovem esposa, enquanto espera o comboio, encontra-se com a dona do bar que vendeu tudo e vai-se embora. Essa pessoa é uma mulher madura e um amor antigo do marido, então a esposa, num ataque de ciúmes, acredita que o marido vai ficar para a proteger, mas ela responde que não só não é esse o caso, mas que se fosse ela a esposa, ficaria para lutar ao lado do marido, o que seria a coisa certa a fazer. Enquanto isso, o relógio avança e a tensão aumenta.

Cena promocional do filme. Domínio Público

Quando chega a hora, exceto os passageiros que se dirigem para o comboio, a cidade fica vazia esperando o que vai acontecer. O comboio chega às doze horas e, enquanto alguns passageiros embarcam, desce o bandido, que o seu irmão e seus dois comparsas esperam. Têm as suas armas prontas e, assim que colocam o cinto com as armas, começam a caminhar em direção ao centro da cidade, chegou a hora da verdade.

O Marshal, por sua vez, sai do seu escritório e caminha na direção oposta, marchando em direção ao seu destino e ao que este lhe reserva. Ele é só um e do outro lado vêm quatro com a intenção de matá-lo. Num determinado momento, um deles faz um barulho que o alerta para onde estão, então ele esconde-se para surpreendê-los. Ele aparece de surpresa e abate o irmão do bandido, há uma troca de tiros. Do comboio, ao ouvir os tiros, a sua jovem esposa não aguenta e sai do comboio para ir em sua busca.

O tiroteio continua e um membro do gangue persegue-o até o estábulo, onde ele conseguiu subir até o topo, e dispara várias vezes sem lhe acertar. Pelo contrário, o Marshal acerta-lhe com um tiro e mata-o. Outro integrante do grupo conseguiu esconder-se e tudo indica que ele conseguirá apanhar o Marshal pelas costas, porém, a sua esposa conseguiu chegar até onde ele está e, após apanhar a arma de um dos contendores, atira-lhe pelas costas e mata-o. É assim que restam apenas o Marshal e o líder da gangue, que se enfrentam num duelo final em que o Marshal finalmente consegue vencer.

Os moradores da cidade aparecem, mas o Marshal sobe para uma carroça com a sua jovem esposa, pega no seu crachá, que atira ao chão, e prepara-se para deixar a cidade que o traiu, para nunca mais voltar.

Comentário

Neste caso o herói apresenta-se-nos na sua solidão, pois, embora ao iniciar o caminho, por mais difícil que tenha sido, tem a certeza de que encontrará ajuda entre aqueles a quem serviu fielmente desde a sua posição de Marshal, limpando a cidade de malfeitores e ajudando uns aos outros. Mas talvez a verdadeira prova do seu carácter não seja o confronto final com a morte de todos os malfeitores, por mais terrível que isso seja para qualquer um, mas sim o sentimento de abandono e solidão que sofre – e que deve superar – por parte de todos aqueles que considerava seus amigos de confiança. A ajuda chegou, no momento crítico, da sua jovem esposa que, apesar do seu pacifismo, mata para salvá-lo. É assim que ele finalmente sai vitorioso da prova e deixa aqueles ingratos para uma nova vida longe deles.

O histórico

O filme foi rodado em plena “caça às bruxas” na era chamada macarthismo que ocorreu nos Estados Unidos de 1950 a 1956, em plena Guerra Fria, onde a ameaça de prisão foi usada para prender muitas pessoas nos meios de comunicação, incluindo o cinema, o governo e até os militares, denunciaram os seus colegas, acusando-os de pertencerem ao comunismo, o que os tornou espiões da União Soviética aos olhos curiosos dos responsáveis ​​por tudo aquilo. Isso causou estragos na indústria cinematográfica, onde muitas carreiras foram destruídas e alguns tiveram que emigrar como o roteirista deste filme. Charles Chaplin foi o caso mais famoso, pois durante muitos anos não conseguiu voltar a entrar no país. Foi estabelecida uma “lista negra” com aqueles que se recusaram a cooperar nos interrogatórios e a denunciar os seus amigos, o que os tornou uma praga para a indústria que deixou de lhes oferecer emprego.

É por esta razão que sempre se considerou que este filme foi uma denúncia sorrateira desse estado de coisas com muitas traições envolvidas. Não podemos descartar que essa intenção talvez tenha existido na escrita do roteiro. Mas, desde o início, foi considerado de certa forma como o anti-western e detestado por alguns como John Wayne, já que geralmente nos filmes de faroeste os amigos se ajudavam na luta contra os malfeitores e aqui ninguém ajuda o protagonista. Aí reside precisamente a sua originalidade e, intencionalmente ou não, surge a figura do herói solitário que nos preocupa.

O cinematográfico

O papel de Marshal rendeu um Óscar para Gary Cooper, que é magistral nesse papel, mas ele não foi a primeira escolha. Ofereceram-no primeiro a John Wayne, que o rejeitou categoricamente porque o considerou uma crítica à “lista negra” proveniente dos interrogatórios do macarthismo, que ele apoiou em princípio, embora mais tarde tenha mudado de ideias. Também foi oferecido a Gregory Peck, que recusou a oferta porque no ano anterior tinha filmado um faroeste que achou muito parecido. Gregory Peck disse mais tarde que considerou essa decisão o pior erro de sua carreira. O filme também marcou a estreia de Grace Kelly no papel da jovem noiva. Também não podemos esquecer que Lee Van Cleef também estreou neste filme como um dos pistoleiros, que não diz uma palavra ao longo do filme, mas se destaca nos close-ups dos rostos dos integrantes do grupo, com aquele olhar intimidador e agressivo. Isto faz-me lembrar que Lee Van Cleef comentou numa entrevista já no final da sua carreira “aquele olhar foi a minha fortuna”. Sinceramente, não poderia concordar mais com ele.

O filme, portanto, é um clássico do cinema e uma experiência cinematográfica extraordinária, altamente recomendada em todos os sentidos.

Alfredo Aguilar

(1) A sociedade religiosa dos Quakers ou Amigos é uma comunidade religiosa dissidente de origem cristã protestante, fundada na Inglaterra por George Fox no século XVII é considerada uma das igrejas historicamente pacifistas.

Imagem de destaque: Cena do filme “O Herói de Mil Faces”. Domínio Público