Hegel, o grande pensador alemão, deve ter conhecido ou pressentido intuitivamente essa verdade, quando disse que o Inconsciente fez evolucionar o Universo «com a esperança de adquirir clara consciência de si mesmo», ou, por outras palavras, de se tornar Homem.
Helena Blavatsky, Doutrina Secreta
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Estugarda, no ano de 1770. Com 18 anos frequentou o seminário de Tübingen, com o objetivo de seguir uma carreira de pastor luterano. Em 1793 abandonou o seminário e procurou uma ocupação como preceptor numa família aristocrática na cidade de Berna. Após esta experiência, tudo indica que Hegel estava talhado para seguir uma carreira na docência da filosofia, iniciando as suas funções de professor não efetivo, com a ajuda de Wilhelm Schelling (1775-1854), um dos expoentes do idealismo alemão. Apesar deste auxílio, seria Schelling que, após a morte de Hegel em 1831, vítima de cólera, assumiu uma crítica muito forte à sua filosofia, designando o pensamento hegeliano como negativo, numa tentativa de demover a falange de discípulos que adotaram Hegel como seu mestre. Influenciado por aquele movimento filosófico, Hegel acreditava num Espírito da Terra e iria desenvolver o seu interesse na filosofia da Mente ou do Espírito, o que provavelmente levou Helena Blavatsky a citá-lo nas suas obras, sempre com o reconhecimento e admiração pelas ideias hegelianas. Segundo os relatos disponíveis, Georg Hegel não era dotado de grandes manifestações de oratória, mas o seu ar circunspeto, a profundidade das suas reflexões e a áurea que o envolvia, atraíam um elevado número de estudantes, que vinham ouvi-lo de toda a parte da Alemanha.
A sua filosofia é difícil de entender, porém, tão desafiante, apaixonante e atrativa como a de Platão, uma vez que o próprio Hegel considerava o platonismo, a filosofia mais pura. A sua biblioteca incluía escritos herméticos e correspondia-se com alguns colegas sobre a natureza da magia. Muitas vezes esta expressão relativa ao hermetismo é entendida num plano depreciativo ou menoscabada, mas significa simplesmente, aquilo que é difícil de interpretar, numa alusão ao Três Vezes Grande, Hermes Trismegisto, uma designação atribuída pelos gregos da época helenística, ao deus egípcio Thot, da magia, sabedoria e arte, em geral associado às ciências ocultas e à alquimia. A infinidade do conhecimento é naturalmente hermética, fechada ou selada, e assim, não estando ao alcance de todas as Interiorizações, surgem posições precipitadas e preconceituosas face ao conceito daquilo que é hermético. Hegel intuiu e exaltou o conhecimento hermético, avaliando pelos autores presentes na sua estante bibliotecária: Cornelius Agrippa (1486-1535), Paracelso (1493-1541), Giordano Bruno (1548-1600), Jakob Böhme (1575-1624); dedicou muita atenção aos trabalhos do médico suábio, Franz Anton Mesmer (1734-1815), aos fenómenos psíquicos, à radiestesia, à precognição e magia; associou-se publicamente a ocultistas conhecidos como Franz von Baader (1765-1841); a filosofia hegeliana foi estruturada seguindo o uso hermético das correspondências; apoiou-se em histórias do pensamento que discutiam Hermes Trismegisto, Pico della Mirandola (1463-1494), Robert Fludd (1574-1637) e o hebraísta alemão Christian Knorr von Rosenroth (1631-1689). Alexander Glenn Magee, num trabalho muito interessante neste contexto, revela-nos esta natureza hermética, patente nos seus apontamentos pessoais, como se pode constatar no misterioso diagrama triangular atribuído a Hegel, conhecido como Triângulo Divino, o qual desenvolveremos mais adiante.
O conceito hermético sobre o Espírito Absoluto produziu uma centralidade na reflexão hegeliana. Mas como podemos nós entender o Absoluto? Numa das citações feitas por Blavatsky, na Doutrina Secreta, refere que o Absoluto em Hegel é o Parabrahman dos Vedantinos ou a Realidade Una, ao mesmo tempo Absoluto Ser e Não Ser, ou seja, o Princípio Uno ou a Essência Cósmica, Causa sem Causa ou Raiz sem Raiz. Escrito assim, parece que este conceito do Absoluto é uma realidade incondicionada e amplamente entendida para todos os fenómenos ignotos e cientes, pressentidos e sentidos. Ao exercitarmos uma reflexão mais profunda, isenta de outras influências e auxílios filosóficos, vemo-nos incapazes de determinar com alguma racionalidade, sobre o Absoluto, talvez, somente intuir levemente, o poder transcendental da pluralidade total e suprema do seu conhecimento. Blavatsky volta a fazer referência a Hegel e aos transcendentalistas alemães, no âmbito deste conceito, ao assinalar as limitações da ideia do Espírito Supremo dos protagonistas do idealismo alemão. A cofundadora da Sociedade Teosófica argumentou na sua Doutrina Secreta, que as escolas de Schelling e de Fichte divergiram muito do conceito arcaico e primitivo de um Princípio Absoluto, e não refletiram senão um aspeto da ideia fundamental do sistema Vedanta. Acrescentou ainda, que o Absoluter Geist ou o Espírito Absoluto, sugerido vagamente pelo filósofo alemão Karl Von Hartmann (1842-1906), na sua obra Filosofia do Inconsciente, é talvez a maior aproximação das doutrinas hindus advaítas, a que pôde chegar à especulação europeia, está ainda assim, muito longe da realidade. Se tantos filósofos dedicaram a sua vida às reflexões desta ideia, não podem restar mais dúvidas quanto à sua Realidade, longe de ser entranhada pela Humanidade, mas inerente à sua própria natureza.
O termo Absoluto deriva do latim absolutus, o que significa desprendido, desligado, completo, por outras palavras, independente, autónomo, perfeito, nem relativo nem limitado a qualquer coisa, e quando se refere ao Princípio Universal, denota um substantivo abstrato, relativo àquilo que não tem atributos, e nem pode ter. Hegel associa este conceito à ideia de Deus, considerando que o Absoluto em Deus, só o é porque tem a totalidade do seu autoconhecimento, cuja omnipotência criativa faz o Homem em Deus e Deus no Homem. É como se o Homem, ou melhor, o Espírito da Humanidade, vivesse a ambição da totalidade, talvez ainda inconsciente do Uno, em busca contínua do sistema Absoluto, comparticipando na construção da História do Espírito Universal, onde se inclui a ideia panteísta dos Avatares periódicos, ou seja, as encarnações dos grandes reformadores religiosos, que impulsionam o Espírito do Mundo na Humanidade, porque a essência do Homem é o Espírito, condição ímpar para alcançar a Verdade, afastando-se do seu estado finito e da exclusiva consciência de si mesmo. Para Hegel não existe mais razão, para haver distinção entre Deus e o Homem.
Blavatsky reconheceu o estatuto do grande pensador alemão, ao afirmar que Hegel deve ter conhecido ou pressentido intuitivamente essa verdade, quando disse que o Inconsciente fez evolucionar o Universo com a esperança de adquirir clara consciência de si mesmo, ou por outras palavras, de se tornar Homem. Segundo Blavatsky, significa que Brahma também é constantemente impelido pelo desejo de criar, da mesma forma que o sopro se torna pedra; a pedra converte-se em planta; a planta em animal; o animal em Homem; o Homem em espírito; e o espírito em um deus. Foi esta efetiva evolução que transformou alguns Homens em sábios sagrados, conhecidos na hierarquia mais elevada por construtores e arquitetos do universo e dos seres vivos na Terra, quaisquer que tivessem sido as suas formas e aspetos em outros mundos e nos Manvantaras (um período de manifestação, em oposição a Pralaya, dissolução ou repouso, aplicado a vários ciclos, especialmente a um Dia de Brahma, que corresponde a 4.320.000.000 anos solares) precedentes, de acordo com Blavatsky. A autora da Doutrina Secreta cita e reconhece uma vez mais, que segundo Hegel, o Inconsciente jamais se daria à tarefa vasta e complexa de fazer evolucionar o universo, se não o movesse a esperança de alcançar uma clara consciência de Si Mesmo. Blavatsky conhecia bem a filosofia e o pensamento de Georg Hegel, chegando mesmo a apelidá-lo de grande metafísico, para quem a Natureza é um perpétuo vir a ser, um conceito puramente esotérico, nas próprias palavras de Blavatsky. Hegel disse a propósito deste conceito que: Deus (o Espírito Universal) faz-se objetivo como Natureza, para dela emergir em seguida. Esta ideia de Hegel, faz-nos transparecer que afinal o Espírito Universal é uma entidade objetiva, que está ao nosso alcance a todo o momento. Quando nos abstraímos da nossa vida material, e nos compenetramos nas dimensões transcendentais, então, basta cerrar os sentidos e seguir os trilhos que nos guia o pensamento, olhando, escutando, sentindo, tudo aquilo que a Natureza nos quer fazer interiorizar. Basta-nos a capacidade de pensar, construir imagens mentais, imaginar tantos cenários e realidades distantes, criar o que nos impele, sentir o que está ausente, para reconhecermos que o Absoluto nos chama permanentemente. É esta ampla consciência que Hegel nos pretende transmitir, a Natureza como um perpétuo vir a ser, a chave para o entendimento da nossa posição no universo, e o papel da evolução da consciência da Humanidade, para irmos discernindo a Consciência da Natureza.

Pintura de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Domínio Público.
O pensamento de Hegel está imbuído de uma filosofia místico-hermética, com a qual sentiu a necessidade de conciliação com a filosofia e a teologia dominantes do seu tempo, de modo a procurar alinhamentos com as suas responsabilidades públicas, lembrando as atribuições como professor universitário. Para ensaiar este entendimento, torna-se crucial a leitura da sua obra A Fenomenologia do Espírito (1807), cujas ideias não são sempre, claramente assimiláveis, mas na qual poderemos identificar muitas abordagens de influência platónica. Blavatsky chegou a escrever que os belos conceitos de Hegel encontram aplicação nos ensinamentos da Ciência Oculta, que os mostram a Natureza, evidenciando a necessidade da consciência da Humanidade se compenetrar cada vez mais, com a Consciência da Natureza. Parece-nos notável esta via hegeliana, na busca do verdadeiro sentido da História do Espírito, da Revelação da Natureza, da necessidade da Correspondência entre essas duas Consciências. A Humanidade como essência coletiva objetiva, ainda não se deu conta da sua predominante certeza sensível, dos desafios para a interiorização do tempo, e da condição da experiência imediata da consciência. Georg Hegel chama-lhe a consciência criadora do Enquanto, o somatório dos fenómenos sensíveis, coisificados na medida quase exclusiva das perceções, como se o universal puro e a pura essência estivessem interditados, conduzindo a resultados imediatos e ao falso real. O universal vive carente de determinação, e a Humanidade perceciona-o como um conjunto de propriedades indeterminadas, prevalentes em superficialidade, sem a maturação da consciência espiritual e metafísica. Adianta Blavatsky, na obra Ísis Sem Véu, com muita atualidade, que o nosso ciclo atual é sobretudo, um ciclo de morte de almas. A cada passo da vida, acotovelamo-nos com homens e mulheres sem alma. Também não nos podemos admirar, no estado atual das coisas, com o gigantesco fracasso dos últimos esforços de Hegel e Schelling para uma construção metafísica de um sistema. Quando factos, factos palpáveis e tangíveis do Espiritualismo fenomenal acontecem diariamente e de hora a hora, e ainda assim são negados pela maioria das nações civilizadas, poucas hipóteses há para a aceitação de uma metafísica puramente abstrata pela multidão sempre crescente de materialistas.
Georg Hegel admite que o sujeito é um complexo de sensações e os movimentos da consciência, o empirismo e o conhecimento que deriva da experiência sensorial. O imanente, perdurável ou permanente está inseparavelmente contido na natureza de um ser ou de um objeto, assim torna-se necessário descodificarmos conscientemente, toda essa natureza intrínseca, para que possamos entender que afinal somos seres emanados de uma entidade infinita, que nos conduz ao conhecimento do Absoluto. A razão é crucial neste estado de desenvolvimento, basilar para despertar toda a consciência da realidade, que nos confronta com a ideia observadora do drama histórico, ou seja, a responsabilidade e o compromisso do devir ou vir a ser, a vivência constante do movimento, da mudança, da flutuação entre a estabilidade e instabilidade, porque como Humanidade somos diretamente intervenientes na realidade da essência histórica. O Espírito deve persistir no conhecimento de si mesmo, e eliminar as probabilidades do acaso. Esta variável é inexistente. E a evolução é necessária pois não há outra forma de ser, esta é a razão do filósofo, a busca do entendimento do presente e a interiorização do elevado valor da experiência histórica, que nos conduz à total sabedoria. O objetivo é entender a finalidade do movimento histórico e a importância da sua transitoriedade, limpando o que é evanescente ou efémero, porque se escapa, importando fixar a sucessão histórica encadeada por encarnações (uma palavra muito referida por Hegel), na medida em que o Espírito é sempre concreto, nunca é abstrato.

A Fenomenologia do Espírito de Hegel (1807). Domínio Público
Segundo Alexander Magee, alguns investigadores sugeriram que Georg Hegel teve uma fase filosófica-teosófica, apoiada nas experiências que viveu em Berna e Frankfurt, quando despertou o seu interesse pelos escritos do teólogo e místico alemão Eckhart von Hochheim (1260-1328) e pelo frade dominicano, místico do cristianismo, Johann Tauler (1300-1361). Esta influência pode explicar a origem e enquadramento do enigmático Triângulo Divino que foi encontrado nos apontamentos pessoais de Hegel, sem haver grande certeza sobre a data deste escrito, e tão pouco determinar se foi efetivamente o seu autor. Mas o que importa evidenciar neste escrito é o conjunto de elementos planetários (Sol, Lua, Mercúrio, Marte, Júpiter e Saturno), alquímicos (Fogo, Enxofre, Antimónio, Estrela de Cinco e de Seis Pontas) e astrológicos (Capricórnio, Peixes, Leão, Virgem e Sagitário) representados em torno de um triângulo central com o vértice para baixo (alquimicamente representa a Água, uma vez que estando com o vértice para cima, representa o Fogo), e outros três mais pequenos, um em cada vértice daquele maior. A diversidade simbólica parece intuir a ideia da filosofia da Totalidade, para justificar a sua ideia do Absoluto. A maior parte dos símbolos configurados nesse Triângulo Divino, atribuído a Hegel, não oferece dúvidas quanto à sua simbologia planetária, alquímica e astrológica, os quais podem ser visualizados no quadro seguinte:
Todavia aparecem mais quatro símbolos que não são facilmente identificados, sob a perspetiva alquímica, que podem eventualmente, ser interpretados como: Caput Mortuum (cabeça morta, nigredo ou morte espiritual, resto, resíduo, sobrante), Putrefactio (apodrecimento), Fixum (fixar, prender, conduzir, enfiar, anexar, afixar, colocar, erguer, montar), Corium (cório, pele, couro) e Calx Viva (cal viva, cal virgem, óxido de cálcio).

Uma tabela de símbolos alquímicos da obra The Last Will and Testament, de Basil Valentine (1670). Domínio Público.
Em cada lado do Triângulo Divino aparece a palavra SPIRITUS, e tudo isto tem uma relação com o sistema filosófico de Hegel, onde o Espírito e o Absoluto andam de mãos dadas. A combinação de elementos celestiais e terrestres induz a necessidade de compreensão da totalidade dos movimentos do Espírito para alcançar a plenitude da natureza do Absoluto. Novamente a pena de Blavatsky, citando Hegel, na Doutrina Secreta: A história do Mundo principia com o seu propósito legal, a realização da Ideia do Espírito, somente de um modo implícito (an sich), isto é, como Natureza; um instinto consciente e oculto, bem profundamente oculto; e todo o processo da história… tende a converter em consciente esse impulso inconsciente. É muito interessante esta visão de Hegel, quando coloca ênfase no dinamismo da história, referindo-se naturalmente, à história do Espírito, que tem como atributo, o desvelamento paulatino dessa consciência oculta e latente, e que deixa o Espírito vagueando entre a ideia de liberdade e a emergência da verdadeira necessidade do conhecimento. O Homem livre sente a necessidade de transmutar continuamente o seu inconsciente, na busca sintonizada com o Mundo do Espírito. Enquanto o indivíduo sente a necessidade de adquirir a consciência de si mesmo, também o Espírito vai conquistando a sua própria contemplação ao descobrir a realidade concreta.
O Espírito e o Absoluto são duas substâncias supremas na filosofia de Hegel. O Espírito evolui na medida da maturação da sua autoconsciência, o que significa desbravar o conhecimento profundamente oculto, e harmonizar com a consciência do Espírito Absoluto, Aquele que permitiu ao Espírito da Humanidade, a liberdade da consciência para participar ativamente no processo complexo e conturbado da construção da História. O Espírito Absoluto conferiu ao Espírito do Mundo a qualidade interferente na elevação ou queda do seu próprio Destino, cujo engrandecimento só reconhece a via do conhecimento Absoluto. Esse é o Caminho proposto na filosofia de Georg Hegel, a Consciência da Humanidade na determinação da sua própria História.
Fontes:
– Blavatsky, Helena Petrovna (1973), Doutrina Secreta, São Paulo: Editora Pensamento.
– Blavatsky, Helena Petrovna (1995), Ísis Sem Véu, São Paulo: Editora Pensamento.
– Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, Meneses (trad.), Paulo (2003), A Fenomenologia do Espírito, 2ª edição, Petrópolis: Editora Vozes.
– Inwood, Michael (1997), Cabral, Álvaro (trad.), Chediak, Karla (rev.), Dicionário de Hegel, Jorge Zahar Editor Ltda.
– Lüdy, Fritz (1928), Alchemistische und chemische Zeichen, Berlin: Gesellschaft für Geschichte der Pharmazie.
– Magee, Alexander Glenn (2001), Hegel and the Hermetic Tradition, London: Cornell University Press.
– Pernety, Antoine-Joseph (1758), Dictionnaire mytho-hermétique, dans lequel on trouve les allégories fabuleuses des poètes, les métaphores, les énigmes et les termes barbares des philosophes hermétiques expliqués, Paris: Bauche, Libraire, Sainte Genevieve.
Carlos Paiva Neves
Imagem de destaque: Autores herméticos que influenciaram Georg Hegel: Cornelius Agripa, Franz von Baader, Giordano Bruno, Paracelso, Robert Fludd e Jakob Böhme, Imagem composta. Creative Commons