Introdução
O escudo de Héracles é um poema de Hesíodo cuja antiguidade é dificilmente calculável, mas estimada em 2800 anos aproximadamente. Esta obra, inspiradora de homens durante toda a antiguidade nas costas do Mediterrâneo e ao largo e longo da Europa, com influências directas até à modernidade, apresenta-nos um modelo simbólico, arquétipo do ser humano: o herói.
Especialmente, estará centrada em Héracles, cuja força e inteligência ainda hoje inundam os corações dos filósofos para que no seu interior cresçam o valor e a virtude.
A obra está situada nas cercanias do Oráculo de Delfos, umbigo do mundo helénico. Mais precisamente, nos bosques dedicados ao deus Apolo, divindade da luz, da claridade e da harmonia. Neste lugar sagrado encontrava-se Cicno e seu pai Ares, deus da guerra e “matador de homens”, “cujos gritos faziam estrondear o bosque sagrado”, despojando aqueles que levavam oferendas a Pítia.
Estes dois funestos companheiros, o uno mortal e o segundo imortal, estariam acompanhados também pelos outros filhos de Ares, os terríveis Medo (Fobos) e Terror (Deimos).
“O bosque inteiro e o altar de Apolo Pagaseo resplandecia por causa do terrível deus, dele e das sua armas; como fogo lançava clarões pelos seus olhos”.
Este lugar sagrado encontrava-se no caminho de Traquis, caminho que Héracles, com seu sobrinho Yolao[1] (que também era seu auriga) estavam percorrendo. Ali se encontraram o corpulento Anfitrioníada e o funesto Cicno – tão sedento de guerra como seu pai -, ambos nos seus carros. Feliz estava Cicno de poder matar Héracles e o seu condutor, embora sendo fantasias, pois Apolo, famoso lançador de dardos certeiros, lançou contra ele o poderoso filho de Zeus para ser quem representasse a justiça divina.
“Os velozes corcéis faziam ressoar o solo, golpeando com seus cascos; e uma fumarada de pó os envolvia”.
Os preparativos para o combate
Nos momentos antecedentes da batalha, Hesíodo revive o diálogo entre Héracles e seu sobrinho, heróis enviados pela vontade divina de Zeus para combater os funestos males encarnados por Cicno e Ares que açoitavam os peregrinos em Delfos.
“E aquele então dirigiu-se ao seu auriga, o poderoso Yolao:
Amigo meu! Agora tu, rápido, toma as rédeas púrpuras dos corcéis de casco veloz e fazendo crescer uma grande coragem no teu peito, dirige seguro o rápido carro e os briosos corcéis de casco veloz, sem medo algum do estrépito de Ares matador de homens; o qual agora, com os seus gritos, faz atroar o sagrado bosque de Febo Apolo, senhor do dardo certeiro; mas seguramente que por muito violento que seja, vai saciar-se de guerra.
Responde-lhe por sua vez o irrepreensível Yolao:
“Venerável amigo! Sem dúvida o pai dos homens e dos deuses honra a tua pessoa; e o deus cabeça de touro, Ennosigeo[2], que habita as ameias de Tebas e protege a cidade; por quanto agora entregam nas tuas mãos este mortal, principal e poderoso, para que tenhas nobre fama? Mas Ea! veste as tuas armas bélicas, a fim de prontamente, aproximando os carros, o de Ares e o nosso, lutemos (…)”.
De destacar, que o Héracles que apresenta Hesíodo é um herói maduro, justo, prudente e consciente da sua missão transcendental, pois já havia atravessado senão todos, algum dos seus doze trabalhos característicos.
Antes da batalha Héracles começa a vestir as suas armaduras, pois, que herói sairia a combate sem elas e as suas armas? Em primeiro lugar, protegeu as suas pernas com brilhantes grevas construídas por Hefesto, deus do fogo e forjador subterrâneo de virtudes. Depois o seu peito cobriu com áurea couraça, presente de Palas Atenea, deusa da sabedoria e da guerra. Espada, lança, arco e flechas foram as armas que exibiu. Finalmente, cobriu a cabeça com um esculpido elmo de aço. Assim, protegido por presentes dos deuses, que ele mesmo ganhou ao longo das suas árduas tarefas, o divino filho de Zeus, empunhou o escudo, pronto para sair em combate. É interessante destacar neste ponto que, ao herói protegem-no os deuses, pois eles presenteiam as suas armaduras, como “prémios” por tarefas cumpridas, para levar as suas novas missões a bom porto.
O escudo, o coração do poema
O Escudo de Héracles, construído por Hefesto, terá o papel central na obra de Hesíodo. Circular na sua forma, de gesso, marfim, âmbar e ouro como era construído. No seu centro havia uma monstruosa serpente, sobre a qual voava Eris, a funesta deusa da discórdia, incitando os guerreiros ao combate. Pois, como disse Hesíodo: “Cruel ela que arrebata a razão e vontade aos homens que se enfrentam na guerra aos filhos de Zeus”. No escudo viam-se outros monstros e terríveis divindades: a Desordem, o Tumulto, a Matança, o Massacre, além da funesta Ker[3]. Todas descendentes de Nyx, a Noite[4] cosmogónica.
Havia javalis e leões arremetidos talvez símbolo da constante luta entre a divina vontade e a inércia material, própria deste mundo manifestado, ao qual todo o herói é submetido enquanto vive. Também se enfrentavam guerreiros contra centauros. Ares e Atena, ambos deuses da guerra, um pela violência, a outra pela estratégia e a paz, também decoravam o escudo.
Estava presente o Olimpo, com os seus deuses celestes e as Musas que entoavam divinos cantos.
Esperança dos navios contra o mar enfurecido, também existia um porto no escudo. A figura do herói Perseu (avô de Héracles) estava numa viva tensão contra as Górgonas, inimigas mitológicas de heróis e protetoras da sabedoria oculta. Estas precediam a cena duma cidade em guerra onde combatiam os homens, gritavam desesperadas as mulheres e rezavam os anciãos. Mas a última descrição que nos dá Hesíodo sobre o escudo, é a esperançosa figura de uma cidade em paz, com os costumes de mulheres e homens que convivem em harmonia. Entre a guerra e a paz, encontram-se as Moiras, as três irmãs que velam pelo destino do universo. Finalmente, o escudo é circundado por um vasto Oceano, limitando o mundo simbólico do herói, do que não existe; separando o filho de Zeus dos males.
O escudo é o coração do poema, tanto pelo seu valor na batalha, como pela sua importância simbólica.
O escudo é a principal defesa do herói que enfrenta o mal; nele se separa um grupo do outro. A forma redonda do escudo é o símbolo do mundo; assim o herói, cuja vontade é posta à prova para combater o medo, o terror e a morte, leva o cosmos consigo e opõe-no aos seus funestos adversários.
O escudo também funciona como arma psicológica para derrotar os adversários, para isso muitas das cenas que se representam nos escudos são terríficas ou arrepiantes.
Como se menciona no artigo Simbolismo de…o escudo: Perseu, ajudado por Atena, assim vence a Medusa, polindo o seu escudo de bronze até ficar como um espelho no qual se reflectia a imagem do monstro. A cabeça cortada da Medusa colocada por Atena no seu escudo desde então, para gelar de espanto quem se atreva a atacá-la.
O escudo em guerreiros e heróis simboliza também a sua identidade. A identidade é o que verticaliza o guerreiro, o que o define do resto, mas o une ao cosmos. Não duvidar da identidade é o que protege de males alheios e pode afastar aqueles que não possuem. Esta identidade, o verdadeiro nome de si próprio, a insígnia que o caracteriza, costumava ir representada nos escudos. Então, assim como protege e cobre, o escudo exibe o emblema com o qual o guerreiro se identifica. Assim vemos, por exemplo, em todos os espartanos com um Lambda maiúsculo nas suas defesas; ou nos companheiros de Artur com um dragão dourado (segundo algumas versões do mito). Então, que identifica Héracles? A complexa identidade do herói está representada pelos símbolos do escudo mencionado.
Também se demonstra a acção sociopolítica fundamental do herói, pois no seu interior está a tarefa de transformar as cidades em guerra em cidades em paz, mediado pelo Destino. Devendo combater as Trevas, em nome dos deuses Olímpicos, para devolver as tradições felizes aos povos. Com Eris, a discórdia, começam os males, com o herói acabam.
O escudo, neste profundo sentido, é a maior defesa do guerreiro; pois a sua natureza não é de ouro material, o “material” que o sustenta reside no espírito, é o ouro do espírito que nele se forma. A identidade não pode ser esquecida para sempre, não pode ser destruída, nem pode ser roubada. Como cantava Atahualpa Yupanqui:
“Pode-se matar um homem,
Podem o seu rosto marcar,
A sua guitarra queimar,
Mas o ideal da vida,
Esse é sonho guardado
Que nada pode apagar “
Poderão morrer os corpos dos heróis, mas o seu ser continuará batendo no seu coração e inspirando novos cavaleiros, pois a identidade última de qualquer ser reside na Divindade Absoluta. Descobrir a própria identidade para ser um agente activo na natureza e a lei divina converte o nosso escudo no mesmo Cosmos. Como dizia H. P. Blavatsky: “Ajuda a Natureza e com ela trabalha, e a Natureza te considerará como um dos seus Criadores e te prestará obediência”.
Assim, revestido pelo brilho outorgado pelos deuses e preparado para a batalha, “O glorioso filho de Zeus brandia-o com força (o escudo); saltou para o carro de cavalos, semelhante ao raio de seu pai, Zeus portador da portado da égide (…)”. Semelhante ao raio, já que, se algo caracteriza o herói, é a vontade; luz que rompe a obscuridade nas noites de tormenta unificando o céu e a terra e precedendo a chuva, água que cai do reino dos deuses, para devolver a vida nos campos.
A luta com Cicno
Antes do combate, a deusa Atena, guia e protetora de heróis aproximou-se de Héracles e Yolao, dirigindo-lhes aladas palavras:
“(…) Oxalá que Zeus, soberano dos Bem Aventurados, lhes dê forças para matar Cicno e despojá-lo das suas egrégias armas! E em particular a ti uma advertência te farei !o mais excelente dos guerreiros! Tão lesto como retires Cicno da sua doce vida, deixa-o logo ali com as suas armas e tu, vigiando o ataque de Ares funesto para os mortais, quando o vejas com os teus olhos desguarnecido pelo artístico escudo, então fere-o com o teu agudo bronze; mas retira-te de novo, já que não é teu destino tirar-lhe os cavalos. Nem as egrégias armas.”
Então os guerreiros avançaram como o fogo ou como furacões. Héracles ofereceu a Cicno a possibilidade de render-se e redimir-se, mas o filho de Ares recusou. No mesmo instante saltaram rapidamente dos seus carros para o solo e começou o combate.” Como quando do pico de uma grande montanha saltam as rochas e vão caindo umas sobre as outras (…), assim aqueles caíram um sobre o outro com grandes gritos.”
Com maravilhosas palavras poéticas e metáforas de numerosos e belos detalhes, Hesíodo descreve a luta entre ambos terríveis guerreiros. Até que finalmente, Héracles crava a sua lança no pescoço nu de Cicno.
Héracles é protegido, uma vez mais, pela deusa dos olhos verde-mar ao desviar uma lança que o deus da guerra havia lançado, salvando-o de ser ferido por Ares que agora enfrentava em combate directo. Cumprindo com os desígnios, Héracles fere a coxa do funesto filho de Hera que salvo pelos seus filhos Fobos e Demos abandonam o campo de batalha.
Finalmente, Atena volta ao Olimpo, enquanto “O filho de Alcmena e o glorioso Yolao, após despojar Cicno das belas armas dos seus ombros, regressaram. E ao lugar cedo chegaram à cidade de Traquis com os seus corcéis de cascos velozes”.
Reflexões finais
O eixo principal do poema é o herói e o seu escudo-identidade como protecção dos males. A justiça natural que impõe Zeus entre os deuses, serve-se de Héracles para restaurar a ordem e a harmonia no mundo dos homens, erradicando a violência e as injustiças. Aquele cuja vontade se unifique com a vontade divina levará o cosmos consigo e este o defenderá. E ainda que seja submetido a duras provas, será um representante da justiça.
Segundo outras fontes mitológicas, Cicno recebe o seu nome do cisne, já que, Ares, quando da morte de seu filho, transforma-o neste animal alado, que domina terra, água e ar. Segundo contam os ditos populares, na noite anterior a conhecer Platão, Sócrates sonhou que um cisne pousava sobre ele. Quando viu pela primeira vez o divino filósofo de amplos costados, disse “é aqui o cisne”. Além disso, o cisne é representado no Oriente pela ave kalahamsa, como símbolo do Discernimento mais profundo[5]. § Quem é então Héracles? § Que significa que o terrível Cicno se converta num ser formoso ?
Pois Héracles é o arquétipo do herói; aquele ser humano de elevadas virtudes e em quem a vontade de Zeus está encarnada, que procura enfrentar o mal. O herói é a personagem da mitologia que simboliza o modelo o modelo eterno do que o ser humano deve chegar a ser. Quando Héracles, ou todos os heróis, se enfrentam na sangrenta batalha com o medo e o terror, nasce a beleza e a justiça. Quando Perseu corta a cabeça de Medusa, do seu pescoço, surge Pégaso, que agora acompanhará o herói em novas aventuras. Quando Teseu vence o Minotauro converte-se no aristocrata governante de Atenas. Quando Gilgamesh chega aos confins do mundo na procura da imortalidade, encontra as tradições intemporais que deve reviver no seu povo. Quando Héracles, filho da Vontade, acompanhado pela Luz e Harmonia de Apolo e aconselhado pela Sabedoria de Atena se enfrenta em combate com o filho da guerra, nasce o Discernimento.
Franco Soffietti
Publicado em RevistAcrópolis, Córdoba, Argentina, em 11 de setembro de 2021.
Referencias:
(1) – Obras y Fragmentos. Hesíodo. Editorial Gredos (1978).
(2) – Simbolismo de …el escudo: https://biblioteca.acropolis.org/simbolismo-de-el-escudo/.
Notas:
[1] Na mitologia grega Yolao, Iolas ou Iolao (no grego antigo), filho de Ificles (irmão gémeo de Héracles), é um dos mais fiéis companheiros do seu tio Héracles, a quem cabia conduzir o carro e acompanhar nas tarefas do herói.
[2] Epíteto de Poseidon: “aquele que sacode a terra”.
[3] Personificação da morte violenta.
[4] Na obra anterior era feita referência à noite como ignorância, como temerosa, como o oposto de discernimento.
[5] Diz-se que no seu poder está a possibilidade de separar leite da água quando estão misturados. Característica para poder discernir o que importa e o que não, o eterno do efémero.
Imagem de destaque: O Escudo de Héracles, Ludwig Michael Schwanthaler. Domínio Público