Prólogo do Livro Os Primeiros Filósofos
de Mª Dolores Fernández Fígares
“Ninguém sabe o que ocupará no futuro o recipiente vazio (da modernidade), e se no término desta extraordinária evolução surgirão novos profetas e se se assistirá a um pujante renascimento de ideias e ideais antigos; ou se, pelo contrário, o envolverá toda uma onda de petrificação mecanizada e uma luta convulsa de todos contra todos.” Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo1
Mais além da melancolia, Os Primeiros Filósofos de Mª Dolores Fernández-Fígares, brindam-nos com uma clara orientação para perceber e atuar nestes tempos novos que nos anuncia o Sec. XXI.
Estes Primeiros Filósofos conseguiram re-encantar a idade obscura que lhe coube viver, favorecendo o que depois se chamou de Milagre Grego, uma forma de renascimento da civilização na Hélade depois da queda de Creta ou de Micenas. Conseguiram criar uma cadeia de ouro que transmitiu a velha sabedoria sob novas visões e formas que se concretizaram em escolas de filosofia teóricas e práticas. O seu trabalho foi lembrado durante séculos sob o mito dos sete sábios da Grécia.
A atualidade deste livro convida-nos a voltar a começar a pensar a época desencantada em que vivemos, retomando esses eternos caminhos da sabedoria para dinamizar o nosso tempo presente. O destino da nossa época, caracterizada pela racionalização, pelo intelectualismo e, sobretudo, pelo desencantamento do mundo, conduziu os seres humanos ao afastamento dos valores essenciais mais sublimes da vida pública. Estes valores encontraram refúgio, quer no reino transcendente da vida mística, ou na fraternidade das relações diretas e recíprocas entre indivíduos isolados. Assim nos mostra o sociólogo alemão Max Weber, já em 1919, na sua obra “O Sábio e o Político”.
Paradoxalmente, foi o desencantamento do mundo que nos permitiu, no Ocidente o domínio da técnica, o conhecimento científico, mas também nos conduziu à exploração económica e à atual perda de perspetivas. O mundo tornou-se incerto e confuso. Uma nova forma de obscuridade com as suas falsas notícias e superstições abre caminho nas nossas sociedades.
Como chegámos a esta situação? Foi um processo lento, em quatro fases, que se acelerou.
A primeira fase identificada por Max Weber é a morte da natureza, e constatou que o judeu-cristianismo preparou a secularização da sociedade. A diferença dos gregos e dos romanos, para os quais toda a natureza é sagrada, instalou-se num processo progressivo de dessacralização da natureza, cujos componentes se converteram em objetos inertes. Fizemos da natureza algo que está à nossa disposição e que podemos explorar sem nenhuma consideração. Não é que já não exista natureza, mas esta está desalmada e separada de nós.
A segunda fase do desencantamento, é situada por Friedrich Hegel, no princípio do séc. XIX quando é proclamada a dissolução da arte na sociedade. No final do seu livro sobre A Estética, explica que continuarão a existir pessoas que desenhem ou componham música, mas a arte já não está no centro da sociedade e da cultura e já não aporta valores à existência.
“A arte já não aporta às necessidades espirituais… perdeu, para nós, a sua verdade e a sua vida autêntica”. Os valores sagrados, espirituais e religiosos, já não são a fonte de inspiração da arte e Hegel explica-nos que foram substituídos por valores práticos com finalidade materialista: economia, trabalho, ócio. A arte torna-se cada vez mais marginal e refugia-se no formalismo e no subjetivismo.
A “morte da arte” é um detalhe significativo na progressão do desencantamento do mundo, porque um dos elementos constitutivos do nascimento da consciência humana é a aparição da arte. Através dele e dos ritos funerários, os primeiros humanos integraram a morte na vida.
A dissolução da arte conduz inexoravelmente à ocultação da morte, a evacuar a sua presença e a sua realidade no mundo dos vivos e a criar uma fronteira entre o visível e o invisível, marginalizando a morte, negando-a de uma maneira infantil.
A terceira fase, anuncia-a o filosofo Friedrich Nietzsche, em finais do sec. XIX, na sua obra Assim falou Zaratustra, que é sobre a “morte de Deus”. Para o filósofo, que Deus tenha morrido não significa que mais ninguém creia em Deus nem tão pouco que deixe de haver religiões. A morte de Deus significa que os valores sobre os quais se baseia atualmente a nossa cultura ocidental já não se correspondem com os valores religiosos ou espirituais.
Nietzsche chamará niilismo ao estado da civilização, na qual a vitalidade caiu para um nível tão baixo que os componentes da sociedade não têm a mínima força necessária para forjar valores novos de existência que substituam os antigos já perimidos. Para Nietzsche, o niilismo é um sintoma, uma ameaça que designa o estado de uma humanidade que não teria a força para crer em algo, à exceção da sua própria felicidade pessoal, o que aos olhos do filósofo corresponde a um estado de total impotência que se nutre da felicidade egoísta como único impulso para viver. O niilismo é um processo que obedece a causas interiores e que tem a particularidade de negar as causas fundamentais da vida e da realidade.
A quarta fase aparece no nosso seculo XXI e conclui o processo: é a morte do mito do progresso. A religião do crescimento indefinido está posta em causa. Segundo o economista Daniel Cohen, vivemos uma nova revolução industrial de ordem tecnológica, mas que, contrariamente à precedente, não produz crescimento.
No entanto, o crescimento é a religião do mundo moderno, associado ao mito do progresso contínuo. Se o crescimento desaparecesse de uma forma duradoura, seria para a nossa sociedade – diz Cohen – como uma segunda morte de Deus. Estamos frente a uma profunda transformação estrutural na nossa forma de produzir e conceber os bens. Os modelos económicos materialistas, nascidos nos séculos passados, estão esgotados, e vemos surgir novos modelos alternativos que se inspiram nos ciclos da natureza e nos valores humanos de sentir a solidariedade e partilhar.
A decisão de por no centro da sociedade as questões práticas, formais, materiais, imediatas e administrativas foi a única razão que levou ao desencantamento do nosso mundo.
A falta de visão aportada pelos modelos nascidos do desencantamento do mundo engendra por necessidade, hoje, elementos de reflexão para elaborar novas perspetivas de uma transição para outros modelos de civilização que redescobrem o reencantamento do mundo.
Como propuseram os primeiros filósofos, o reencantamento do mundo necessita de uma maior consciência individual que se transformará numa maior consciência coletiva. Trata-se de uma iniciativa individual através da qual redescobriremos a importância para a alma daquilo que foi ocultado ou separado das nossas consciências há mais de um milénio.
Como sugere Mª Dolores Fernández-Fígares, devíamos conquistar o renascer de uma nova consciência da natureza, uma integração da beleza e da harmonia nas nossas vidas quotidianas e uma nova perceção do sagrado e da vida profana. Trata-se de atingir uma verdadeira iniciação interior.
Anotações
1. (1) Weber, M.(2006): A ética protestante e o espírito do Capitalismo. Edições Terramar. A Prata (Argentina). Págs. 230 e 231.
Muito bom