E sempre esteve relacionado com a convivência. A zona de onde venho, antigamente fazia parte do reino da Coroa de Aragão. Há muitos anos tive que fazer um trabalho de investigação. Nos arquivos da Coroa de Aragão, muitos documentos estavam em latim, ou em catalão ou em valenciano antigo. Em documentos de cerca de 1200 é muito curioso que quando se fala de cidades, lugares, aldeias, não dizem “há dez casas” ou, por exemplo, “há 40 famílias em 40 casas”… Não dizem isso. A expressão literal em latim, catalão e valenciano é “em tal cidade há 40 fogos”. É daí que vem a palavra casa: da palavra fogo. Ou seja, quando falamos de fogo, inevitavelmente estamos a falar de convivência: os seres com fogo, os seres humanos, reúnem-se em redor do fogo, em círculos ou em linhas, porque ao fim e ao cabo o que une os seres humanos, de uma maneira ou de outra, é sempre o fogo. Se pensarmos nas características do fogo, perceberemos que, além de muitas outras, o fogo dá-nos luz e calor.

O calor e a luz no mundo físico são equivalentes no mundo metafísico ao amor e ao conhecimento. O calor do fogo neste plano da vida, neste mundo vibratório físico, esse calor no mundo metafísico é amor. É por isso que nós, quando realmente amamos, notamos um calor interno, um fogo que se activa. E a luz, a luz que dá o fogo no mundo físico, no mundo metafísico é o conhecimento.

Assim, os humanos, seres com mentes, quando se reúnem e partilham o seu fogo, é para serem cada vez mais humanos, ou seja, ter mais calor e mais conhecimento. Mas esse amor ao conhecimento, esse amor à sabedoria, é isso que significa filosofia: amor ao conhecimento. Então, a filosofia tem muito a dizer quando falamos da convivência, quando falamos de partilhar entre seres humanos aquilo que precisamente nos dignifica e nos mantém de pé, como é o fogo.

Sempre que podemos, não perdemos a oportunidade de esclarecer que o filósofo é um buscador. O filósofo não é um sábio, não é um Sophos, é um Filo-Sophos. Não temos a sabedoria, a verdade última. O que fazemos é buscar – porque isso é filosofia, como dizia Platão, buscar o que nos falta –, e os seres humanos, aqueles que têm mentes, movem-se em busca do que não temos, precisamente. Buscamos, buscamos saber, porque não sabemos.

Isto é fundamental para a convivência; porque numa verdadeira convivência todos aqueles que entram em contacto connosco deveriam levar um pouco mais de calor, um pouco mais de conhecimento, menos escuridão e menos frio; isso é exactamente filosofia. A filosofia, então, está intimamente relacionada ao fogo e aos seres humanos. Quase poderíamos dizer que é o estado natural do ser humano: procurar o que não tem, porque o que já temos não vamos procurar.

E neste ponto, que elementos fundamentais considera a filosofia que deveríamos ter em conta na convivência, no que chamamos de convivência? Acima de tudo, temos que começar pela Justiça. Se quisermos melhorar e avançar em termos de convivência humana devemos levar em conta a Justiça. A definição clássica de Justiça era dar a cada um o que lhe corresponde, de acordo com os seus actos e natureza. Dar a cada um o que é seu. Mas tem que se ter em conta o que faz essa pessoa e o que está a fazer. Porque não é o mesmo delito o que é praticado por um menor de idade, ou seja inconsciente, ou que não foi suficientemente educado; não é o mesmo crime roubar 100 euros, e um ministro que roube 100 milhões de euros; obviamente não é o mesmo. A verdadeira justiça tem em conta não só o que fazemos, mas quem o está a fazer e, acima de tudo, deve também ter em conta o factor humano.

Senhora Justiça em Berna (Suíça). Domínio Público

O factor humano é fundamental quando falamos em justiça, e o factor humano é composto por dois elementos, a condição humana e a dignidade humana. Isto não deve ser esquecido. Quando falamos da condição humana, referimo-nos àquelas coisas que trouxemos à vida e àquelas com que nos foram educando e incorporando pouco a pouco. As coisas que temos em nós são bastante opacas, onde tudo se mistura, o bom e o mau, o alto e o baixo, o largo e o estreito. É da natureza humana, onde às vezes fazemos coisas que não deveríamos fazer, mas a natureza humana não pode deixar de fazê-las, comer chocolate, por exemplo, ou fumar um cigarro, etc.; cada um dos nossos pequenos vícios… Não vamos falar dos grandes, que também são da natureza humana, afinal; mas os nossos pequenos vícios são marcados pela natureza humana: somos assim, os nossos olhos  deixam-nos, os nossos pés deixam-nos, as nossas mãos deixam-nos, porque é da natureza humana.

Mas temos que ter em mente que também há algo em nós que é como o fogo. É vertical. Você já viu o fogo? Mesmo que o inclinemos, quando acendemos um fósforo, mesmo que o viremos de cabeça para baixo, o fogo sobe. O fogo é vertical, não é horizontal e nunca desce. E se as coisas voltarem à sua origem, como “pó eras e em pó te tornarás”, isto deveria ensinar-nos muito sobre por que é que o fogo sobe, provavelmente porque essa é a sua origem. Talvez não fosse mentira quando aqueles antigos gregos nos disseram que era o fogo dos deuses, que eles tinham trazido à terra por nós.

Devemos ter em conta a dignidade humana, ou seja, uma parte dentro de nós que tem que viver de pé, não morrer de pé. Isso que romanticamente se diz que “tem que se morrer de pé e não viver de joelhos” está muito bem… Mas o mais difícil é viver de pé – não morrer de pé – toda a nossa vida. Como o fogo, para cima, verticalmente, para cima. Isso é complicado, mas quando falamos de justiça temos que contemplar que dentro de um ser humano existem estas duas partes e que tudo isso é o factor humano.

Outra coisa a ter em mente: devemos também contemplar, quando falamos em convivência, o factor da felicidade. A felicidade é muito importante. Os antigos filósofos concordavam, praticamente todos, em colocar a felicidade fundamentalmente na ataraxia e na autarquia; mas isto não é tão fácil. São termos gregos que passam a significar algo assim: não sou perturbado por nada, ou seja, nada estranho a mim pode desestabilizar-me, pode mover-me, pode tirar-me do meu centro. E eu sou independente: autárquico.

Sem ir tão longe quanto estes velhos filósofos, ousaria dizer que talvez a felicidade, para nós, ao nosso nível – para torná-lo algo mais compreensível, alcançável, muito mais próximo – está na nossa capacidade de nos apaixonarmos pelas coisas superiores, mesmo que não sejamos autárquicos nem apáticos, ou seja, não sermos afectados. O que podemos fazer é apaixonarmo-nos por coisas elevadas. Isso, afinal, é o que significa Acro-pole, ou seja, a parte elevada das coisas, a melhor, a mais brilhante. Por exemplo, o melhor dos nossos amigos, o melhor daqueles que partilham a vida connosco, as nossas melhores experiências, o melhor das culturas que estudamos, o melhor de outras formas de pensar, o melhor de outras formas de viver. Porque o pior, o pior de outros modos de viver, de pensar, nós já temos. Isso não mudou. O pior do Império Romano, que sempre aparece nos filmes, na forma de orgias, bacanais, etc., o que era o pior é feito hoje em todos os lugares. Por que vamos olhar para essas coisas?

Vista da Acrópole de Atenas, Christophe Meneboeuf. Creative Commons

Temos que tentar elevar a nossa consciência para o melhor, para a parte mais elevada. O mais alto é o que significa Acrópole, que como sabem estava na parte alta das cidades. Era lá que estavam os templos. Custava um esforço ao cidadão para subir, subir a colina, para chegar aos templos e poder tentar entrar em contacto consigo mesmo, com a sua parte imortal, com a sua parte de fogo. É por isso que sempre foram construídos os templos, em todas as culturas: para facilitar que o ser humano possa entrar em contacto e ligar-se com a sua própria parte espiritual, a sua parte de fogo que todos temos, a não ser que alguém rejeite a mente. Se alguém diz “não, eu não quero ter mente”, então não terá fogo, e sem uma mente digam-me como fazemos para comunicarmos, como agora, por exemplo; pois temos que admitir que somos seres feitos de fogo.

Também devemos ter muito em conta, quando falamos da convivência, a liberdade. Do nosso ponto de vista filosófico e da maioria dos pensadores, a liberdade é baseada na educação, na educação que recebemos. O que acontece é que isso agora está a falhar. Precisamente os nossos sistemas de governo e a nossa democracia é o sistema que mais precisa da educação, porque agora os cidadãos podem decidir. Têm que decidir, têm que pensar e decidir. Então, é quando a educação é mais necessária. E estamos a falhar nisso. Porque não geramos seres humanos, cidadãos, capazes de se sacrificarem pelo bem comum – e é para isso que estamos juntos – que colocam o bem comum à frente dos seus interesses pessoais e individuais; é por isso que está a falhar a educação. O conceito antigo, clássico, filosófico natural, sempre foi o de que o cidadão tem que ser útil, feliz e consciente. Materialmente, no mundo físico deve ser útil; temos de ser úteis aos outros. Queremos conviver com os outros? Temos que ser úteis. O que sei fazer? O que posso fazer pela comunidade? Tenho que me sentir útil. Para isso tenho que fazê-lo voluntariamente; Não serve se o faço forçado. Tem que ser um autêntico voluntariado.

E para que algo seja realmente voluntário, é preciso accionar duas forças que são impressionantes, que separadamente já são e quando estão juntas é o que mais faz o ser humano crescer: a vontade e a liberdade. Quando fazemos algo voluntariamente, porque queremos, porque ninguém nos obriga, e algo que nos custa, temos que pôr em funcionamento a vontade e a liberdade. O ser humano desenvolve-se como tal a uma velocidade incrível. Se formos apenas teóricos, muito intelectuais, nunca vamos pôr as mãos à obra em nada. Estaremos limitados; o nosso desenvolvimento será limitado.

Então, o bom cidadão, aquele que tem que conviver com os outros, tem que ser materialmente útil, psicologicamente feliz. Talvez a felicidade possa ser alcançada valorizando o melhor que encontramos na nossa vida, seleccionando experiências, seleccionando o melhor e deixando para trás o pior. Cultivarmo-nos. O nosso conceito de cultura não é cultura em prol da cultura em si. Não queremos cultura, cultivamos, saber mais sobre muitas coisas. Não. A cultura que propomos, que é sempre atravessada por um fio filosófico, é uma cultura que nos enobrece. É como, por exemplo, no caso dos metais: falamos de ferro, de cobre; mas há outros metais nobres, por exemplo o ouro, que brilham, que não se corrompem.

De alguma forma, pensamos que a cultura nos enobrece, que tem que servir para trazer à superfície o nosso brilho, o nosso ouro, o melhor de nós mesmos e não o pior; para trazer à superfície o pior não precisamos de cultura. A cultura tem que nos “cultivar” e através deste cultivo da nossa personalidade, do nosso carácter, vamos-nos enobrecendo, vamos brilhando, como o ouro. E talvez isso nos aproxime da felicidade de que estávamos a falar.

E, espiritualmente, temos que estar conscientes, isto é, férteis, fecundos, para nos entendermos. E assim temos um cidadão que pode conviver com outros cidadãos. Cuidado! De momento isto é uma utopia. Isso baseia-se no que dissemos sobre fins e princípios: o que está no início e o que está no fim ainda não atingimos. Mas o ser humano também não está completo. Somos seres em evolução. Ou alguém acredita que já não vai melhorar, que não pode melhorar nada? “Aqui cheguei e aqui fico. Sou como sou e não saio daqui”. Alguém acredita nisso? Todos nós podemos melhorar. Todos nós nos surpreendemos quando a vida nos traz experiências e, de repente, dizemos: “Anda, isto que me prejudicava tanto há cinco anos, agora não me afecta. Olha, eu estou mais forte. Isto que eu não entendia, que eu nunca tinha entendido, agora, de repente, nessa fase da vida, eu entendo perfeitamente!” Pois claro que sim! A nossa vida é um contínuo aprender, uma constante aprendizagem.

Então, o fim de algo é uma conquista; isto não é dom de ninguém. Isto tem que ser feito, tem de ser alcançado, isso depende de nós. E aqui chega a grande pergunta: O que vamos fazer? Porque a filosofia é prática, dissemos no princípio. E há muitas coisas que dependem de nós. O que vamos fazer? Vamos caminhar com firmeza, conscientemente, rumo à convivência? Vamos ter uma mentalidade de continuidade? O que não é fácil. Vamos ter consciência da imortalidade, de alguma forma? Porque isso é importante para a convivência.

Vamos fazer um exercício de imaginação; com a imaginação podemos ir para onde quisermos. Imaginemos que estamos noutra época, que estamos na Grécia, em Atenas, no século V antes de Cristo. Vamos a Atenas… Um cidadão ateniense dessa época, num ano, num único ano, vivera quase tudo: tinha ido para a guerra, tinha visto os seus companheiros morrerem, vivera, talvez, secas, epidemias, tinha ido a muitas festas… E de repente chegava o momento esperado: o teatro! O ateniense ficava o ano todo esperando a hora dos concursos de teatro chegarem. Havia peças que duravam oito horas, e lá estavam elas. Estamos a vê-los, vestidos com túnicas sob o céu estrelado, à luz das tochas e estão a representar o Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, por exemplo. Esse homem estava lá com a sua mulher. Assistiam àquela peça, escutavam as palavras do grande Ésquilo; quando Prometeu dizia que roubou o fogo dos deuses, para dá-lo aos humanos, e que o fez por amor à humanidade, porque a humanidade não sabia movimentar-se, não via o seu futuro, não via o seu destino, não entendia a vida, não encontrava o sentido da vida. Prometeu roubou aquele fogo e aquele homem grego, que o esperava há um ano, estava a vê-lo representar. De repente, ouvia como o coro, formado por várias vozes, todos a uma só voz diziam: “E agora os efémeros possuem o fogo dos deuses?” Quando o ateniense escutava isso, percebia que não era um ser efémero, porque agora tinha o fogo dos deuses.

Prometeu Trazendo o Fogo à Humanidade. Domínio Público

Aquele ser humano, que não tinha um carro como o nosso para ir a 200 por hora, que não ia de avião, que não tinha computadores, aquele ser humano tomava consciência de que era imortal, que não era efémero, que dentro dele havia um fogo que tinha que passar século após século, vida após vida, e eu tinha um conceito, uma ideia de continuidade; que o que ele ia conseguir individualmente, o que cada ser humano poderia superar sozinho, iria beneficiar o todo, iria beneficiar o colectivo. Tinham consciência de que o que faziam não era apenas para eles, mas também para as gerações vindouras, para as gerações futuras. Não eram efémeros, não iam acabar com cinquenta, sessenta, setenta ou cem anos, mas iam continuar além do tempo. Talvez nos falte essa mentalidade para entender o que é convivência e que todas as conquistas que conquistamos não serão perdidas. Isso ficará para as gerações futuras, mesmo que o utilizem indevidamente mais tarde. Mas outras gerações virão, como as ondas da praia, e um dia a humanidade poderá viver em paz, em liberdade, em convivência.

Para finalizar, vou ler uma história relacionada com a convivência.

Assembleia na carpintaria

Havia na carpintaria uma estranha assembleia, as ferramentas reuniram-se para resolver as suas diferenças. O martelo foi o primeiro a ocupar a presidência; mas a Assembleia anunciou que ele tinha que renunciar. A causa? Fazia muito barulho e passava o tempo a bater. O martelo reconheceu a sua culpa, mas pediu que fosse expulso o parafuso: tinha que se dar-lhe muitas voltas para que fosse de qualquer utilidade. O parafuso aceitou a sua retirada, mas, por sua vez, pediu a expulsão da lixa: era muito áspera no seu tratamento e sempre tinha atrito com os outros. A lixa concordou, com a condição de que o metro fosse expulso; pois ele passava o seu tempo medindo os outros como se fosse perfeito.

Nisto entrou o carpinteiro. Ficou na frente e começou o seu trabalho alternadamente usando o martelo, a lixa, o metro e o parafuso. No final, o pedaço de madeira tornou-se num bonito móvel. Quando a carpintaria voltou a ficar sozinha, a assembleia retomou a deliberação. Disse a serra: “Senhores, ficou demonstrado que temos defeitos; mas o carpinteiro trabalha com as nossas qualidades. É isso que nos faz maravilhosos, por isso deixemos de pensar nas nossas fraquezas e concentremo-nos nas nossas virtudes. A assembleia constatou, então, que o martelo era forte, o parafuso unia e dava solidez, a lixa alisava as bordas ásperas e o metro era preciso e exato. Sentiam-se como uma equipa capaz de produzir belos móveis. E as suas diferenças ficaram em segundo plano.

Carlos Adelantado
Presidente Internacional da Nova Acrópole
Publicado na Biblioteca Nova Acrópole em 15-09-2023

Imagem de destaque: Multidão de Sitabardi Nagpur para fazer compras em Diwali. Creative Commons