Antes de mais nada, quero esclarecer que falaremos do ponto de vista filosófico e tentaremos honrar o que sempre foram as escolas de filosofia e os filósofos na antiguidade.
Sempre estiveram muito entrelaçados no seu ambiente, no seu momento social. De forma alguma a filosofia foi algo distante da cidade, do cidadão, dos problemas sociais. Desde que temos noção – pelo menos na nossa parte ocidental, no que diz respeito à filosofia ocidental – os filósofos e as escolas de filosofia sempre estiveram entrelaçados no seu ambiente, interessavam-se pelo ser humano, fundamentalmente. Têm-se interessado por tudo o que faz parte da vida do ser humano e, portanto, o tema da convivência é um tema altamente filosófico.
Neste momento temos a tendência a especializarmo-nos, a separar todos os ramos do conhecimento e hoje diríamos que talvez fossem os sociólogos que teriam que lidar com este tema, mas pensamos que como filósofos temos algo a dizer. Porque como disse no início, para nós a filosofia é, como nas escolas clássicas, uma ciência e um modo de vida. Permitam-me que esclareça rapidamente: nunca houve uma separação entre a teoria e a prática. Nunca, nas escolas de filosofia clássicas, se separou uma vida intelectual de uma vida moral, de uma vida prática. Não somos uma escola clássica de filosofia, somos uma escola à maneira clássica. E como somos “à maneira clássica” queremos voltar a estes velhos conceitos de tentar refletir, de fazer uma introspeção válida para chegar a conclusões positivas e, ao mesmo tempo, tentar trazer todas essas conclusões – que consideramos válidas – para a prática, para a vida quotidiana. Portanto, definimo-nos como escola de filosofia à maneira clássica.
Vamos entrar no tema que vou tentar abordar brevemente, para depois poder dialogar, algo muito clássico e muito filosófico também, para ter um momento de diálogo onde possam fazer perguntas, outros pontos de vista, pensamentos e poder partilhar entre nós uma série de ideias, de “logos” complementares e aí entrar na característica do diálogo, que também enriquece todos os seres humanos.

Escavação na jazida da Grande Dolina de Atapuerca, Mario Modesto Mata. Creative Commons
Desde logo, o que podemos dizer é algo óbvio, que ninguém duvida e ninguém pode negar: o ser humano é um ser social. Somos seres sociais. Não sabemos muito bem a origem das sociedades; e não sabemos porque, por mais que recuemos no tempo, por mais que façamos descobertas cada vez mais antigas sobre a origem dos seres humanos, vamos perceber que os seres humanos já vivem em sociedade, já formam grupos humanos, desde os seus primórdios. Sem ir mais longe, aqui em Espanha temos o sítio pré-histórico de Atapuerca, e estamos a falar de centenas de milhares ou talvez milhões de anos de antiguidade. Mas estes humanos ou restos humanos que encontrámos em Atapuerca já vivem em comunidade, já são seres sociais. Talvez seja porque os “filhotes” humanos precisem da proteção da família. Não somos como o resto dos animais que em pouquíssimo tempo podem defender-se, mais ou menos, sozinhos.
Não sabemos a causa, mas o homem é um ser social. Mesmo aqueles anacoretas na área de Tebaida, no Egito, que queriam ficar sozinhos, não estavam assim tão sozinhos. Isso é o que ficou um pouco na mitologia ou no folclore: pessoas em cima de colunas enormes, para estar mais perto do céu. Mas o que às vezes não sabemos é que tinham toda uma corte de admiradores por perto. Quando era necessário, traziam-lhes comida e bebida e esperavam que, de vez em quando, tivessem uma inspiração e todos pudessem beneficiar das palavras dessa pessoa santa que havia renunciado ao mundo e estava tão perto do céu.
Assim, descobrimos que o homem é um ser social.
Mas a história da nossa convivência é uma história de conflitos. Poderíamos escrever a história da humanidade através das guerras que existiram no mundo. Temos que reconhecer que não podemos estar uns sem os outros, mas isso por sua vez causa-nos uma série de conflitos, grandes conflitos. Possivelmente, se agora cada um de nós pensasse nos seus próprios problemas, chegaríamos à conclusão de que os nossos grandes problemas são causados pela relação com outros seres humanos. Seja no local de trabalho, seja no campo sentimental, seja na área que queiramos, possivelmente está aí a fonte dos nossos problemas.
Não é necessário fazer toda uma revisão histórica, que nos levaria muito tempo; aí estão os documentários e os livros de história. Mas para tentar definir como chegamos até aqui ou em que ponto nos encontramos, permitam-me que fale brevemente sobre duas coisas.
Para entender o nosso século XXI, primeiro quero falar sobre a modernidade e, sobretudo, sobre o período entre 1880-1914. Esse foi o esplendor do mundo ocidental. Eramos os senhores e senhores do mundo. Os cientistas tinham redesenhado novos conceitos para interpretar o mundo. No mundo da cultura, da música, da literatura, foram criadas novas linguagens. Os filósofos acreditavam ter descoberto verdades irrefutáveis e inabaláveis. Ou seja, todos viviam numa era de paz e esplendor. A máquina estava a dar os seus frutos; todos esperavam que, em pouco tempo, o que estava para vir fosse o paraíso celestial, mas aqui na terra. No entanto, em 1914 chegou a Primeira Guerra Mundial. Foi um choque tão terrível que os europeus ainda não recuperaram, porque foi uma queda desde muito alto. Quando a Europa estava no seu auge e no seu esplendor, quando dominava o mundo, intelectual e materialmente, veio a Primeira Guerra Mundial. Ninguém acreditava que os seres humanos fossem capazes de tais atrocidades. Porque a realidade da Primeira Guerra Mundial foi a de milhões de seres humanos mortos, toda uma geração de jovens desaparecida na lama do solo francês, cidades arrasadas, bombardeamentos maciços, a utilização de gás, etc. Isto foi terrível para a mentalidade ocidental e europeia. Ninguém pensava que o ser humano fosse capaz de tais atrocidades, e em pouco tempo a Segunda Guerra Mundial…
Isso, por um lado; por outro lado, devemos reconhecer como filósofos, como amantes do conhecimento, que a democracia não resolveu os problemas da convivência. Temos de fazer um exame de consciência neste momento. Os sistemas em si não são bons nem maus, depende das pessoas que os compõem. Se formos verdadeiros e coerentes connosco próprios, estamos num momento em que o produto interno bruto mundial cresce ano após ano; no entanto, a pobreza também cresce ano após ano.

Desigualdade económica. Domínio Público
Há cada vez mais riqueza no mundo, mas também há cada vez mais pobres. A cada ano que passa, quase 200 países violam os direitos humanos. Estes são relatórios divulgados pela ONU. Constatamos que uma democracia que desejava o liberalismo intelectual e político tornou-se numa economia de mercado. E hoje dizer democracia é o mesmo que dizer liberdade de mercado, e é o mesmo que dizer que o que governa é a lei da procura e da oferta. Ou seja, todos temos o direito de produzir e consumir e temos, precisamente, metido na cabeça que essa é a grande liberdade, a que nos levou ao nosso actual momento no campo da política. Temos que lembrar que a nossa democracia é a evolução da República que surgiu com a Revolução Francesa.
Estamos onde estamos porque nós não somos herdeiros dessa democracia grega que nos querem vender como tendo sido a nossa antecessora. A democracia grega durou apenas 100 anos e foi apenas num pequeno território da Grécia. A nossa democracia é uma evolução do conceito de República que aparece na Revolução Francesa, onde lembro que os direitos do homem e do cidadão foram publicados, em 1789[1]. Os nossos actuais direitos humanos viram a luz, foram abertos ao público em geral e foram adoptados após a Segunda Guerra Mundial.

Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1789. Domínio Público
Quando falamos da República estamos a dizer que o que importa é a coisa pública, a Res Publica, o bem comum. E isto era necessário para limitar o poder dos Estados que até então tinham os cidadãos na mão; havia privilégios, havia favoritismos…
Então, temos toda essa Revolução Francesa e aparece o Estado de Direito, onde se trata de o cidadão ser julgado pela Lei e não pela força; não pela lei do mais forte, mas pela Lei. Tudo isto se tem disseminado pelas nossas democracias actuais.
Mas temos de reconhecer que a democracia não é um produto acabado; tem que melhorar, temos que melhorar. Há uma grande margem para melhorar e, como não é um produto acabado, não resolveu os grandes problemas que têm a humanidade e a sociedade; entre eles o problema da convivência, que ainda é um grande problema, como dissemos.
O que podemos fazer? Chegados a este ponto, que pode a filosofia oferecer-nos quando falamos da convivência? As escolas de filosofia procuraram sempre melhorar o ser humano e o mundo em que este vive. E disseram-nos que deveríamos ter em mente três grandes princípios na nossa vida.
Um dos princípios de que nos têm falado consiste em trabalhar a parte interna do ser humano, para que este possa ser muito melhor do que é; para que o ser humano possa avançar e crescer internamente. Desenvolver uma série de valores internos, uma série de faculdades, de virtudes, de poderes, o que faz com que seja capaz de compreender e entender muito melhor a Natureza. Trabalhar de acordo com a Natureza e viver de uma forma muito mais natural.
Essa seria uma das pernas do tripé sobre o qual se apoiaria a filosofia de todos os tempos; para nos explicar que podemos fazer algo sobre este estado de coisas. Dir-nos-ia que tal é necessário para que o ser humano possa realmente desfrutar da sua liberdade, possa desfrutar da sua capacidade de raciocínio e da sua capacidade de escolha.
Para isso teríamos que crescer internamente como seres humanos, pois só poderíamos ser verdadeiramente livres se começássemos a descobrir o ser humano interno que todos transportamos dentro de nós e começássemos a perceber que todos nós podemos ser muito melhores do que somos. Podemos ser muito mais fortes do que somos, podemos ser muito melhores do que somos.
Outro ponto importante para a filosofia é que esta nos diria que não devemos fechar-nos numa única forma de pensamento ou de conhecimento, mas que para todo o ser humano é importante o conhecimento comparado. É importante tentar alcançar um ecletismo, baseado no estudo comparado do outro. Hoje fala-se muito de “alteridade”, isto é, do outro, de outros tipos de cultura, de outros tipos de pensamento, de outras formas científicas, filosóficas, religiosas e políticas. Porque se ficarmos ancorados apenas num conhecimento limitado, pequeno, não conseguiremos ver na sua totalidade, como um todo, sob todos os pontos de vista, os problemas que nos afligem, neste caso o grande problema da convivência. Isso garantiria que o ser humano, que se aproxima laboriosamente desse ecletismo de que estamos a falar, esse ser humano seria realmente melhor, porque poderia conhecer e comparar caminhos diferentes dos seus; algo muito necessário para a convivência: conhecer outras formas diferentes.
E, finalmente, falar-nos-iam de um princípio e de um final; talvez o mais importante de todos, que estaria relacionado com a fraternidade – que é o mais difícil de alcançar – porque é uma verdadeira fraternidade, de coração, sem ter em conta uma série de características que na maioria das vezes, ou todas as vezes praticamente, são causadas pelo nascimento. Por exemplo, a religião a que pertencemos – se todos tivéssemos nascido no Egipto teríamos outra religião agora – o sexo que temos, a classe social a que pertencemos, as ideias políticas que temos, a raça, cor da pele, tudo isso não importa muito quando estamos a falar de fraternidade, da verdadeira fraternidade.
Com esses princípios, que são fins ao mesmo tempo, a filosofia tradicional natural antiga, sempre procurou tornar o ser humano capaz de resolver um dos maiores e fundamentais problemas que temos, a convivência; poder viver juntos e em liberdade, que é a definição de democracia cunhada pela República. Tratava-se de alcançar um sistema onde todos pudéssemos viver juntos e em liberdade.

Clístenes, considerado o pai da democracia ateniense. http://www.ohiochannel.org/
Mas é um sistema, como dissemos, não totalmente evoluído; ainda temos de dar alguns passos nesse sentido. O professor Livraga – para mim o melhor filósofo do século XX e que tinha uma maneira muito clara e simples de explicar as coisas, de chegar às pessoas – explicou, em várias ocasiões, que o grande problema do nosso tempo é a confusão em termos de fins e princípios. Ou seja, nas nossas sociedades actuais não temos muita clareza sobre de onde viemos ou para onde vamos, ou por que fazemos as coisas. Explicava de uma forma muito pedagógica que imaginamos o nosso mundo e a nossa sociedade como se fosse um comboio expresso que se desloca a alta velocidade sobre carris. Mas ninguém sabe onde começou essa viagem, onde começam esses carris, e ninguém sabe onde eles vão acabar. Ninguém sabe para onde vamos. Não é preciso ser um grande especialista para percebermos que se o nosso mundo se baseia no crescimento interno bruto e na exploração dos recursos da Terra e das matérias-primas, isto um dia vai acabar. Não é preciso ser um fenómeno económico para perceber isto. Para onde vai o nosso comboio? Para onde vai o nosso mundo? Ele explicava que nesse comboio há duas carruagens, uma de primeira classe e outra de segunda. Na primeira vai quem pode pagar a primeira passagem. E na de segunda, vão aqueles que não podem pagar o bilhete de primeira. De vez em quando, muda-se aquele que conduz o comboio. Fazem-se votações, eleições e muda-se o maquinista, mas o maquinista também não sabe para onde vai o comboio. A única coisa que se pode fazer é ir um pouco mais rápido ou um pouco mais devagar, tocar as sirenes, se lhe agradar, soltar silvos… e nada mais. Alguns prometem: “Tranquilos! Não façam muito barulho nem protestem muito, que é uma questão de tempo até que os de segunda passem para a carruagem de primeira, sem dúvida”. E aos de primeira classe prometem: “Assim que pudermos vamos livrar-nos dos de segunda classe, porque incomodam muito e aos de primeira classe incomodam certas vozes”.
Assim, explicou como era a realidade do nosso mundo, onde há uma grande confusão quanto a fins e princípios. Porque é que a filosofia em que confiamos pode ajudar-nos em tudo isto? Porque é que a filosofia poderia resolver este estado de coisas? Vamos recorrer a um símbolo para explicar isso, embora do ponto de vista filosófico existam outras maneiras de explicá-lo. Sabemos que os antigos alquimistas relacionavam os quatro elementos: terra, água, ar e fogo com estados da natureza. Por exemplo, relacionavam a terra com o mundo físico, obviamente; relacionavam a água com o mundo energético e vital; relacionavam o ar com o mundo psicológico e relacionavam o fogo com a mente. O fogo sempre esteve relacionado com a mente. Este símbolo é muito importante para nós, porque somos seres humanos, o que significa que somos seres com fogo, seres com mente. Quando dizemos “eu sou um ser humano”, o que estou a dizer é “eu tenho uma mente”, que vem da raiz sânscrita Manas. Eu tenho uma mente, ou seja, eu sou hu-mano. Estou a dizer ao mesmo tempo: “Eu tenho fogo; eu sou um fogo, porque eu tenho mente”. Na antiguidade todos os povos sabiam que esse fogo que têm os humanos não é um fogo qualquer, não é o fogo material, o fogo com que cozinhamos, o fogo que usamos para nos iluminar à noite. Não; era o fogo dos deuses. Em quase todas as mitologias e religiões antigas, e de uma forma mais acabada na Grécia Antiga, o que vamos encontrar é que os deuses nos deram o seu fogo, o fogo divino. Esse fogo, então, está dentro de cada ser humano.
Carlos Adelantado
Presidente Internacional da Nova Acrópole
Publicado na Biblioteca Nova Acrópole em 15-09-2023
[1] A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa em 26 de agosto de 1789.
Imagem de destaque: Jovens interagindo numa sociedade diversa, Leifern. Creative Commons