Trata-se, pois, de uma coroação Imperial, em que a Igreja desempenha, frequentemente a contragosto, um papel muito reduzido, limitando-se o padre a abençoar as coroas e pousá-las na cabeça, se não do Imperador designado, ou dos seus dignatários e mordomos, pelo menos – à semelhança da coroação e investidura das crianças na ‘festa dos loucos’ – na cabeça de uma criança. Gilbert Durant (1)
Como signo da Terceira Pessoa da Trindade, a Coroa é objecto de culto, mas de um culto muito paganizado que principia no sábado de Aleluia, com as ‘alumiações’ em casa do ‘imperador’. Para tal, converte-se em capela o mais espaçoso dos quartos e, aos sábados e domingos, sob uma ambiência inebriante de velas a arderem, de odores e flores, de dosséis estrelados, toca-se e baila-se, sem esquecer as ‘saudações’ em honra dos visitantes mais distintos. João Marinho dos Santos (2)
O Culto do Espírito Santo nos Açores está vivo. Tem, no seu mistério, algo de prospectivo, algo dos novos caminhos do espírito que a Era de Aquário promete, mas, em simultâneo, recorda-nos inevitavelmente a saga iniciada pela rainha das rosas e o seu rei-trovador, rei que não só trovou, mas que também foi um hábil político e modelador de arquétipos lusitanos. Deste casal mítico da história de Portugal emerge o culto paraclético, que se transforma em “religião nacional”, e a Ordem de Cristo – sucedânea dos Templários –, que levará os ritos do Consolador pelo Zêzere acima. O fogo e a coroa, a pomba e o ceptro, o convívio fraterno e a laicidade espiritual povoam os lugares templários. Um século mais tarde, o fogo paraclético toma o caminho do Ocidente e reencontra as ilhas de fogo, desse fogo vulcânico sempre próximo do mar e do grande mistério atlântico. Seria a mesma Ordem de Cristo que, nos Açores, veio a ter o exclusivo do governo espiritual do arquipélago em dependência do seu centro mítico de Tomar que, por sua vez, apenas dependia do Papa (Nulius Diocesis). Assinale-se que Angra do Heroísmo foi inicialmente construída segundo o modelo urbanístico de Tomar. Durante um século, os Cavaleiros de Cristo puderam modelar os ritos paracléticos nestas ilhas do Ocidente. Depois, viria o definhamento do Portugal Mítico, mas o “Divino Espírito Santo” já estava de tal modo entranhado no viver e no sentir das gentes açorianas que venceria todas as adversidades impostas pelo clero oficial, como também seriam os próprios açorianos a revitalizarem, no século XVIII, o Culto do Espírito Santo na cidade de Lisboa. A imagem da rainha Stª. Isabel, no Império de São Sebastião da Terceira, recorda este ciclo histórico. Um ciclo que parece impulsionado pelos ventos aquarianos, pois as festas lusitanas do Espírito Santo percorrem o continente americano e chegam aos confins da Califórnia, onde ricos açorianos oferecem bodos paracléticos a vinte mil pessoas.

Altar em honra do Divino Espírito Santo com Coroa. Ilha de São Jorge, Açores
Na Ilha Terceira pudemos verificar o contraste entre a energia que desperta os festejos do Espírito Santo e a das outras festividades religiosas, tais como as comemorações dos santos padroeiros, já desvitalizadas ou então afectadas pelo “factor pimba” com o seu característico ruído cacofónico.
Quando chegamos a esta ilha, logo deparamos com o vivo colorido e a alegria que emanam dos sessenta e oito impérios que povoam este pedaço de terra circundado pelo grande oceano. Estes impérios são umas “capelas” sui generis do Espírito Santo pertencentes às respectivas irmandades laicas. Com este estilo arquitectónico, constituem uma característica desta ilha e começaram a ser construídos no século XVII. Nas outras ilhas existem casas e capelas do Espírito Santo e os triatos ou teatros, pequenas construções de madeira que são montadas na época dos festejos.

Pomba do Divino da Freguesia da Vila Nova, ilha Terceira, Açores.
O sentido arcaico da convivência humana, a fraternidade e a coesão social estão presentes neste culto.
A gestão e utilização dos impérios é totalmente autónoma da Igreja. Aliás, a única função do sacerdote católico na “religião do Espírito Santo” é colocar a coroa aos imperadores ou imperatrizes e benzer as carnes e o pão a utilizar nas cerimónias. Porém, neste caso, temos notícias de que os imperadores também benziam. Nas procissões, na preparação dos bodos, no “sacrifício” dos bovídeos, na reza do terço ou nas “alumiações”, etc., a intervenção do clero é totalmente nula, ou seja, estamos perante um culto genuinamente popular. A relação, sagrada e sem intermediários, de grande parte dos açorianos com o “Divino Espírito Santo” constitui uma realidade inquestionável. Basta presenciar as festas do Divino. Poder-se-ia desmoronar o poder eclesiástico, poder-se-ia desmoronar o poder político, que os festejos do Divino continuariam a realizar-se. É verdade que na Ilha de S. Miguel, a mais populosa do arquipélago, as festas do Divino perderam o seu fulgor. É verdade que muitos jovens açorianos já não lhes compreendem a alma arcaica dos seus antepassados; é verdade que algumas das características mais peculiares e de grande calidez humana se têm vindo a perder, como é o caso dos foliões que, progressivamente, foram substituídos pelas filarmónicas; mas não é menos verdadeiro que o Culto do Espírito Santo nos Açores continua vivo, dinâmico, alegre, místico, paraclético e luminoso em muitos localidades. Mesmo não sendo aprovado pela Unesco, faz parte, por direito próprio, do património imaterial da humanidade. Pudemos confirmá-lo pessoalmente.
Sentir e compreender o culto paraclético açoriano é sentir e compreender uma parcela importante da nossa história de portugueses, do nosso imaginal, das nossas idiossincrasias, da nossa alma arcaica…
Esta “religião de símbolos” possui, a par de uma estrutura que se mantém estável, um grande número de variantes entre os diversos impérios – designação também utilizada para as irmandades. É importante realizar o inventário dessa complexidade e a sua posterior sistematização. É necessário saber com rigor aquilo que se mantém e registar os costumes perdidos, em cada ilha do arquipélago.
Para a nossa descrição muito sintética deste ritual consagrado ao “Divino”, tivemos em consideração as informações que nos prestou Eduardo Spínola, mordomo do Império das Lajes, Lúcio Vicente, mordomo em 2001 do Império dos Remédios (Angra do Heroísmo) e Francisco Ernesto Oliveira Martins, membro da Academia Portuguesa de História e conhecedor profundo da história e cultura açorianas. Aos três agradecemos a simpatia do seu contributo.
O ciclo do Espírito Santo tem início no último domingo dos festejos, quando se realiza o pelouro logo a seguir às arrematações das ofertas. O pelouro é o sorteio realizado entre os irmãos do império, que se propõem para o efeito – normalmente cumprindo uma promessa – e que designará quem será o imperador em cada semana que vai da Páscoa até ao Domingo de Pentecostes, nuns casos, ou Domingo da Trindade, noutros casos. Serão assim sete ou oito semanas. A quem no pelouro sair o número um, será o responsável pelos festejos na primeira semana e ficará com a coroa do Espírito Santo durante todo o ano. Colocada no trono – um altar doméstico – a coroa será objecto de veneração e constituirá objecto de grande contentamento para aquele a quem calhar esta “sorte” no pelouro. No ano seguinte, assim que acaba a Páscoa, entra-se em plena época do Espírito Santo. Durante cada semana realizam-se as alumiações – misto de veneração das insígnias do Divino e de convívio alegre a que não faltam os olhares namoradeiros – na casa do imperador ou na reza do terço no império, canta-se o pezinho ao imperador e às pessoas que realizam generosas ofertas ao Espírito Santo, tradição que, em parte, lembra as janeiras, porque um grupo vai de casa em casa cantar o pezinho aos benfeitores do império. Em certos festejos do Espírito Santo também existem cantorias que recordam os cantares ao desafio do Norte de Portugal. A sexta-feira é o dia do sacrifício do bovídeo, com vista ao bodo que o imperador, no domingo, oferece aos seus convidados. Em muitos casos, é o próprio imperador que, no acto do “sacrifício”, benze o bovídeo com o ceptro do Espírito Santo. Antigamente, o imperador estava de tal forma imbuído do seu papel de oficiante que chegava a dar sermões na igreja. No domingo realiza-se a primeira procissão que vai a casa do imperador buscar a coroa, o ceptro e a salva, que é transportada ritualmente por jovens vestidas de branco para a igreja onde se realiza a cerimónia da coroação. Recordam as guardiãs do Graal e as vestais romanas. A bandeira do Espírito Santo, de fundo escarlate com a pomba bordada, segue sempre à frente na procissão. Muitas vezes, não é o imperador que é coroado, mas sim uma série de pessoas que ele designa, adultos ou crianças, conforme os casos – por norma, os impérios têm várias coroas. A seguir à coroação, nova procissão segue para o local do bodo. Uma vez este finalizado, o imperador segue em cortejo até ao império, ou em direcção à residência do imperador da próxima semana, entregando-lhe as insígnias do império. Estas procissões, de onde o clero está ausente, são realizadas com grande solenidade. Hoje em dia, são acompanhadas pelas filarmónicas, antigamente eram-no pelos foliões. Foi uma grande perda, porque os foliões sintetizavam tradições muito antigas. Dançavam, cantavam, no seu jeito brincalhão, um pouco malicioso, mas paradoxalmente eram os verdadeiros mestres de cerimónias, regendo todos os passos dos festejos. Vestidos de cores avermelhadas, o seu prestígio estava simbolizado na “mitra” que levavam sobre a cabeça. Já vimos que, na Beira, as confrarias do império denominavam-se folias. Ora, folia vem do francês folie, que significa loucura, razão pela qual muitos especialistas veem na origem dos foliões – na mesma linha de pensamento, fou ou fol em francês significa louco as antigas festas dos loucos realizadas em França. É lógico que haja nesta tese alguma razão, mas não nos podemos esquecer que, por sua vez, estas festas dos loucos têm uma origem na Europa celto-romana.

Símbolo comumente usado na Festa do Divino Espírito Santo.
Em parte, a função dos foliões lembra a tradição dos Zés-Pereiras, ainda hoje muito arreigada no Norte de Portugal, os quais, com o seu tambor, as suas danças e cantares “preparam” o espaço para a festa. No século XVII, os foliões ainda abrilhantavam a coroação do imperador, mas em 1665 o cónego João Diniz Pereira, provisor do bispado, determinou que “somente as coroas entrem dentro da igreja e os Foliões que acompanham as pessoas ou Imperadores não estarão com a música e tambor na igreja; e os ditos ministros eclesiásticos não assistirão à mesa dos imperadores nem irão à sua casa a dar-lhes o ceptro nem tirar-lhes a coroa, sob pena de excomunhão”(3). Ao tomarmos conhecimento das repressões eclesiásticas que penderam sobre este culto, ficamos a saber da existência de impérios femininos no século XVII, o que, a nível antropológico, consideramos muito significativo. D. António Vieira Leitão, 17º bispo de Angra, proibiu, em 1697, sob pena de excomunhão maior e de 50 cruzados de multa, os “impérios de mulheres que se fazem sob pretexto de festejarem o Espírito Santo mas não servem mais do que para se ofender, com eles, o mesmo Senhor, pelos ‘enfeitos’ indecorosos e profanos de que as ditas mulheres usam em tais actos pelo concurso dos homens que a eles vão, com práticas indecentes e outras enormidades de que resulta geral escândalo.”(4) O poder eclesiástico, entrincheirado nos seus dogmas, para além de não compreender as necessidades naturais de protagonismo espiritual das mulheres, sempre teve dificuldade em entender que para se “inspirar” é necessário primeiro “respirar”. Durand vê no protagonismo feminino, nas festas açorianas do Espírito Santo, um facto que “liga ainda mais esta festa a uma tradição pré-cristã, provavelmente celta, pois entre os celtas, mesmo os cristianizados, as mulheres desempenhavam funções litúrgicas”.(5) Tivemos oportunidade de assistir à reza do terço na “capela laica” do Império dos Remédios, realizada somente por mulheres e oficiada pela D. Alzira de Lourdes Silveira, que dirigiu a cerimónia com grande solenidade efectuando, para além da reza do terço propriamente dita, sermões e evocações ao “Senhor Espírito Santo”.
O apogeu das festas acontece no fim-de-semana do Domingo de Pentecostes, prolongando-se em muitos lugares até ao Domingo da Trindade. Na sexta-feira, os bovídeos são enfeitados e realiza-se a “procissão do vitelo”, e posteriormente são “sacrificados” os animais necessários para o bodo colectivo e para a distribuição das esmolas aos pobres. No Domingo de Pentecostes vive-se um ambiente de abundância e de cor. O largo principal da povoação respira este estado de espírito colectivo. Depois da coroação, realiza-se o bodo ou a função, ou seja, um banquete ritual para o qual são convidados todos os que estejam presentes no local. Nós próprios tivemos oportunidade de participar na função do Império dos Remédios, que foi servida a mais de trezentos convivas com uma organização impecável: não houve nem stress, nem esperas prolongadas. Foram servidas a tradicional sopa do Espírito Santo e a alcatra, exemplarmente confeccionadas e acompanhadas com vinho “aprovado” pelos mordomos do Império. Nesta irmandade não se realiza o pelouro, nem existem imperadores, mas somente mordomos. A coroação é realizada com crianças. No domingo à noite, o “cabeça” da mordomia, se desejar continuar nessa função, vai com a bandeira do Espírito Santo bater à porta daqueles que deseja para mordomos do ano seguinte. Os novos eleitos são apanhados de surpresa e respiram fundo, pois a organização dos festejos é muito trabalhosa, mas normalmente acabam por aceitar, porque “ninguém se atreve a negar ao Divino Espírito Santo”. O Espírito Santo é o Deus Vivo dos açorianos, um Deus que se manifesta em vários símbolos, como a pomba e a coroa, mas que nunca é antropomorfizado, o que recorda, mais uma vez, a tradição celta.

Preparação tradicional das sopas do Espírito Santo (Vila do Porto, ilha de Santa Maria).
Nestes festejos, realizam-se muitas outras actividades que, como já dissemos, diferem de lugar para lugar, tendo, no entanto, uma estrutura comum. Realizam-se touradas à corda, bodos de leite, distribuição de massa sovada aos irmãos, cantorias improvisadas, actuações das filarmónicas e grupos folclóricos, etc.
Em certos locais é comum realizarem-se bodos do Espírito Santo fora da época dos festejos por iniciativas individuais, por exemplo como ex-voto ao Divino.
O eventual carácter joaquimita não está presente nestes festejos. Eles são realizados como um voto propiciatório para a abundância de bens, para a fertilidade das colheitas e saúde do gado. Estas “Saturnais Paracléticas” são uma exaltação aos dons da Terra, sacralizados pelo Espírito Santo, um culto agrário com fundamento iniciático.
Mas também está imanente um culto do fogo, pois é crença geral que o fogo do Espírito Santo pode apaziguar o fogo vulcânico das ilhas e tem uma forte componente social, representando cada império a alma espiritual de uma pequena comunidade.
Pudemos observar que, quando o cortejo do Império dos Remédios passou por outro império, os mordomos desse Império colocaram a sua coroa à porta dessa “capela”, como que a saudar a coroa que representava o Império dos Remédios. Foi comovente presenciar este detalhe simbólico. O sentido arcaico da convivência humana, a fraternidade e a coesão social estão presentes neste culto.
É evidente que as festas tradicionais, em paralelo com a vivência do sagrado, tinham como objectivo dar alimento às lícitas necessidades humanas de segurança, prestígio social, de auto-estima e, para os mais fortes, de auto-realização (cf. pirâmide de Maslow). Portanto, é perfeitamente natural que os protagonistas das festas ganhem estatuto social com a sua acção em prol da colectividade. Preservando-se a autenticidade no proceder, as festas tradicionais favorecem a criação de uma estruturação social equilibrada e sem tensões de maior. Estabelecem a comunicação transversal entre os diversos estratos, e, evidentemente, é muito mais saudável que um indivíduo com posses adquira prestígio por oferecer um bodo do Espírito Santo, ou patrocinar uma festa local, do que por mostrar um qualquer cartão de platina.
Para finalizar, damos a palavra ao açoriano Vitorino Nemésio: “É uma verdadeira instituição social esta usança que a todas as ilhas se estende e tem a solidez e a eficácia de um município ou de uma comuna. Cada freguesia, rua ou lugarejo erige a sua mordomia ou irmandade, com um templo próprio e inteiramente original na arquitectura religiosa de todo o orbe católico. Chama-se império ou teatro; e em verdade ali se representa uma tragédia mística, com bezerro imolado, pão de cabeça enfeitado de ervas cheirosas, e uma comparsia de foliões, de pagens, de alferes e vereadores que lembra a organização de uma comunidade medieval. A festa é pagã, de um ruído e de uma cor que desnorteiam e deslumbram; mas lá tem o seu fundo de caridade cristã bem entendida para lavar toda a mancha de profanidade desenvolta.”(6)
Viva o Senhor Espírito Santo!