Usamos jade para ajudar o nosso espírito humano a expulsar os maus pensamentos da mente.[1]
No Livro dos Ritos, um dos Cinco Clássicos da Antiga China, um discípulo[2] pergunta a Confúcio sobre o valor e significado do jade:
“Por que o Sábio estima o Jade e não a pedra “Huen”? É porque o Jade é escasso e a pedra “Huen” mais abundante?
Não é porque a pedra “Huen” é encontrada em abundância que ela tem um preço mais insignificante e não é porque o Jade é mais raro que ele é tão estimado pelo homem sábio. A razão é que, desde os tempos antigos, o Sábio comparou o Jade à Virtude. Aos seus olhos, o polido e o brilho do Jade representam a virtude humana. A sua coesão e extrema dureza simbolizam a segurança da inteligência bem orientada. Os seus ângulos, que não cortam mesmo que pareçam afiados, são emblemas de Justiça. E as pérolas de jade penduradas no chapéu e no cinto dos grandes oficiais do Estado, são representações do “Rito” e do cerimonial.”
Viajar para o coração do Império Hitita, para a cidade de Hattusa é uma experiência formidável. Encravada no centro da Anatólia, entre montanhas e penhascos que surgem do altiplano, centenas de templos (dos quais quase não há vestígios) e residências oficiais se estendem por uma área de mais de 2 quilómetros quadrados. Na época hitita, e já na sua decadência, foi devastada por um incêndio, por volta do ano 1.178 a.C. e sobre as suas ruínas se ergueu uma nova luvita ou cidade neo-hitita.
O rei Supiluliuma I (por volta de 1340 a.C.) ampliou-a e dividiu-a em dois recintos, uma cidade interna com a Acrópole, templos e edifícios administrativos. Ao sul, a cidade ou recinto mais externo, onde também encontramos quatro templos e estruturas residenciais, bem como os pórticos com esfinges, deuses guerreiros e palácios de residência. Fora da cidade estavam os cemitérios e os crematórios. A vários quilómetros de distância, e ligado à cidade por uma avenida cerimonial, ainda há, esculpido na rocha, o Santuário de Yasilikaya, com os seus reis e deuses em relevo, entre os quais o deus Espada, o deus da tempestade -Teshub – e a deusa do Amor e da Guerra – Shaushka, a deusa hitita equivalente à suméria Innana, e os 12 Deuses do Submundo.
Na cidade baixa – que é a mais antiga – está o chamado Templo Maior ou Templo I de Supiluliuma I, uma estrutura imponente com pedras megalíticas. Sabemos[3], pelos textos, que os Templos deviam ser cerca de 14 – e dos quais apenas sete foram encontrados – e que foram divididos em “edifícios sagrados” ou Karimmi, e Casas dos Deuses, Siunas/pir/parna; além de recintos sagrados que estavam ao ar livre, recebendo diretamente a bênção da luz do céu e da chuva.
A complexidade do Templo Maior é grande, pois estava rodeado por todo o tipo de edifícios dos quais se desconhece o uso. Acredita-se que o Templo, propriamente dito devia constar, como todos eles, de um Grande Pórtico, de um Lago Sagrado para as purificações, e de um Pátio, que conduzia à Sala de Culto – equivalente talvez à Sala da Barca, dos templos egípcios – e, finalmente, ao Santo Santorum, onde estaria a imagem do Deus. Ou da deusa, neste caso, porque estava consagrada à Deusa Sol Arinna.
Chegou até nós um hino composto pelo rei Hattusil III, que diz:
“Ó Sol Deusa Arinna, rainha de todas as terras! Teu nome é Deusa Sol de Arinna no país de Hatti, mas no país que Tu criaste, o país dos cedros, teu nome é Hepat, e Puduhepa – a esposa do rei – que sempre tem estado ao teu serviço.”
Embora seja importante destacar que o Santuário mais importante de culto a esta Deusa Mãe da Luz, estava a um dia de caminho de Hattusas, pelo qual, talvez se trate do Santuário de Alaca Hüyük, centro especialmente sagrado entre os hititas, desde pelo menos 2.500 a.C.
Numa das dependências do Templo, perto da entrada, há uma pequena sala onde se encontra uma pedra cúbica verde, de grande beleza. A sua cor e um não sei quê da sua presença se destacam no meio das ruínas do Templo, como um testemunho vivo, e não morto, de outra época. Como se tivesse vindo até nós intacto e em silêncio, ele queria nos revelar o que ele é e o quanto sabe. É muito surpreendente que ainda esteja lá, porque é de jade, é admirável que nenhum dos povos que atacaram os hititas, ou aqueles que saquearam a cidade mais tarde, a tenham tomado. Não sabemos o que diz o relatório da escavação arqueológica sobre ela, se encontraram no mesmo lugar, o que estava ao lado dele. Especialistas dizem que a pedra é nefrita, porque o que chamamos de jade, não faz muito tempo foi descoberto que pode ser jadeíte ou nefrita, pedras muito semelhantes, mas de composição química diferente.
O curioso é que ambas têm uma aparência semelhante, a mesma densidade, cerca de 3 vezes o peso da água (apenas um pouco maior a jadeíte), a mesma dureza (pouco mais de 6 a jadeíte e um pouco menos a nefrita), de modo que somente com a análise química foi descoberto que eram diferentes. A jadeíte é um silicato de alumínio e sódio, a sua fórmula é Na(Al,Fe3+)Si2O6 enquanto a nefrita é um silicato de cálcio de ferro e magnésio, Ca2( Mg,Fe2+)5(Si8O22)(OH)2 e diferente da jadeíte porque o seu brilho é oleoso e se lasca ao se fraturar.
Os chineses diziam que o jade era puro amor e pura essência de Yang cristalizada, ou seja, a luz do céu petrificado, e atribuíam-lhe, como os maias, todo o tipo de bênçãos médicas, emocionais e até espirituais. Era, como o Graal na tradição arturiana – que nas versões mais antigas também é uma pedra verde, nascida da testa de Lúcifer-Vénus – o alimento dos imortais[4]. Muitas almas, nobres e sensíveis, sentem uma necessidade urgente de abraçar esta joia de Hattusas quando a veem pela primeira vez, tal é a sua irradiação de amor e beleza.
Há referências contínuas na web de que esta pedra cúbica de jade, com aproximadamente um metro cúbico (ou seja, pesando cerca de três toneladas), foi um presente egípcio ao rei hitita, nesta fértil relação diplomática – para muitos estudiosos, o primeiro tratado de Paz bem documentado da História – que foi estabelecido após a batalha de Kadesh, entre o faraó Ramsés II e o rei hitita Muwatalli, por volta de 1274 a.C. Há textos egípcios que mencionam o envio de Estátuas curativas, mágicas, como a do deus Khonsú, com todo o seu cortejo triunfal, para a princesa de Bakhtlán, aflita com uma doença incurável ou possessão demoníaca da qual foi felizmente libertada por este Deus Falcão.
Infelizmente, sobre a procedência egípcia desta pedra cúbica verde, não encontrei nenhuma fonte histórica ou referência a seu respeito. Embora os egípcios usassem jade, era sempre em ínfimas quantidades, apenas nas suas joias mágicas, não na sua estatuária. Na obra Ancient Egyptian Materials and Technology, escrita por Paul T. Nicholson e Ian Shaw, disse que: “Não há fontes conhecidas, antigas ou modernas, que se referem ao uso da jadeíte nem da nefrita, pelo que os poucos artefactos que foram identificados de jade devem ter sido importados do Turquestão ou de Caxemira. Tanto o jaspe verde como a serpentina são facilmente confundidos com a nefrita. Dada a aparente falta de fontes de jade no Egito, devemos destacar que muitas lâminas do neolítico europeu foram feitas de jade, embora não tenhamos identificado de onde vem”. E ainda assim, o mesmo autor diz: “ um anel da tumba de Tutankhamon é jade [5], bem como o amuleto egípcio “dois dedos” de uma coleção privada em Nova York, e a cabeça de um machado do período predinástico, também este último no Museu do Cairo” (de nefrita, o mencionado anteriormente de jadeíte). E este mesmo trabalho reconhece que, embora não tenhamos fontes escritas ou quase artefactos, no próprio Egito há um sítio de nefrita, o material no qual, recordemos, é talhada a pedra cúbica verde de Hattusas.
Outro assunto é que uso se destinava esta pedra. Era um altar para um Deus, talvez ainda, o altar para a Deusa da Luz Arinna? Para os chineses, e não esqueçamos a transversalidade de todos estes conhecimentos através das Escolas de Mistérios, o jade é a luz petrificada do próprio céu, que é o melhor altar para adorar esta Deusa! Ou talvez fosse uma pedra oracular, porque no Egito, os tronos dos deuses são Pedras cúbicas, e ainda na Idade Média, a voz do Mestre, interpretada com a seriedade de um oráculo, era “divina” porque veio da Cátedra, que significa “assento”, e Fílon de Alexandria chamava Petra ao Logos[6]
Ou talvez tenha sido usada para realizar certos exercícios espirituais em que esta pedra era um auxílio fundamental ou mesmo sine que non.
Não o disse antes, mas menciono agora: tive a oportunidade de fazer a viagem para Hattusas convidado e acompanhado pelo meu amigo e mentor da juventude, professor Antonio Romero, a quem agradeço do fundo do meu coração a oportunidade. Uma vez que o lago para as abluções estava um pouco antes no caminho de entrada para o interior do templo, ele disse, com muito bom senso, que talvez tenha sido realizada diante desta pedra um tipo de purificação com base em práticas que hoje desconhecemos. Recordemos a máxima chinesa com a qual começamos o artigo:
Usamos o jade para ajudar o nosso espírito humano a expulsar os maus pensamentos da mente.[7]
Talvez após a limpeza com a “água sagrada” se realizasse uma limpeza mental, para que a alma chegasse à presença da Deusa despida de parasitas, transparente ou pura luz, para se fundir assim com a Luz que evocava a sua presença. Era necessário assim remover todos os tipos de vibrações perversas do mesmo modo que os raios solares desfazem os fragmentos de neblina deixando o ar límpido e transparente. Talvez as vibrações etéricas desse Jade, gigantesco, juntamente com as energias subtis despertadas ou projetadas pelos magos nesta pedra cúbica, convertida assim em artefacto mágico, permitiam essa purificação mental, sempre a mais difícil de todas.
Quantas perguntas, quantos mistérios; silenciosa permanece com a sua expansão de amor esta poderosa joia de jade, na antiga capital do Império Hitita, como um coração verde palpitante, o coração verde de Hattusas.
José Carlos Fernández
Diretor Nacional da Nova Acrópole em Portugal
Almada, 25 de novembro de 2015
[1] Do livro História do Jade, de Chen Hsing, publicado em 1839 e citado na obra A Alma da China, no seu magnífico capítulo sobre o Jade.
[2] Citado no mesmo capítulo sobre o Jade do referido livro A Alma da China, de Juan Marín.
[3] Seguimos nesta descrição a obra Deuses, Templos e Oráculos, de Francisco José Gómez Fernández
[4] Na tradição germânica também é dito: “Como poucos sabem qual é a comida dos guerreiros de Odin!” Isto, como o Graal e o Jade são símbolos da Luz Celeste da Hierarquia ou Poder que guia a evolução humana, e encoraja o fogo prometeico que permite que a civilização nos una como as abelhas de uma colmeia. É um rebento de Vénus, o seu coração de luz espiritual, enxertado na Árvore da Vida da Terra. Esperança em si, na Caixa Mágica de Pandora.
[5] Segundo o indica o próprio Howard Carter e especifica que não é nefrita, mas jadeíte, devido à sua densidade (superior a 3)
[6] Como nos disse H.P. Blavatsky na sua Ísis sem Véu.
[7] Do livro História de Jade, de Chen Hsing, publicado em 1839 e citado na obra A Alma da China, no seu magnífico capítulo sobre o Jade.Imagem de destaque: Jade, Hattusa. Carmen Morales