Os livros e textos sagrados que vamos conhecendo e estudando retratam sempre um momento inicial sobre o qual não existia nenhuma identificação concreta da matéria ou de uma existência em movimento. Esta ideia do “nada” ou de um “oceano primordial” assemelha-se a um estado que podemos definir como sendo o caos, um equilíbrio imóvel ou uma inércia em potência. Uma espécie de estado adormecido ou de Pralaya, tal como o útero de uma mãe aguarda algo que desperte vida no seu interior. Tesla referia que a dimensão obscura no universo está apenas adormecida, ou seja, à espera de algo que a desperte. Também o mesmo acontece no Ser Humano. No seu interior residem inúmeras zonas de matéria negra numa potência inerte à espera de algo que a torne consciente, viva e desperta.

Segundo as antigas cosmogonias as potências criadoras surgem com os divinos sopros que ao entrarem neste caos dão inicio a todo o movimento da matéria antes adormecida gerando assim aquilo que podemos definir como matéria diferenciada (pela emanação de fohat) e matéria viva ( pela emanação de prana) dando assim origem ao cosmos.

Percebemos então que nos mitos de criação existe sempre a matéria não diferenciada e por isso inerte e a matéria diferenciada e por isso viva. A passagem de um estado de caos a um estado de cosmos ativado por Theos. As potências criadoras cujo alento divino despertam a vida e habitam nela de forma omnipotente e omnipresente.

Sabendo que a vida é una, tal como uma circunferência, não conhecendo início nem fim, tempo ou espaço, dimensão visível ou invisível, podemos referir que a sensação de tempo e espaço apenas é criado pelos ciclos aos quais esta circunferência está sujeita. São estes ciclos que criam a perceção de início e fim, vida ou morte, dor ou felicidade etc. Dentro desta perspetiva, e considerando os momentos de caos e cosmos como ciclos de vida, o próprio ser humano também integra no seu microcosmos estas dimensões cujo processo rotativo atua em cima da circunferência una que é a própria vida. A isto denominam os filósofos orientais de Maya, o mundo ilusório, a Roda de Samsara.

Pintura tradicional tibetana ilustrando a Roda de Saṃsara. Creative Commons

Podemos então definir o cosmos como um estado de movimento da matéria desperta por Theos ficando assim sujeito às leis da natureza regidas no plano da existência pelas leis da física, restos arcaicos das antigas ciências ocultas, e cujo conhecimento nos permite aceder ao movimento desta grande “máquina” que são os ciclos dentro da vida e as leis que os regem.

Por este motivo, percebemos que na existência tudo está em vibração, em movimento, nada está parado tal como acontecia no estado de caos. E mesmo este estado de caos terá as suas próprias leis. Mas isso seria talvez tema para um outro trabalho.

Dentro desta reflexão, podemos questionar: o que acontece, por exemplo, a uma bicicleta quando perde o movimento? A resposta é naturalmente uma ausência de equilíbrio e em último momento uma queda. Por este motivo todo o cosmos está “condenado” ao movimento pois esta é a única forma de manter o equilíbrio da existência e a ordem da mesma, pois equilíbrio e ordem nascem do mesmo princípio superior também conhecido como o Dharma. Este movimento é por isso cíclico não finito nem temporal. E tal como o cosmos caminha nestes ciclos de movimento também o Ser Humano executa a sua jornada dentro destes mesmos ciclos pois ele está integrado no cosmos, na natureza, faz parte dele. As leis que regem uma galáxia são as mesmas que regem o ser humano. A diferença está apenas limitada pela perceção da nossa consciência que, no final, é a grande potência em evolução.

Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci. Domínio público

O cosmos, ao estar alimentado pelo sopro das potencias divinas, na sua dimensão de fohat e prana, encontra-se naturalmente em movimento continuo e imparável (pois caso contrario perderia o equilíbrio e a ordem) em direção a um terceiro sopro situado no plano superior da existência pois pela sua natureza pura não integra o plano da matéria inferior. A alma, na sua vontade de união com esta esta terceira potência, tal como Psike na procura de Eros, executa o seu movimento cíclico em processo ascendente pois pelo Amor de uma antiga união consegue elevar toda a materialidade para a evolução. Na densidade do plano material esta perceção é de difícil entendimento para o Ser Humano que, na ignorância do impulso deste amor, continua a dirigir a sua união para elementos que promovem os ciclos lineares ou no pior dos casos descendentes.

Por este motivo, dentro desde movimento cíclico o Ser Humano comete muitas vezes o grande engano de criar um movimento linear e uniforme. Na origem está a ausência de conhecimento sobre as leis que atuam por detrás do cosmos e os caminhos escritos pelos grandes mestres e sábios nas antigas escolas de mistérios, e mais tarde nos inúmeros movimentos filosóficos, que no despertar da alma humana a direcionavam para um movimento espiral e não linear da evolução da consciência.

Como consequência estará sempre o vazio, a frustração, a saudade de algo que não se define, a ausência, o desespero que não se sacia em nada e o próprio caos, um novo ciclo de matéria não diferenciada no qual o Ser Humano, imitando os ciclos da criação, muitas vezes acaba pode terminar. Neste estado, tudo nele está em potência, mas a ausência de esperança divina, fé ou devoção superior o afundam neste caos que apenas poderá despertar novamente com os sopros divinos das emanações que outrora despertaram o próprio universo.

A Complexidade

Perante esta reflexão, e por forma a evitar a queda no caos enquanto habitamos o cosmos, surge a interessante ideia da complexidade desenvolvida pelo biólogo Stuart Kaufman.

Os sistemas de complexidade refletem a importância de, num momento de emergência de uma nova ideia, paradigma, mudança ou circunstância a qualquer nível, o Ser Humano consiga integrar esta nova realidade habitando um ponto intermédio entre o seu antigo paradigma e o possível colapso no caos. A ideia da complexidade refere a importância de podermos assimilar um novo degrau de consciência sem perder o nível de ordem anterior mas complexificando-o através de um importante processo de auto-organização ou auto-poeisis sobre a situação emergente. Este sistema, que Kaufman integrou no seu estudo relativo à biologia e aos processos de evolução dos microorganismos, possui uma importante componente filosófica no que diz respeito ao ser humano e ao próprio universo. O cosmos está constantemente em processo de complexidade integrando de forma natural as inúmeras mudanças que ocorrem. A natureza, como emanação direta do I logos, não tem nenhum problema em realizar este movimento e por esse motivo não inicia um processo de caos pois complexifica-se dando origem as novas formas de vida.

No caso do Ser Humano, a ausência de consciência, ou seja, a sua própria ignorância e desarmonia com as leis da vida impossibilitam esta natural integração e o movimento espiral da vida.

Stuart Kauffman. Creative Commons

Dentro desta reflexão, podemos dizer que existe nesta perspetiva uma interessante ligação entre os ciclos e a complexidade. Geralmente, a integração de novos paradigmas sejam, físicos, energéticos, emocionais, mentais ou espirituais ocorrem nas mudanças de ciclo. Neste momento, o que dita a transferência para o patamar seguinte é a capacidade de ação em tempo e a capacidade de organização em espaço. Quando o tempo de Cronos se alonga e as tomadas de decisão necessárias não se realizam, o caos surge no horizonte. Quando o espaço de consciência perde elasticidade e amplitude o caos emerge no mesmo horizonte.

A complexidade surge assim como um sistema de ação perante o movimento dos ciclos na circunferência da vida una. Quando não abraçamos a complexidade o movimento torna-se linear. Se, pelo contrário, esta for absorvida, o movimento será espiral devido à constante auto-organização da consciência pois todo o processo evolutivo encontra-se centrado nesta dimensão. À medida que a complexidade aumenta, a visão desta circunferência torna-se mais elevada clarificando a sua compreensão e a sua ação na roda da vida. À medida que a consciência integra esta complexidade aumenta o seu equilíbrio e perceciona uma realidade diferente. Qual o ponto de elevação da consciência em relação à circunferência? É naturalmente o centro. Pois só a partir dele se integra o todo. Nesta elevação os olhos da consciência retiram os seus véus podendo contemplar as maravilhas da criação que antes eram impercetíveis.

A Dupla Espiral

Na sequência desta ideia é importante compreender que a consciência não se liberta da ilusão, apenas adquire patamares de realidade mais próximos da Verdade última da vida. Ao transitar para um novo patamar o anterior é integrado e os seguintes permanecem no mistério, devido à consciência ausente de visão.

Nesta perspetiva, não existe o mistério, nem existe o oculto pois tudo está visível na Natureza. O motivo pelo qual o mistério existe é porque o Ser Humano ainda não integrou na sua consciência a complexidade suficiente para “ver”. Tal como um cego não consegue ver o quarto em que se encontra. Não porque o quarto está tapado ou a mobília coberta, apenas porque o cego está limitado pela sua visão. Da mesma forma que nada está oculto, apenas estamos limitados pela nossa visão, ou seja, pela nossa consciência. A cada mudança de ciclo existe um véu que se abre ante a integração de uma nova complexidade auxiliada pela dupla espiral, ou seja, da auto-poieisis a “fabricação” derivada da ligação entre o movimento centrifugo e o movimento centrípeto.

Como vimos, a complexidade, no encontro com uma nova ordem emergente, requer a integração de dois opostos e movimentos fundamentais. Quando se integra um novo paradigma que desestabiliza a ordem praticada anteriormente, e cuja zona de conforto estaríamos ligados, a perda da nossa identidade pode surgir como um perigo a considerar. Por outro lado, a preservação da nossa identidade neste movimento centrípeto e a não adaptação ao movimento centrifugo emergente pode levar à paralisação da complexidade. A auto-organização deve participar na dupla espiral como um trabalho da consciência que não perde a identidade, pelo contrário a eleva, e não se ausenta da mudança, pelo contrário a integra.

Curiosamente, apesar de focarmos este tema numa dimensão humana, todos estes processos são encontrados na própria natureza como uma lei inerente à criação e cuja estrutura permite a construção de um movimento espiral do cosmos dentro e fora de nós.

Os perigos do movimento centrifugo levam à natural perda da nossa identidade e do centro que a nossa consciência pretende elevar por forma a aproximar-se de patamares de realidade mais ligados à Verdade dentro deste mundo ilusório. Pois mesmo aumentando a nossa consciência, na integração de uma maior complexidade, a forma como vemos a vida continua a ser ilusória. Mas naquele momento é a nossa realidade. Por esse motivo não podemos exigir aos outros a visão de algo sobre o qual não incide a luz da sua consciência. Da mesma forma que na nossa não incidem pontos que os outros gostariam que tivéssemos. Mas, a Beleza que anima toda a ordem do cosmos pode inspirar o Ser Humano à contemplação da Estética que inspira à Ética.

Por esse motivo irradia a terceira emanação a sua luz infinitamente branca para que na contemplação e na absorção com o divino neste movimento centrípeto o Ser Humano encontre a sua própria identidade, ou seja, Theos dentro de nós. Por outro lado, viver no mundo material e aumentar a vida do movimento centrifugo é plasmar castelos no ar e não agir sobre o mundo, no mundo e com o mundo. Mas perder a identidade é soltar as rédeas deste cavalo que deve ser dominado.

A Barca Solar

Rá, com cabeça em forma de carneiro, em sua Barca Solar viajando pelo Duat. Domínio Público

Nestas inúmeras dinâmicas a vida torna-se ambígua, incoerente, difícil e desafiante. Tal como Rá na sua barca Solar, está também a alma humana na casca da matéria a percorrer os inúmeros cenários dos ciclos da existência da vida una representada pelas águas nas quais essa mesma barca atravessa. O submundo, o Hades ou o inferno, como refere H.P. Blavatsky, é a própria Roda de Samsara repleta de Apofis kármicas que requerem o instinto heroico da alma. Mas o que seria desta travessia de Rá se não fosse acompanhado pelas potencias divinas e se na sua mão não possuísse a chave da vida como símbolo do movimento centrípeto e o bastão como chave do movimento centrifugo?

Todas as civilizações construíram inúmeros caminhos para a integração do Ser Humano no conhecimento mistérico capaz de o retirar deste grande labirinto da existência. Um fio de Ariadne foi entregue e cada alma humana que possui a verdade dentro de si mesma à espera de ser desperta. Toda a simbologia não é mais do que uma linguagem para orientar a consciência nesta importante perceção do cosmos desperto pelas emanações de Theos sobre o caos e sobre o qual emergiu a vida una. A limitação da nossa perceção não compreende que sobre esta vida una não existem barreiras de tempo ou espaço pois estas mesmas limitações são provocadas pelos ciclos que se movimentam por cima da circunferência da vida. Neste movimento circula Rá na barca da matéria, a alma humana lutando contra os seu próprio karma e o de toda a humanidade acompanhado da presença divina e da capacidade de integração do movimento centripeto que garante a sua identidade e do movimento centrifugo que permite superar as circunstancias emergentes.

Cair no caos, é por vezes inevitável. Pois integrar novos paradigmas, novos desafios, novas realidades é algo desafiante para o ser humano. Mas aquele que consegue integrar uma nova ordem face às circunstâncias emergentes será inevitavelmente aquele, ou aqueles, que iniciarão uma nova humanidade, um novo mundo e um novo Homem. Pois atrás destes “pontas de lança” seguirão todos aqueles que procuram luz, direção e orientação.

Que sejamos nós, os filósofos, aqueles que ante as circunstâncias actuais e futuras façam emergir uma nova ordem e um novo paradigma capaz de atravessar este momento tão critico sobre o qual o caos já começa a emergir levando à queda de muitos que irão arrastar consigo outros tantos!

Isabel Areias

Imagem de destaque: Magnum Chaos, Basílica de Santa Maria Maggiore. Domínio Público