Este texto de José Carlos Fernández foi inspirado na fotografia acima de Pierre Poulain, fazendo parte de um projeto intitulado FiloFoto.
Quantas vezes já vi esta fotografia e a primeira imagem que se forma na minha mente é a de um anjo! Só, fixando a atenção, e evitando que o pensamento se acelere à perceção, dou-me conta que é uma pessoa lendo no alto, desfocado o seu corpo pelos vítreos reflexos do parapeito de cristal que evita que caia no vazio, e enquadrada a sua figura pelos desenhos geométricos da pirâmide, que hoje permite o acesso ao palácio e Museu do Louvre.
Mas, então, porque vê a mente, ao descuidar-se, um anjo? Terá sido que ao ler o título da fotografia, tenha sido influenciado, sem chegar a ser consciente disso? Quiçá porque o que está no alto é o anjo e o rei, e a intuição sabe que o rei deve estar, ainda que no alto, firmemente assente na terra e só o anjo suspenso no ar, pois a sua raiz e fonte mística está no céu e só como mensageiro (este é o significado de “anjo” em grego) desce à terra angustiada dos mortais? Será porque a sua forma perde os seus perfis nítidos e neste aspeto fantasmagórico e sereno a única coisa que a imaginação pode forjar é a figura de um anjo? Ou será devido ao facto de sentirmos que quando alguém está erguido e com a sua alma mergulhada em contemplação, assume uma natureza angelical? Já nos disse o grande filósofo Ortega y Gasset que somos anjo e besta, e além do mais com problemas, puramente humanos, já que no problema existe sempre um desafio ou uma rede mental que está mais além do alcance da besta e ao qual é indiferente o anjo, que sempre cumpre a Lei de Deus, e deste modo carece de problemas, tal como nós entendemos o que é um problema.
Ao ver esta fotografia, e comprovando depois que não era o que parecia, chegamos a compreender o Quixote, com a sua alma cheia de imagens e valores de um mundo cavaleiresco, que vê na nuvem de pó o anúncio de uma gloriosa batalha, a aproximação de um exército, e só depois Sancho o recorda que era produzida, na realidade, por um rebanho de ovelhas; ou quando vê surgir no horizonte um gigante descomunal que não teme enfrentar, e Sancho, mais sensato, lhe diz que era só um moinho. Pois assim como a nossa mente mecânica e quotidiana se encontra cómoda num mundo utilitário formado de imagens dos sentidos, a nossa mente idealista vive de sonhos divinos, de símbolos e reminiscências que a fazem não só não perder a sua memória de imortalidade, mas que são o vínculo com a alma da natureza, e com a aspiração para o alto, sem a qual nos precipitamos no abismo da matéria que mata a alma.
Um mundo sem arte e poesia é um mundo sem beleza, ainda precisamos delas para sentir a poesia e arte da natureza. E a arte e a poesia estão povoadas de símbolos vivos, angélicas janelas que nos arrancam da prisão em que vivemos, e que nos permitem fazer na terra segundo a medida do céu, ou seja, criar verdadeiramente. É a questão de ser ou não ser, como nos disse Cícero, ou trazemos o céu à terra ou o céu nos é arrebatado, pois ficamos debaixo da terra e esta, como o sarcófago devora o corpo, vai consumindo os nossos mais vivos ideais e apagando a chama que os permite encarnar.
Que importa se o que vimos é anjo ou humano? Não são ambos (o verso e reverso) de uma mesma natureza? Não estão destinados, como figuram as cerâmicas gregas, a abraçar-se na eternidade? Os anjos — novo nome dos velhos deuses — existem e se nesta vida os nossos olhos não os veem, os da alma, através da imaginação, sim, e ainda a sensibilidade vibra como as harpas eólicas da Antiga Grécia, face à sua natural presença e mistério.