«Quem muda, Deus ajuda»
Provérbio Português
Escutemos a sua Litania a Satã
ORAÇÃO
Glória e louvor a ti, Satã, nas amplidões
Do Céu, em que reinaste, e nas escuridões
Do Inferno, em que, vencido, sonhas com prudência!
Deixa que eu, junto a ti, sob a Árvore da Ciência,
Repouse, na hora em que, sobre a fronte, hás de ver
Seus ramos como um Templo novo a se estender.
Este fim trágico daqueles poetas malditos, viu nascer o filho do titã Prometeu que desde o vale dos caídos desafiou a morte e, para além do bem e do mal, condenou, de forma implacável, a vã piedade do seu Deus soberano.
Nietzsche é um melancólico dionisíaco que acredita no poder libertador da vontade e do entusiasmo. O seu super homem é aquele que se recria a si mesmo, não espera o auxílio dos homens ou do céu, sobe sobre a sua própria cabeça para chegar mais alto. Este anseio de poder deixou-o de tal forma embriagado que sucumbiu à amargura da solidão e da incompreensão. No entanto, provocou um verdadeiro terramoto no seio das mentalidades vindouras. A influência de Nietzsche sobre a má consciência do Ocidente, tornou-se viral e deu lugar ao ceticismo moral e ao niilismo da modernidade.
«Pois a Verdade pura é a negação da vida, e a vontade de Verdade é uma vontade que leva à morte»
Pensamento de Nietzsche
O Niilismo, versus existencialismo, versus narcisismo, versus individualismo, acabou, de uma vez por todas, com a sua própria transcendência. Os ideais sociais de democratização da sociedade, fotografia invertida do princípio cristão da igualdade das almas frente a Deus, acabou por anular qualquer tipo de hierarquia de valores e, quando o homem perdeu a sua relação íntima com a sua vida interior, procurou-a no exterior.
Os três princípios maçónicos da revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade tornaram-se as grandes utopias do século XX. A exploração do homem pelo homem conduziu a guerras, ódios, genocídios, racismo e totalitarismo, da esquerda à direita, utilizando todos os recursos da ciência tecnológica para os seus fins maquiavélicos. As massas, cada vez mais alienadas pela promessa de um futuro melhor, tornaram-se submissas e vítimas das suas próprias reivindicações pois, como afirmava Platão, os tiranos só podem existir onde houver condescendência, aprovação e parceria com os mútuos interesses das suas vítimas. Assim, a Liberdade tornou-se libertinagem ou fuga à responsabilidade; a Igualdade, massificação e atrofiamento da capacidade reflexiva em prol da opinião pública; a Fraternidade, globalização dos interesses economicistas em detrimento das grandes desigualdades humanitárias. A psicologia que se propunha explorar os mistérios da alma humana ficou-se pela sedução do marketing de massa, e as artes da vida transformaram-se no mercado da diversão e do entretenimento. O individualismo tornou-se uma prenda armadilhada das democracias pois, com a ausência de exemplos e referências morais, ficámos incapacitados para escolher o melhor e, em geral, a única opção que sobra é a do mal menor.
O início do século XXI chamado de pós-modernidade leva à sina da mobilidade e da globalização; as conquistas da ciência e os avanços vertiginosos dos circuitos de telecomunicações produziram uma aparente euforia de abertura para o mundo; porém sentimos cada vez mais que vamos perdendo qualidade de vida devido ao hiperconsumismo que resultou na contaminação generalizada do nosso planeta. Nos Países abastados, erguem-se os novos santuários da religião “BIO”, enquanto mais de 850 milhões de seres humanos morrem, ainda hoje, de fome. Os mares tornaram-se depósitos de lixos tóxicos, autênticos cemitérios dos milhares de refugiados que morrem afogados em busca de uma vida digna. A sede de bem-estar e de segurança, num mundo cada vez líquido, enfraqueceu as relações humanas vividas agora em Zapping e no comodismo de uma solidão partilhada, via internet, onde a imagem substitui a vivência. A manipulação da informação, com as suas constantes suspeitas de conspiração, as encenações mediáticas e telecomandadas de descontentamento, fazem antever, no ar, um sentimento generalizado de que o futuro é incerto e que se deve viver, a qualquer preço, o presente e exclusivamente para si. Este sentimento de angústia existencial explica o aumento do uso de antidepressivos e a intensa busca por entretenimento como formas de afastar a sensação de mal-estar. O medo da dor, do risco, do outro, das deceções e confrontação com a impotência faz com que existamos sem nunca ser ninguém. Neste mundo acelerado que padece de “ativismo”, sempre pronto para correr em busca da última novidade do mercado tecnológico, surge uma nova forma de melancolia, a depressão, mal do século que é cada vez mais corrente entre os mais jovens de Países altamente capitalizados. Novas drogas vêm preencher o vazio existencial, a toxicomania substitui a necessidade de autotransformação. Ao sexo, drogas e rock and roll, acrescenta-se o prosac das fugas para longe, os videojogos e jogos de acaso e vertigem, a nomofobia ou dependência digital e o desporto, como último refúgio das massas, são usados como válvula de escape, ópio do povo.
As soluções que a Sábia Filosofia de vida propunha são antiquíssimas e universais, não têm custo, e só exigem um pouco de boa vontade e senso comum para sair da engrenagem de se sobreviver a qualquer preço. Aqui transcrevo algumas sugestões para a verdadeira mudança que tanto desejamos ver acontecer no mundo e que podemos ver acontecer já hoje, em nós mesmos:
O narcisismo que exclui: Trate-se com o desejo sincero de cultivar os valores humanos, começando pelo cultivo de si mesmo, porque o desejo de melhoramento interior rasga as fronteiras do eu egoísta e exclusivo e permite o reencontro harmonioso com o outro.
O medo que paralisa: Trate-se com ações generosas que fortificam e nos obrigam a sair da nossa zona de conforto, enfrentando o desconhecido. Então, as dificuldades encontradas nas vivências reais ajudarão a superar os nossos limites e expandir a nossa consciência.
O descomprometimento que foge e relativiza: O compromisso é um sentimento de restituição e fidelidade com aquilo que está em concordância com a nossa consciência. O verdadeiro compromisso é pensar e viver de acordo com os valores que a nossa alma reivindica como modelo de dignidade e justiça para todos. Fazer o Bem é um dever que a vida nos reclama, porque o propósito da nossa evolução é recuperar o estado de pureza que fomos perdendo quando fizemos da nossa terra um inferno em vez de um paraíso.
A desconfiança que nos isola: O inimigo não está fora, está sempre connosco. Devemos reaprender a cuidar da nossa mente, dos nossos pensamentos e emoções com tanto zelo como cuidamos do nosso corpo; a fragilidade interior, as dúvidas trazem a insegurança e o medo do outro. Contudo, nada nem ninguém pode prejudicar aquele que vive virtuosamente pois, como ensinava Buda, «Nenhum veneno pode penetrar na mão que não tenha ferida.»
O vazio que nos deprime: “Tornamo-nos naquilo que contemplamos”, afirmava o Sábio Plotino. A imaginação pode recrear a beleza e restaurar o nosso equilíbrio interior, as artes comovem a alma e fazem vibrar as cordas do nosso coração. Temos que reaprender a olhar para o mundo com a luz da nossa inteligência, para que nunca nos escapem as respostas que a vida espalhou debaixo dos nossos pés, e amar e viver cada dia com a inocência daquele que está sempre pronto para reaprender e descobrir que o importante é sempre invisível aos olhos e que, afinal, não sabemos nada de nada enquanto não abrimos o nosso coração.
A indiferença que desvaloriza: Temos que voltar a ver o mundo com os olhos da nossa criança interior que se espanta e se alegra com a descoberta, dando valor às pequenas coisas, e fazer com que que elas brilhem como estrelas na terra, porque o seu verdadeiro valor está na grandeza de alma que lhe atribuímos.
O desespero que fecha a porta ao futuro: Falta-nos ainda recuperar e interiorizar os ensinamentos daqueles que se tornaram estrelas na terra e iluminaram, com o seu exemplo, as nossas vidas. As virtudes são escadas para o céu, lugar de paz que teremos de cultivar, primeiro no nosso coração, inspirando-nos nas três grandes virtudes cristãs: a fé que nunca nos abandona porque ela é a força da vontade que acredita que todo o mal que possa afligir a nossa personalidade traz sempre algum bem à nossa alma imortal; a esperança que Pandora, a Eva ou mãe natureza, conseguiu salvar do cofre de ouro, que os deuses lhe entregaram, é a prova do amor que sabe ter paciência porque nunca duvida que tempos melhores virão, se formos capazes hoje de colocar a primeira pedra desta ponte que liga o passado com o futuro e, então, poderemos, com caridade, servir com inteligência, dando o nosso melhor, agradecendo à vida a oportunidade de termos exemplos para seguir, e motivos para restituir com o Bem o mal praticado.
Termina aqui esta reflexão sobre a melancolia que, com certeza, continuará a visitar-nos nesta nossa maravilhosa e grandiosa aventura na Terra. Nesta travessia marítima, pelos nossos mundos interiores, para além das fronteiras do reino do sombrio Saturno, e dos seus anéis que aprisionam as reminiscências das nossas almas, abre-se uma outra dimensão para a consciência, um novo céu onde Urano, o Senhor da mudança e da renovação, esperam o homem novo que verá nascer a tão esperada idade da reconciliação entre o Espiritual e o material porque, como dizia Oscar Wilde, «A alma nasce velha no corpo para rejuvenescer o corpo que envelhece.»
Imagem de destaque: A Descida aos Infernos, Tintoretto. Domínio Público.
Françoise Terseur