«Quem muda, Deus ajuda»

Provérbio Português

”Nunca menos do que hoje, tiveram os tolos um valor inestimável,

Porque os sábios enlouqueceram,

E não sabendo mais como exibir sua mente,

Começaram a imitar os tolos.”

O rei Lear e o louco, William Shakespeare

 

No fim do século XVI e início do século XVII, a Contra Reforma anuncia o regresso do poder religioso. A alma do Barroco é uma reação à austeridade do protestantismo, a necessidade de uma vida sensível que traga a este período, cheio de contradições, uma aura patética, musical, onde o espetáculo contracena com o virtuosismo, a subida ao calvário do Cristo redentor. Debaixo do seu fausto dourado e louvor místico, esconde, no entanto, o rosto negro da inquisição liderada pela Companhia de Jesus que irá levar o símbolo da cruz às novas terras conquistadas. Numa última tentativa de erguer o império da fé sobre um mundo cada vez mais voraz de poder, jorram as lágrimas de Maria Madalena, imagem agora sublimada da redentora melancolia.

Maria Magdalena, Tintoretto. Domínio Público

Na Holanda, país predominantemente protestante, a melancolia assume a forma de suas famosas ”Vanitas”, pinturas muito populares  que representam o  vazio da existência terrena, considerada vã, precária e sem valor: MEMENTO MORI (lembre-se que todos iremos morrer).

De todos estes objetos, o crânio humano é um dos mais recorrentes. Mas também, frequentemente, encontramos a vela parcialmente consumida (a luz da vida que vai apagar-se), a ampulheta ou o relógio (o fim que chega de forma inexorável), a bolha de sabão (a futilidade da vida), as flores murchas (a decrepitude de tudo aquilo que nasce).

Vanitas, Antonio de Pereda, 1634. Domínio Púlico

Infelizmente, o faustoso Barroco da primeira metade do século XVII revela, entre os fogos-fátuos do rococó, o seu lado noturno e sombrio, através dos perigos da noite com os excessos da taberna, as extravagâncias carnavalescas, a celebração dos prazeres dos sentidos, a miséria e a mendicidade, último ato do teatro burlesco onde a inconstante melancolia aparece revestida da máscara da precariedade.

O Iluminismo do século XVIII marca o derradeiro combate entre o físico e o metafísico.  Após o «To be or not to be, that is the question» o Ser ou não Ser de Hamlet, surge «Eu penso, logo existo», de Descartes. No horizonte crepuscular deslumbram-se as últimas núpcias entre o céu e a terra que entoam, com o seu canto de cisne, a sublime apologia da Ética transcendental que o filósofo Immanuel Kant resume com estas palavras: ”O céu estrelado em cima de mim e a lei moral dentro de mim.”

Neste século de luz, governado pela “docta” razão que rotula e categoriza, já não se trata de contemplar o mundo, mas sim de o transformar de forma empírica.

Com a sua anatomia da melancolia, o pastor Robert Burton coloca novamente o humor negro nas categorias patológicas de tendência maníaco-depressiva ou psicose mórbida que só o amor de Deus pode salvar. Inicia-se a revolução mecanicista que dará lugar à sociedade industrial do século XIX. A angústia existencial, resultado do determinismo racional, a revolução Francesa e os seus Ideais liberais deram por derrotados os antigos Ideais de confluência entre o Divino e o Humano, anunciando-se o crepúsculo dos deuses e o advento do culto ao indivíduo. O estudo enciclopédico da história, alicerçado no pensamento de Darwin, assinala a supremacia do animal racional como topo da pirâmide evolutiva. O positivismo de Augusto Comte e o empirismo de Hume declaram a impossibilidade de passar além do fenómeno, pois só podemos conhecer as realidades observáveis.

Mas os dias também têm as suas noites e, se o sonho comanda a vida, é nas profundezas da alma humana que irão deambular os grandes sonhadores do Romantismo. O revivalismo do século XIX recuperou, na alma da mãe natureza, as asas quebradas do anjo negro da melancolia, agora chamada de “Spleen” (do inglês humor negro).

Esta melancolia lírica com entoação noturna é acompanhada da lira de Orfeu e do seu lamento para resgatar a sua alma gémea, Eurídice, símbolo da alma natureza que a doce Ofélia substitui através do sacrifício da sua vida.

Ofélia, John Everett Millais. Domínio Público

Eros e Tanatos, amor e morte, encarnam o pathos predileto dos heróis do romantismo. Para os artistas Pré-Rafaelitas a saga medieval de Tristão, o cavaleiro do triste destino e da sua amada Isolda, constitui o tema de inspiração do amor eterno que vence a dor e a morte.

«Um só ser vos falta e encontrar-vos-eis despojado.»

“Isolamento ” – Lamartine

Entre a nostalgia do além e o naufrágio num mar de gelo, ficaram em suspenso os sonhos saudosistas dos Românticos, deixando para tempos vindouros uma antevisão do céu. Porque voar não basta e, tal como no mito Grego de Ícaro, as suas frágeis asas de cera queimaram-se no fogo das suas próprias paixões, arrastando as suas almas para o inferno abismal do ópio e do absinto. Então, as flores do Mal, de Baudelaire, cobriram de uma púrpura desolação as vozes dos incautos sonhadores de Morfeu.

Imagem de destaque: Rei Lear e o Louco do Ato III, Cena II do Rei Lear. Creative Commons

Françoise Terseur