«Quem muda, Deus ajuda»
Proverbio Português
Os planetas que na astrologia tradicional interagem com a vida na Terra, influenciam todos os processos de desenvolvimento da matéria cósmica que, no laboratório da ciência alquímica, é associada ao chumbo ou matéria negra. Esta pedra filosofal sofre as dores do parto para resgatar a sua essência espiritual, pura Luz incolor que irá insuflar a alma caída na negrura da terra saturnina, o esplendor da sua coroa solar.
No pensamento Platónico, a Psiquê ou alma é o agente mediador mercurial entre o Espírito e a Matéria e possui lembranças, reminiscências da sua origem celestial. Quando cansada de identificar-se com as sombras do mundo fenomenal, mutáveis reflexos do imutável, a alma busca então voltar-se para a Verdade, dissipando para sempre o mundo ilusório onde permaneceu acorrentada pelos próprios desejos de vida separada. A falta desta permanência na Verdade traz à alma uma sensação de carência (Penia) que a leva a escolher livremente afastar-se, pouco a pouco, do mundo fantasmagórico onde o prazer e a dor coabitam. Movida pelo desejo de satisfação e de saciedade (Poros), procura então desenrolar o fio do casulo onde ela própria se encarcerou.
Hoje é reconhecida a importância que o Oriente teve sobre a formação do pensamento Ocidental que, desde tempos remotos, orientava a sua busca espiritual através do Yoga, caminho de unidade e libertação. O contacto que os Sábios e Filósofos Gregos tiveram com as grandes culturas e civilizações do Médio Oriente confirmam a transmissão ininterrupta dos grandes mistérios da evolução da alma humana. Em correspondência com a tradição da Sabedoria Antiga, o sistema solar é uma célula microscópica do Macro Universo. O planeta Saturno, último escalão do nosso sistema septenário planetário, era considerado o guardião dos limites e por isso também associado ao elemento terra. Por esse motivo foi atribuído o nome de Filhos de Saturno a todos aqueles que se atreviam a querer libertar-se da influência da temporalidade.
Estes filhos de Saturno, escavadores do seu mundo interior, sujeitavam-se a uma vida de retiro, incompreendidos por aqueles que se preocupavam mais em erguer novas montanhas em prol da sua glória e poder terreno. Muitas vezes foram perseguidos pela sua recusa em conformar-se com determinados moldes de pensar e agir. Por isso escolheram afastar-se da trivialidade do mundo, ou ocultar o seu trabalho numa linguagem mistérica e codificada, utilizando para isso os símbolos, tais como números, ideogramas, formas geométricas e alfabetos sagrados, como a cabala hermética e fonética, astrologia, química oculta ou alquimia.
Obedecendo à Lei dos Ciclos, em que o nascimento de uma civilização teve invariavelmente o seu declínio, sucedem momentos de expansão e contração. Cada período de mudança, a que atribuímos o nome de crise, traz um retorno da morosa melancolia. Cada ser humano tem também os seus ciclos de altos e baixos, alternando-se momentos de auge e crescimento e momentos críticos de insatisfação. É nestes momentos que regressa a saturnina introspecção, onde a solidão e o desencantamento impregnam o nosso humor de negros pensamentos.
Plotino, o grande Mestre do ascetismo contemplativo e orientador da escola Neoplatónica de Alexandria (Século III depois de Cristo), dizia o seguinte: «Foge só para o SÓ». Para Plotino, a alma deve aprender a conhecer-se através do espelho da sua consciência que tanto pode refletir o céu, a dimensão divina, como a terra, dimensão da temporalidade. Para o Mestre, a contemplação do Imutável Bem traz à alma a eterna consolação.
O declino do mundo clássico, até aos finais da Idade Média, arrastou o mundo para um ambiente de desolação e fuga. Impregnada de uma atmosfera sulfurosa e apocalíptica, com as suas imagens do inferno e do pecado, numa sociedade analfabeta supersticiosa e sufocada pela pobreza e o medo, e à qual só restava a esperança da salvação, comprada com as indulgências que asseguravam um lugar seguro no céu.
No século XII a abadessa beneditina Hildegarda de Bingen, retrata a melancolia de forma arrepiante:
«O melancólico é verdadeiramente uma criatura caída que carrega consigo todos os vestígios de sua negritude: desde o próprio sopro da cobra, os melancólicos, cujos cérebros são gordos, […] têm uma tez escura no rosto, de tal forma que até mesmo seus olhos estão inflamados como víboras, e eles têm veias firmes e grossas que contêm sangue negro e espesso, e têm carne espessa e firme, e ossos grossos que contêm pouca medula que, no entanto, queima tão forte que com as mulheres são desenfreados, como animais e víboras […].»
No Renascimento, época dourada do Humanismo do Saber e do livre pensamento, Marsílio Ficino, filósofo e profundo estudioso das ciências herméticas, recomendava, na sua magnifica obra “Da Vita” o elixir do amor e da beleza, poder mágico e inspirador que a Deusa Vénus concedia aos artistas, para curar o saturnismo melancólico que subjugava as almas sedentas de saber. O Renascimento trouxe ao homem um novo alento e entusiasmo para a exploração dos mistérios da natureza. O seu amor pela descoberta permitiu a abertura de novas rotas marítimas e frutíferos contactos com outras culturas. A rota da seda, os contactos com a China, o Mundo Árabe e o Islão, introduziram, todas elas, um manancial de novas descobertas científicas e tecnológicas que tiveram um impacto incalculável no desenvolvimento das sociedades, na economia e na cultura. O poder dos senhores feudais é então substituído pela aparição de uma nova classe social, a burguesia, minoria abastada e sequiosa de prestígio que, com o seu mecenato, irá investir e apadrinhar os artistas, proporcionando assim a criação de tantas e tantas obras de uma beleza incalculável.
Naquele século de ouro, a melancolia é combatida com a criação de obras talismãs impregnadas de símbolos e benignas influências: Adão volta a tocar o dedo de Deus; Vénus, a inspiradora Deusa do Amor, consagra a Primavera de Botticelli; Dionísio, o Deus do Vinho, renasce mais uma vez no quadro de Bacus, de Leonardo da Vinci; e o Divino Mensageiro, Hermes ou Mercúrio, aponta novamente a direção com o seu São João Baptista; Júpiter, o Deus benfeitor e jovial, consagra o quadrado mágico de Durer; o deus Marte, a espada da Lei, liberta os furores divinos do monge iluminado Giordano Bruno. Enfim, toda uma pléiade de obras primas do Génio humano alicerçadas na mais pura tradição perene e que, aliada às forças vivas do Cosmos, conspiraram para resgatarem o fogo de Prometeu.
Enquanto que os mestres do primeiro Renascimento se preocuparam em recrear a Natureza como espelho do Divino Arquiteto, através do aperfeiçoamento das técnicas de perspetiva e do uso da linguagem de símbolos universais, os Maneiristas vão tentar imitar e rivalizar a arte dos seus antecessores, utilizando a matéria como objeto da sua criação. Pela primeira vez, os artistas insinuam-se nas suas obras, retratam-se pintando ou escrevendo; daí o gosto pelos espelhos e encenação à volta de uma arte que fala apenas: “di maniera” à maneira de cada um. Confrontados com a triste melancolia da sua impotência, face ao génio criador dos grandes mestres renascentistas, os artistas maneiristas tentaram provocar surpresa pela novidade, pelo inesperado, pelo inédito.
No século que se segue, um novo terramoto social abala o plácido poder da Igreja. A Reforma, consequência da degradação dos brandos costumes do Clero, volta a trazer uma profunda crise social. No Norte, Lutero, porta voz do futuro protestantismo, clama o regresso da fé sem adornos. Para o monge, a melancolia ou Acídia, muito frequente na vida monástica, é um vício das almas fracas, obra do diabo, flagelo dos ociosos. Este regresso às origens do Cristianismo tem o seu reflexo nos escritos de Evágrio Pôntico, escritor, asceta e monge cristão do século IV que traçou as principais doenças espirituais que afligiam as comunidades monásticas e que são os oito males do corpo: a soberba, a avareza, a inveja, a ira, a luxúria, a gula, a preguiça e a acídia, ou tristeza.
Pensamentos 14 – Evágrio Pôntico
Ao ler, alguém com acídia boceja profusamente e adormece com facilidade. Ele esfrega os olhos, estende os braços e, depois de tirar os olhos do livro, considera a parede; então ele recomeça a ler um pouco; ele folheia o livro para ver quando o texto termina e assim desperdiça seu tempo; ele então conta as páginas, calcula o número de cadernos; ele critica a escrita e a ornamentação; finalmente ele fecha o livro, coloca-o sob sua cabeça e adormece em um sono que não é profundo.
O século XVI traz um novo vento de liberdade, audácia e exuberância que irão incrementar profundas mudanças sociais que marcaram profundamente a sociedade e o mundo, em plena expansão e descobertas marítimas. Com a afirmação dos Estados e o crescimento económico, assim como as conquistas de novas colónias, surge a necessidade de uma nova administração do poder, alicerçada numa centralização cada vez mais apertada, que irá transformar o vertiginoso sonho renascentista do homem feito à imagem de Deus, no homem agora mero sujeito, obediente e dependente da Lei dos homens.
O amor platónico de outrora despe-se de pudor e assume o seu gosto pela ostentação de objetos luxuosos; a vida palaciana e os seus jardins requintados dão lugar à doce melancolia dos deleites amorosos; o amor, a paixão e a morte são a trilogia do teatro trágico-cómico de uma época profundamente perturbada e sublimemente retratada nas obras de Shakespeare e Cervantes que, sob o véu irónico de uma melancolia enlouquecida, apontam as fragilidades da alma humana transfigurada na figura do sábio louco que serve como escudo de proteção contra um mundo de valores invertidos.
Imagem de destaque: Nascer do sol, Claude Monet. Domínio Público.
Françoise Terseur