«Quem muda, Deus ajuda»
Provérbio Português
«Não esperes por uma crise para descobrir o que é importante na tua vida»
Platão

Vivemos tempos de incerteza e de vazio, tempos difíceis que anunciam profundas mudanças para os próximos séculos. Todos os dias nos cruzamos com esta sensação de insegurança e de mal estar, ainda mais acentuado com o difícil confinamento causado pela pandemia do coronavírus. A tomada de consciência da nossa vulnerável existência obriga-nos a parar o ritmo frenético das nossas fugas para a frente, sempre à espera da tão desejada felicidade temporal, ilusão reinventada pelo materialismo secular responsável pela alienação global do ter em desfavor do ser. Curiosamente, é nestes períodos de crise que volta a aparecer a sombria melancolia, companheira do taciturno planeta Saturno que, na astrologia tradicional, caracteriza o tempo que tudo desgasta. A visita cíclica nas nossas vidas deste gigante planetário, de movimento lento, aureolado de nebulosos anéis, convoca a tempos de reflexão e pausas para a realização das mudanças necessárias para a renovação estrutural do devir humano. A trajetória da vida não é linear, pelo contrário, tem avanços e recuos, momentos altos e baixos, em que a obscuridade e a luz auxiliam no movimento pendular do relógio cósmico. Na luta dos opostos, na fricção constante dos átomos que produzem todos os fenómenos, intercalam-se a vida e a morte, o bem e o mal, o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, estados transitórios que, progressivamente, conduzem ao derradeiro ponto sem retorno do equilíbrio, embrião eterno e indestrutivo onde tudo converge.

Saturno. Dawn Hudson. Domínio Público

Neste oceano de vibração sonora, existem intervalos de silêncio capazes de interromper temporariamente a marcha dos acontecimentos, de forma semelhante aos misteriosos buracos negros, portais para o desconhecido. Na alma humana, também existem momentos onde o Anjo negro da melancolia nos vem visitar para nos proporcionar a oportunidade de realizar uma autêntica catarse e purificar o nosso coração. Aristóteles falava da Catarse como o reconhecimento e aceitação de verdades dolorosas.
Aristóteles, Problema XXX:

«Porque todos aqueles que eram excepcionais na filosofia, na política, na poesia ou nas artes eram obviamente melancólicos, alguns a ponto de contrair doenças causadas pela bile negra, como Hércules nos mitos heroicos? […] Muitos outros heróis parecem ter sido afetados pela mesma afeção; entre os mais próximos de nós surgem os casos de Empédocles, Platão, Sócrates e um grande número de personagens célebres, além da maioria dos poetas.»

A transformação exige que tenhamos coragem e fortaleza para identificar os domínios em que sentimos fragilidade e vulnerabilidade. Os alquimistas chamavam a esta etapa o nigredo ou mortificação, porque não pode haver renovação sem deixar para trás os velhos motivos das nossas desilusões e sofrimentos. Todos nós sabemos como é fácil falar de renovação e mudança quando estas não nos tocam diretamente mas, quando estamos a atravessar a nossa própria crise, resistimos com todas as nossas forças para não termos que a confrontar e trava-se então uma terrível luta interior.

A Noite Estrelada, 1889. Vincent Van Gogh. Domínio Público

Muitos dos nossos desencantamentos nascem da perda do objeto desejado. Freud dizia que devemos aprender a libertar-nos do apego ao objeto do desejo, em vez de nos culpabilizarmos e mortificarmos virando a dor contra nós mesmos. Na tradição filosófica grega o Thymos representava o sentimento de dignidade e de respeito por si mesmo que, quando contrariado, se manifesta através da cólera e do ressentimento.
Platão, na República, definia a divisão tripartida da alma no seguinte: a cabeça corresponde à razão, o coração à coragem e o ventre aos desejos. O verdadeiro trabalho interior consiste em não fugir da confrontação, alienando-nos da realidade, mas antes em restabelecer o alinhamento entre o Céu, a nossa dimensão espiritual, a terra, nossa dimensão material e o nosso coração, lugar de reencontro e de harmonização entre o pensar, o sentir e o agir. Na mesma linha de pensamento, Buda anuncia, no seu Nobre Caminho Óctuplo, os seguintes oito passos para a realização da libertação do sofrimento: compreensão justa, intenção justa, palavra justa, ação justa, meio de existência justa, atenção justa, esforço justo e concentração justa.

Buda. Domínio Público

Atualmente, atravessamos um período crítico que se caracteriza pela substituição da dignidade humana e do autodomínio pela dinâmica materialista da ganância e avidez, em que o indivíduo é arrastado pela própria tirania de seus desejos, cada vez mais acentuados pelo consumismo desenfreado, como diz o refrão da canção: “quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga”. Sendo o thymos associado à determinação e ação corajosa, a melancolia torna-se o seu reverso, o descontentamento, a inação, o descomprometimento e a perda de fortaleza interior.
A longa história da melancolia e sua constante reaparição no palco da alma humana requer que procuremos saber um pouco mais sobre ela. Durante séculos, médicos, filósofos e teólogos detiveram-se no estudo das interdependências das influências entre o Macro e Micro Cosmos.
Hipócrates, filósofo grego do século V a. C., foi o primeiro a formular uma teoria do temperamento, baseando-se na teoria dos quatro elementos de Empédocles. Segundo o sábio médico, existem quatro tipos de temperamento, conforme domine no corpo do indivíduo um dos quatro fluidos corporais (humores): sanguíneo (sangue), fleumático (linfa ou fleuma), colérico (bílis) e melancólico (Astra bílis ou bílis negra). Cada um deles possui uma determinada característica e, por analogia, temperamento, substância, elemento, estação do ano, período da vida, planetas, etc.

Hipócrates, 1787. Morgado de Setúbal. (Museu de Évora). Domínio Público

1- Sanguíneo-Sangue, Ar, Primavera, Infância, Júpiter
2- Colérico-Bile amarela, Fogo, Verão, Adolescência, Marte
3- Melancólico-Bile negra, Terra, Outono, Maturidade, Saturno
4- Fleumático-Fleuma, Água, Inverno, Velhice, Lua

Em sua origem grega, a palavra melancolia significa bile negra: “melas” (negro) e “kholé” (bile) que corresponde à tradução latina melaina-kole. É uma tristeza vaga, permanente e profunda, que leva o sujeito a sentir-se triste e a não desfrutar dos prazeres da vida. Este estado de alma, também chamado de “mal sagrado”, estava associado aos filósofos que, na sua busca do significado da vida, sentiam um vazio existencial. A proposição atribuída a Aristóteles levou à compreensão de que existiria uma ligação entre a postura melancólica e o pensamento contemplativo necessário para a filosofia. O humor melancólico tornou-se, então, um sintoma dos grandes pensadores, aqueles filósofos que, na eterna busca pelo conhecimento e enfrentando as limitações da mente humana, caíram em estado de melancolia. Este humor seria regido pelo planeta Saturno. Marsílio Ficino, filósofo Neoplatónico do Renascimento, associava a Bile negra ao centro da terra que induzia a alma a pesquisar e descer ao centro das coisas singulares, elevando a sua compreensão humana a uma realidade mais alta. Platão chamava à melancolia “um furor Divino” que faz a alma sair de si, em busca de um caminho espiritual.

São João da Cruz, 1599. Francisco Pacheco. Domínio Público

São João da Cruz, o místico monge carmelita, chamava ao primeiro degrau da descida da alma em si mesma de “noite escura”
«Em uma noite escura,
Com ânsias, em amores inflamados
Oh ditosa ventura!
Sai sem ser notada,
Estando a minha casa sossegada.»

Imagem de destaque: Melancolia, 1892. Edward Munch. Domínio Público.

Françoise Terseur