Este texto de José Carlos Fernández foi inspirado na fotografia acima de Pierre Poulain, fazendo parte de um projeto intitulado FiloFoto.
Quando no Génesis, Deus ordena ao homem “Crescei e Multiplicai-vos” não sabemos se nesta ordem estava implícito que multiplicássemos só pela carne e pelo sangue, ou também nas obras que saíssem das nossas mentes e mãos, em toda aquela criatividade que a própria quintessência, não só da arte, mas também da ciência, da política e ainda da religião, cujas formas de culto ao Espírito Universal nascem do mais profundo da sua alma.
O que são as máquinas, senão uma “nova espécie” destinada a auxiliar o ser humano na sua ocupação diária? Um prolongamento dos nossos braços, e pernas, dos nossos olhos e ouvidos e ainda do nosso cérebro, como na ciência da computação. Chegará a Inteligência Artificial a dar suporte e substituir a própria chama do génio, dotando de vida anímica, liberdade e “instinto de sobrevivência” estas mesmas máquinas, que se podem voltar contra o seu criador, ao senti-lo indigno de ser seu amo e senhor? A “rebelião dos artefactos” presente nas tradições antigas de numerosos povos (por exemplo, no Popol Vuh Maya ou no Livro dos Cinco Sois Azteca), ou tantas vezes no cinema moderno, do qual uma pegada indelével é a saga de Terminator, ou a de Matrix; menciona como as legiões de máquinas, filhos legítimos da tecnologia — mas bastardos do ser humano? —, diziam enfrentar e destruir uma humanidade que já nem se suportava a si mesma, esquecida de tudo aquilo que dá um verdadeiro sentido à vida. Por outro lado, podemos negar aquilo que facilita a existência, que a faz sair da escravatura do bruto, da mente vazia e desesperada sempre pelo alimento e procriação? É moralmente lícito (quiçá por temor a um mal uso, ou a um abuso) opormo-nos a um progresso que nos liberte, ao menos aparentemente, do inexorável determinismo das leis físicas? O homem não pode voar por natureza, mas fá-lo por criatividade, com um avião por exemplo; não pode correr como um guepardo, por natureza (nem como um guepardo nem como uma lebre), mas fá-lo, ajudado com os “filhos” que a sua mente e mãos criaram; o homem não pode viver como uma tartaruga marinha, mas chegará…
Sábia, profunda e oportuna a reflexão do professor Jorge Ángel Livraga (1930-1991): “As máquinas foram uma libertação para a humanidade, constituem uma legítima conquista e não tem sentido renunciar a elas. Não devemos ver as máquinas como monstros incontroláveis nem como um vício da humanidade, mas como uma nova modalidade de animais que colaboram na marcha da Natureza”.
Também sabemos que aquilo que não é bem usado, segundo as regras da Harmonia Universal, volta-se contra nós, pelo menos temporalmente, e que o conhecimento profanado se dilui, se esquece e se perde… para ser reencontrado, agora sim naturalmente, ou seja, na sua forma e momento próprios.
Um filósofo francês há vários séculos disse: “Penso, logo existo”.
Se pudéssemos, nesta fotografia, dar voz à paciente e serviçal mota, que espera na rua, diria quiçá ao rabino: “Desconfia, mas agora vês-me, pensas em mim, logo existo” ou melhor ainda “Sirvo, logo existo”. Aquele que a ninguém nem a nada serve, existe?