“As coisas que passam ficam vivas para sempre numa história escrita” [1]
“É uma intenção, uma revelação de beleza. Sofia Andresen escreveu o seu mundo e o mundo que lhe entrou pelos seus olhos extasiados, tudo fundido naquele ritmo de música e dança, de harmonia clara que é para ela uma exigência e um estilo” [2]
Há alguns meses cumpriu-se o centenário do nascimento da ilustre poetisa Sophia de Mello Breyner, o seu busto contempla desde o Miradouro de Santa Graça em Lisboa, a paisagem urbana e o rio que contemplou da sua casa a autora de “A Menina do Mar”, e os seus restos mortais repousam no Panteão Nacional raríssimo privilégio concedido a poucos. As suas obras são reeditadas e a Fundação Gulbenkian em Lisboa, dedicou um congresso à sua figura. É a primeira mulher a ganhar o prémio mais importante da literatura portuguesa, o Camões, em 1999, pelos seus livros de poesia, pelos seus ensaios sobre a poetisa Cecília Meireles, e o nu na arte grega, mas acima de tudo, pelos seus contos, os exemplares para adultos[3] e os infantis que têm feito a delícia de três gerações: A Menina do Mar (1958), A Fada Oriana (1958), Noite de Natal (1959), O Cavaleiro da Dinamarca (1964), O Rapaz de Bronze (1966), A Floresta (1968), O Tesouro (1970) e A Árvore (1985).
Este último, por exemplo, é talvez um dos tratados ecológicos para crianças mais belo e evocativo, mais filosófico, simples, claro e cheio de vida jamais escrito. Como é fácil entender o símbolo da Árvore da Vida e até mesmo o da cultura que nos une e nos ampara, nestas breves linhas!
Sendo das famílias mais nobres e ricas de Portugal, rejeitou uma herança de direitos adquiridos e inclinou-se a amar e a entregar-se aos desprotegidos. Com educação católica, renegou as alianças da Igreja com o poder político e o seu cristianismo tornou-se universal: “amar o próximo como a ti mesmo”, e Deus deixa de ser um totem ou o frio objeto das investigações teológicas e a sua presença é evidente na respiração da Alma do Mundo, na luz e no mar.
Abandona a universidade, Estudos Clássicos, nas primeiras horas ou semanas de aulas e forja na sua juventude uma cultura notável e vivida a partir de leituras e conversas com os melhores poetas (Miguel Torga e Teixeira de Pascoaes, entre outros) e os melhores humanistas do seu tempo, especialmente o Padre Manuel Antunes. Traduz, entre outros textos, cenas da Metamorfose de Ovídio, o Purgatório de Dante, Medeia de Eurípides e do Hamlet de Shakespeare. Abandonou a paz pacata e protegida da sua condição social e económica e tornou-se numa defensora dos protestos contra o regime já decadente do Estado Novo de Salazar, escrevendo um poema que logo foi uma canção que eletrificou a sociedade, “A Canção da Paz” que começa com o verso “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Embora rapidamente discordasse da política e ainda mais da demagocracia que via inundar a pátria amada como um cancro imparável, uma maldição, como vemos hoje, para as gerações vindouras. Mas nos anos 60, a sua casa é um verdadeiro ninho de subversão e de revolucionários culturais, aí se encontram muitos dos que mais tarde seriam as figuras mais importantes da política, entre eles Mário Soares, que seria seu amigo e que respeitaria a poetisa quase com reverência. O seu marido, o advogado Francisco Sousa Tavares era um verdadeiro Quixote de causas justas, sem medir riscos nem esforços para proteger os outros das iniquidades. Como ela mesma diria na dedicatória de “Contos Exemplares”:
“Para Francisco, que me ensinou a oração e a alegria do combate desigual“
Dedicar-lhe-ia depois um poema que se converteu também mais tarde numa canção famosa.
Porque[4] os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
E se quando criança brincou com os espíritos da natureza, com gnomos, fadas e ondinas – isto é o que deduzimos ao ler os seus contos – e na sua educação, o cristianismo a ensinou a amar os simples e os pobres, o contato com a Alma Grega despertou a sua como uma joia iridescente. As obras de Homero, de Safo, dos trágicos e dramaturgos, especialmente Eurípides, com o beijo do seu cálido amor despertaram a sua alma de Bela Adormecida e a consagraram à Beleza e à Harmonia. A leitura de Minha Vida, de Isadora Duncan, com a qual ela se deve ter sentido identificada, deixou tal impacto nela, que num pequeno documentário[5] de TV realizado em 1969, a sua filha diz na frente da câmara[6]:
“Não faz sentido falar de Isadora Duncan, porque ninguém pode entender o tipo de relação que entre ela e a minha mãe desde cedo existiu. Mesmo que o entendessem, não têm nada com isso, porque a verdade sobre uma pessoa não é um espetáculo”…
Neste mesmo documentário também diz a sua filha que:
“Toda a vida me lembro de ter visto a mãe a dançar quando nós éramos pequenos. Constantemente a mãe dançava e punha flores na cabeça e fazia passos de dança, e ao mesmo tempo falava sozinha pelos corredores fora.”
Este documentário, que é genial na sua beleza e simplicidade, termina com dois dos versos, lidos pela própria Sophia, que mais caracterizam a alma desta poetisa:
“Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar”
Depois de criar os seus cinco filhos, viajou várias vezes até à Grécia, uma delas com a escritora Agustina Bessa Luís. Fruto deste encontro com a luz e o mar grego e as pegadas desta civilização é o capítulo Mediterrâneo do seu livro de poemas Geográfica, que no seu poema Acaia, começa com estes versos enigmáticos:
“Aqui despi meu vestido de exílio
E sacudi dos meus passos a poeira do desencontro.”
E várias páginas mais tarde no poema em prosa Epidaurus:
“Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos. Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é circular. Mas de súbito verás que é um homem que traz em si próprio a violência do toiro.”
Sim Sophia, se ontem com a Alma Grega, hoje funde-se a tua alma, com a Alma de Portugal, como um murmúrio de rio nos seus jardins, como chuva nas suas planícies e baldios, como nereida no seu mar de águas bravas e insondáveis, como um verso em letras de fogo e êxtase escrito no livro da sua História. E se como dizia Platão, as lágrimas são o sangue da alma, és já sangue do nosso sangue, como a Árvore da Vida de uma ilha distante que em teu conto escreveste.
José Carlos Fernández
Escritor e Diretor Nacional da Nova Acrópole Portugal
Anotações
[1] Do conto “A Floresta”
[2] Escrito pelo seu marido Francisco Sousa Tavares, referindo-se à poesia de Sofia
[3] Em “Histórias da Terra e do Mar”
[4] Há uma canção muito bela de Francisco Fanhais com esta letra
[5] No documentário Sophia de Mello Breyner Andresen de João César Monteiro 1969
Há vários documentários, mas recomendo da poetisa, prémio Príncipe das Astúrias de Poesia Ibero-americana no ano 2003:
“Sophia, na primeira pessoa”
“Sophia de Mello Breyner Andresen. O nome das coisas”
“Sophia de Mello Breyner Andresen em entrevista à Emissora Nacional em 1974”
“Navegações”
[6] O impacto da leitura do livro “Minha Vida” de Isadora é uma dedução, pois não pode haver relação epistolar, dadas as idades; e não me parece que encontro pessoal, pois a famosa dançarina, sacerdotisa também da luz e da alma grega, morreu em 1927, e a poetisa nasceu em 1919.