Com Poussin, o pintor filósofo dá a sua grandeza ao Homem. A grandeza deixa de estar submissa à vontade divina.
Nicolas Poussin (1594-1665), pintor na corte de Luís XIII em 1640-1642, é um grande representante da arte clássica francesa do século XVII. Fascinado pela Itália, ele passou grande parte da sua vida em Roma. Na península, adquiriu esta sabedoria da Antiguidade que exprimirá nas suas obras; o estoicismo, em particular, fascinou-o verdadeiramente. A sabedoria foi reforçada pelas leituras de Montaigne, em casa de quem ele estava muito presente. Todos os seus quadros testemunham uma fé intelectualizada e perfeitamente serena. Se Philippe de Champaigne[1], seu contemporâneo, é um pintor místico, Poussin é um pintor filósofo, pois quer esclarecer intelectualmente a religião através da sabedoria antiga, da qual o cristianismo é o herdeiro.
Consciência do seu valor
É em 1650 que Nicolas Poussin faz o seu autorretrato a pedido do seu amigo Chantelou. A arte do autorretrato consiste em colocar-se uma questão sobre si mesmo. «Quem sou eu?» pergunta-se. «Eu não vos quero dizer o trabalho que tive em fazer este retrato, com receio que creia que o quero valorizar»[2] escrevia o artista a Chantelou. «Voltei-me para mim mesmo e disse-me: – Mas tu quem és?» [3] diz Santo Agostinho nas suas Confissões. Vem de seguida a resposta que se dá a esta questão.
No seu retrato, o pintor exprimiu os seus princípios e, filósofo, representou-se primeiramente no plano humano. O seu rosto, metade oculto na sombra, exprime severidade e força de alma. Tem nas suas mãos uma pasta repleta de desenhos, imagem por excelência do desenhador em que se tornou. Destaca-se como em relevo, em relação aos quadros no plano de fundo. Em todas as suas telas, os seus personagens parecem sair do quadro, mostrando o lugar eminente que o artista confere à vontade humana. Tal é a grandeza do homem, da qual Nicolas Poussin se tornou perfeitamente consciente.
Mas este último não permaneceu confinado apenas nos negócios deste mundo. Uma vontade de transcendência é nele afirmada pela presença por trás dele de uma imagem mostrando uma jovem ostentando um diadema, segurada de forma afetiva por duas mãos. A personagem é a musa da pintura. Esta evocação da Antiguidade é posta em relação com as preocupações espirituais do seu tempo pelo artista. As duas mãos segurando a musa expressam amor e amizade, dois valores fundamentais testemunhando sua amizade por Chantelou. Estes dois sentimentos suportam uma grande parte da obra de Poussin e manifestam o seu interesse pelo estoicismo antigo. “Se me pressionarem a dizer por que eu o amo, sinto que isso só se pode exprimir respondendo: porque era ela, porque era eu” [4], dizia sobre a amizade com Montaigne, muito marcada pelo estoicismo. O olho colocado no centro do diadema representa a alma do pintor esclarecido por Deus.
O Homem ampliado pela natureza
O estoicismo do artista está igualmente presente nas suas paisagens. Os estóicos pensavam que o mundo era uma harmonia poderosa que respondia a uma ordem perfeita e, neste contexto, visava promover a omnipotência da vontade humana. “A verdadeira liberdade é a de poder controlar tudo em si mesmo” [5], dizia Montaigne. A felicidade só podia advir do desejo de viver em conformidade com a natureza. Assim, Poussin concebe sempre as suas paisagens animadas pelo Homem.
Um dos seus quadros exprime esta relação ideal entre o Homem e a Criação, a paisagem com O Funeral de Focion (1648). Pela sua natureza inevitável, a morte dá um sentido à vida humana. Neste quadro, o artista mostra o corpo de um homem de Estado transportado por dois escravos. Focion era um general ateniense do século IV a.C. que, apesar de ter sido constrangido a fazer a guerra toda a sua vida, só pedia a paz para a sua pátria. Acusado de conluio com os Macedónios, foi injustamente condenado à morte. Mostrando o seu cadáver, Poussin quis testemunhar a insignificância da condição humana. Todos estão submissos aos caprichos da fortuna; ninguém é mestre do seu destino. O artista decidiu expressar essa renúncia, mostrando os homens cuidando das suas ocupações, indiferentes à sorte do ilustre defunto. No entanto, uma mensagem de esperança é enviada pelo artista e parece que toda a natureza dá um ambiente de alegria, atenuando a tragédia. O olhar caminha lentamente do primeiro plano até ao céu azulado. É assim que, no Funeral de Focion, este caráter inefável do destino é excedido, na medida em que Poussin substituiu a fé na providência por ele. “Nós não temos nada de próprio, temos tudo por contrato” [6], dizia ele.
Existe uma troca entre o homem e a natureza e só se pode ficar impressionado com a estabilidade dos edifícios integrados na paisagem. “Tudo se mistura e se distingue sem dificuldade; tudo se une e se torna um corpo” [7], faz Fénelon dizer a Poussin. Encontram-se duas tendências no nosso artista. Por um lado, na medida em que Deus é feito Homem, ele quer dar a este toda a sua grandeza; por outro lado, ele quer experimentar o contraste entre a majestade da natureza e a fragilidade da criatura.
A morte santificada pela Graça
Noutro dos seus quadros, o artista conferiu uma maior força ao papel da morte na relação com o divino: Os pastores da Arcádia (1655), exposto no Louvre. Trata-se de um Memento mori, uma vaidade, um quadro que visa fazer-nos entrever que a morte virá inevitavelmente concluir as vidas mais felizes. A Arcádia passava tradicionalmente por ser o lugar de uma vida campestre idílica. Poussin mostra-nos quatro personagens reunidas perto de uma pedra tumular, interrogando-se acerca de uma inscrição, Et in Arcadia ego, «Eu (a morte) também estou na Arcádia». Cada personagem é autónoma em relação às outras. Estão reunidas numa meditação silenciosa apenas pelo seu interesse pela inscrição. A ciência das atitudes, característica de Poussin, exprime a humanidade das personagens. O artista “esculpe” as posições de forma muito significativa.
Este equilíbrio perfeito culmina na atitude da mulher à direita, personagem alegórica que representa o destino. Ela mete o braço sobre o seu vizinho numa vontade de apaziguamento. E parece dizer-lhe: “Que importância tem a morte? É apenas uma passagem”. Sendo o único elemento feminino, a personagem evoca as profetizas antigas que receberam o dom da adivinhação. Qualquer que seja a dimensão humana do nosso artista, Deus manifesta sempre o Seu poder. É a graça que incarna nesta mulher, testemunha da providência expressa repetidamente pelo pintor, uma graça muda, mas que não comunica menos a sua força aos contempladores da obra. A obra de Poussin é marcada pelo sentimento do destino. Ao mesmo tempo, ele soube exprimir no homem a sensibilidade à beleza da natureza, a inteligência e a ação que envolve o trabalho. «Tu és livre, mas é preciso ter atenção», é a mensagem que nos entrega. O destino presente em Os pastores da Arcádia exprime a humanidade iluminada pela divindade.
Didier Lafargue
Publicado na Revue Acrópolis em 29-10-2019
Bibliografia:
Milovan Stanic, Poussin Beauté de l’énigme, Éditions Jean-Michel place, 1994
Nicolas Milovanovic, Mikaël Szanto, Poussin et Dieu. Louvres éditions, 2015
[1] Ler o artigo sobre Philippe de Champaigne na revista Acropolis N.°273 (abril 2016).
[2] «Nicolas Poussin, Lettres et propos sur l’art». Paris: Hermann, 1989, Lettre à Chantelou, Rome, 19 junho de 1650, página 157
[3]. Saint Augustin, Les confessions. Paris: Gallimard, 1998, Livre X, VI, 9, p.987
[4] . Michel de Montaigne, Essais, Livre 1er, Capítulo XXVIII
[5] . Ibidem, Essais, Livro III, capítulo II
[6] . Colette Nativel, Poussin et sa culture de l’antique d’après sa correspondance, em Bayard et Fumagalli, 2011, páginas 328-329
[7] . Fénelon, Dialogue des morts. Citado por Paul Jamot, Les funérailles de Phocion par Poussin au musée du Louvres. Paris: Gazette des Beaux-arts, 1921, página 326
Imagem de destaque: Nicolas Poussin, autorretrato. Museu do Louvre. Domínio Público