O que diferencia um tronco flutuante de uma barca feita da mesma madeira é que esta última tem remos e pode navegar contra a corrente. – Dr. N. Sri Ram (1889-1973), Filósofo Indiano

Escutei estas palavras dos seus lábios na minha já distante juventude. A frase não fazia parte de nenhum dos seus discursos e não sei se a inseriu em algum dos seus livros. Surgiu espontaneamente durante uma conversa. Meditei muito sobre ela e no momento de plasmar os mais altos Ideais numa Escola de Filosofia à maneira clássica, a parábola do tronco e da barca estampou o seu selo em todo o pensamento, sentimento e actividade. Em geral, os homens e as mulheres são como os troncos que foram lançados ao rio da vida e, primeiro inteiros e secos, depois golpeados e humedecidos, derivam sempre no sentido da corrente ou dos braços dessa corren­te que os poderosos do Mundo desviaram… Ali vão! … Entrechocando-se em inúteis violências, sujos e enlameados, sem rumo nem porto fixo, até que se desfazem em estilhaços e desaparecem da superfície neste rio que não cessa de correr, que não sabemos de onde vem nem para onde vai.

Troncos de árvores no Alaska / wikimedia

Meros troncos, despedaçados, cortados, arrastados de um lado a outro e apenas opondo a resistência do seu próprio peso à corrente! O obscuro rebanho desliza-se soltando balidos no seu andar incansável e, no entanto… tão cansado! De dia, o sol permite ver a obscura podridão dos córtices e de noite, o tumulto de sombras corre sempre horizontal e, só por excepção, algum levanta uma extremidade em direcção às longínquas estrelas. O rio dos troncos! Cada vez são mais e, uns e outros, entrechocam-se, ferem-se, despedaçam-se… o rio dos troncos! … Quanto meditei sobre isto! Porém, ano após ano fui aprendendo as quase olvidadas técnicas de ir cavando e aliviando a mole de madeira… essa madeira da qual todos somos feitos. Rápidos golpes de enxada na superfície seguidos de carvões incandescentes que se renovam constantemente. A experiência, embora se inspire nos grandes mestres da humanidade, é sempre dolorosa e infinitamente longa. Há que cavar profundamente, aí onde os egoísmos e as cobardias entrelaçam as suas fibras retorcidas, e a ilusão te faz crer que tu és um tronco e que te estás a destroçar a ti mesmo. Mas o tenaz trabalhador, impulsionado pela sua vontade, superior a todos os gemidos da matéria semi­pútrida, prossegue a sua tarefa.

Canoa Caiçara / wikimedia

Pouco a pouco, o outrora basto tronco, vai-se convertendo numa embarcação. Perfilam-se a aguçada proa e a redonda popa. A outrora ferida cavidade é, agora, um polido receptáculo para a Alma Peregrina. Com os restos fizeram-se os flexíveis remos que, de acordo como se manejam, serão impulsionadores e também timão. E, com imensa paciência, vão-se polindo os toscos costados até que se convertam em bordas leves e sólidas. E… assim fizemos a barca! A multidão de troncos olha-a com uma mescla de assombro e de repulsa; parece-lhe vazia, inconsistente, desnecessária, cómica, perigosa, abjecta. Mas o que sucede é que não é um tronco… É uma barca! E, como se isso fosse pouco, pode navegar contra a corrente. Agora, isto já é imperdoável! Não andar na moda, não mudar de cor segundo a lama que vem? Ter cor própria e vogar por cima do lodo, roçando-o apenas? … Inconcebível! E os seus estranhos tripulantes? Dizem estes que não somos todos iguais, que se fôssemos poderíamos equivocar-nos todos juntos sem esperança de ajuda de um a outro, que a igualdade não existe na Natureza nem é coisa possível ou desejável. Que as salutares diferenças embelezam o conjunto e arrancam-no do tédio e do espírito de manada. Também dizem que as diferentes religiões são adaptações no espaço e no tempo de uma única Mensagem e que, portanto, não há uma melhor ou pior do que a outra já que, à parte dessa breve Mensagem, tudo o resto foi acrescentado pelos humanos com as suas ignorâncias e apetites… E que se foram copiando uns aos outros ao longo de milhares de anos. Afirmam que não crêem em Deus, mas que sabem da Sua Existência e que esta é evidente. Basta conhecer e percorrer os caminhos para o Seu descobrimento. Que a Alma é imortal e incorrupta e que não há que a confundir com as roupagens e disfarces que adopta periodicamente. Que, se é que há perdão, este está mais além da redenção, segundo a lei da acção e reacção e que estas são leis mecânicas da Natureza: que quem semeia trigo sempre colhe, cedo ou tarde, trigo, e quem semear espinhos só obterá espinhos. O milagre não existe como tal; só existem planos de conhecimento. O fenoménico é secundário; o sacerdote babilónico que deslumbrava com os seus pequenos relâmpagos artificiais que lhe saltavam de uma mão para a outra, hoje seria um simples electricista. E São Patrício seria um químico que saberia o que ocorre quando deitamos água sobre o fósforo branco ou a cal viva.

Cataratas e canoa no Parque Nacional Canaima (Bolivar) / wikimedia

O tripulante da barca não necessita muletas de enganos. Busca e encontra, paulatinamente, a verdade. Põe o seu esforço nos remos e distingue coisas que os demais não vêem, pois rema contra a corrente. Vai remontando o rio até às suas fontes puras e descontaminadas. Há entusiasmo na sua Alma e aprecia o riso e as coisas belas. Incomodam-no os ruídos cacofónicos e aprecia as formosas melodias de Strauss, as catedrais de luzes e sombras de Wagner e as íntimas sonatas de Mozart. Não finge ver panoramas por detrás da miscelânea de olhos, narizes e rabos dos modernistas e prefere caminhar pela neve com Goya, observar os céus cinzentos de Velásquez, surpreender as lágrimas cristalinas de um Greco ou perder-se nas ruas fantásticas dos murais de Pompeia. Não crê que as drogas sejam um bem, mas antes um mal, pois os que abusam delas convertem-se em bestas degeneradas, que roubam e matam para as conseguir. Tão-pouco na suja bebedeira do grito alto e do arroto baixo. Pelo contrário, crê na ordem harmónica e vital, que ultrapassa o mecanismo cego de programas já manu­facturados por outros. Crê na liberdade, na medida em que haja pessoas que a apreciem e que respeitem a dos demais. Crê na vontade, na bondade e na justiça, e que um mundo sem essas virtudes é uma bola de barro à qual há que dar formas harmónicas, vencendo toda a resistência da matéria bruta. Crê num mundo novo e melhor… mas, para que surja no nosso horizonte, deve haver muitos remadores novos e melhores. Os que se deixam levar pelo rio da vida por debilidade e lamentos são inexoravelmente arrastados para a destruição física, psíquica e mental. Crê numa ciência ao serviço do Homem, do animal, do vegetal e, sobretudo, do planeta em sentido global, pois é a nossa casa cósmica, que estamos a derrubar e a desequilibrar. Crê que as estruturas já velhas e inúteis devem dar lugar, na renovação natural da vida, a outras jovens e fortes, sem complexos e limitações que cheirem a
podridão, pois são cadáveres aos quais a força galvânica do dinheiro e do poder faz com que se contraia e movam os seus membros num horrendo simulacro de vida.

E… sobretudo… os tripulantes crêem neles próprios e na barca que fabricaram. Quando passam remontando o rio da vida, muitos homens e mulheres de coração jovem e mente desperta põem-se a trabalhar e a converter troncos em naves, para conhecerem a maravilhosa aventura espiritual de navegar contra a corrente.

 

Artigo escrito por Jorge Angel Livraga, Fundador da Organização Internacional Nova Acrópole