Finalmente, li As Mil e Uma Noites, uma delícia, e fiquei muito impressionado que apareceram histórias de Nasrudin, com o seu nome Hodja, que na versão lida, chamam de Goha.
Esta tradução é a das Edições 29, traduzida por Jacinto León Ignacio da versão francesa, hoje clássica de J. C. Mardhus (1899-1904) diretamente do árabe.
A história das traduções das Mil e Uma Noites é um autêntico labirinto (em algumas não aparece a história de Ali Babá, nem a lâmpada mágica de Aladim, embora exista uma muito semelhante); e como tal, Jorge Luis Borges, apresentou-o no seu ensaio Os Tradutores das 1001 Noites, que apareceu no livro História da Eternidade. Um tema também recorrente em suas conferências, como vemos aqui1.
Mas o que me chamou à atenção, é que ninguém, ao que parece, percebeu que as histórias de Nasrudin aparecem nesta obra colossal. Na Internet, pelo menos, não aparece nenhuma correlação, talvez porque em Mil e Uma Noites ele apareça como Goha, mas é ele indubitavelmente.
O grande divulgador no Ocidente, em 1966, das aventuras do filósofo humorístico Nasrudin, foi Idries Shah, com uma compilação entre os seus milhares de histórias e contos associados, que o converteram num dos porta-bandeiras da Turquia, e inclusive, é mostrada uma lápide na cidade de Aksehir, em cuja cidade se celebra um festival internacional, entre 5 e 10 de julho de cada ano.
As histórias narrativas deste personagem semi-lendário, que passou a ser considerado como um Quixote islâmico, tornaram-se património imaterial da UNESCO. Muitos países reivindicam o seu nascimento e as suas histórias estendem-se à China, supondo-se que tenha vivido por volta do século XIII.

Manuscrito árabe utilizado por Galland em sua tradução das Mil e uma noites (século XIV ou XV). Domínio Público.
Vejamos então o que As 1001 Noites dizem sobre Goha:
Algumas graças e teorias do mestre das piadas e do riso: Nos anais e livros dos antigos sábios que chegaram até nós, conta-se que, na cidade do Cairo, mansão da graça e das piadas, vivia um homem com aparência estúpida, que sob o seu exterior de bobo extravagante, escondia um fundo sem igual, de delicadeza, sabedoria, inteligência e sagacidade, além de ser o homem mais amável, instruído e espiritual de seu tempo. Chamava-se Goha e não tinha emprego, embora lhe tivesse ocorrido exercer como pregador nas mesquitas.
E na continuação vem toda uma série de histórias, que incluem oito das noites, das mil e uma. Vou selecionar umas poucas e deixaremos algumas que são um pouco rudes ou altamente eróticas.
Uma dessas histórias faz referência a um cisne e não a um patinho feio:
Um dia os seus amigos disseram-lhe:
— Goha! Não tens vergonha de passar a vida em ociosidade e não usar os dez dedos das tuas mãos, a não ser para levar algo à boca? Não crês que é hora de acabar com essa vida de vagabundo e te adaptes aos usos de todo o mundo?
Nada respondeu a tudo isto, mas outro dia, quando apanhou uma cegonha muito grande e bela, com asas magníficas, que lhe permitiam voar muito alto no céu, com um bico prodigioso, que era o terror das outras aves, e com as patas como caules de lírios, subiu ao terraço e, na presença deles, que o repreendiam pela sua vida, aparou as penas das suas asas com uma faca, assim como o bico prodigioso e as encantadoras patas finas. Então, jogando-a no vazio, gritou:
— Voa, voa!
Os seus amigos, escandalizados, disseram-lhe:
— Goha! Que Allah te amaldiçoe! Porque cometes essa loucura?
E ele respondeu-lhes:
—Aquela cegonha irritou-me porque não era igual às outras aves! Agora consegui fazer com que se lhes parecesse.
Outra divertida:
Outro dia, um amigo bateu à porta de Goha e disse:
—Pela amizade que nos une, empresta-me o teu burro, pois preciso fazer uma viagem urgente!
Goha, que tinha pouca confiança naquele amigo, respondeu-lhe:
—Eu gostaria de emprestá-lo, mas não o tenho mais, pois vendi-o.
Naquele exato momento o burro começou a zurrar no estábulo, e o amigo, ao ouvi-lo, disse:
—O teu burro está aí!
Muito ofendido, Goha respondeu-lhe:
—Então acreditas nele e não acreditas em mim! Vai-te, que não te quero ver mais!
E uma última:
Um dia, Timur Lank, que além de coxo e com pé de ferro, era zarolho e horrivelmente feio, divertia-se conversando sobre várias coisas com Goha. O barbeiro de Timur chegou e, depois de raspar a cabeça, ofereceu-lhe um espelho para que se visse. Timur rompeu a chorar e, contagiado, Goha desfez-se em lágrimas, suspiros e gemidos durante três horas. Timur já se tinha serenado há algum tempo, e nem por isso se lamentava menos que Goha. Assombrado, o tártaro perguntou-lhe:
-O que se passa contigo? Se chorava era porque ao olhar no maldito espelho deste barbeiro, achei-me feio a sério. Mas que motivos tens tu para verter tantas lágrimas e lamentar-te desse modo?
Goha replicou:
— Com o devido respeito meu soberano, viste-te ao espelho, por um momento, e foi o suficiente para que chorasses durante duas horas. O que há de estranho para que o teu criado, que te vê durante todo o dia, chore ainda mais tempo?
Na realidade, a maioria das histórias recolhidas nesta edição, não tem nada de notável, exceto as escritas, e cinco ou seis são grosseiras e obscenas. A diferença de outros países, as memórias preservadas ou as histórias atribuídas na mesma, não têm a categoria moral, nem o génio paradoxal ou as violentas metáforas e os ensinamentos que encontramos noutras versões.
No entanto, serve também para provar que as aventuras do filósofo humorístico, deixaram uma marca nesta coleção de contos.
José Carlos Fernández
Publicado na Revista Esfinge em 1 de julho de 2024
Nota:
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Veja também a sua bela conferência:
https://borgestodoelanio.blogspot.com/2015/04/jorge-luis-borges-las-mil-y-una-noches.html
Imagem de destaque: O Manuscrito de Sughrat; Xerazade e o sultão Xariar, por Ferdinand Keller (Imagem composta). Domínio Público.