Continuamos com a descrição do arranjo mortuário do sacerdote Nesperennub, exposto na exposição em Madrid da Caixaforum em colaboração com o British Museum.
Uma pergunta que deve ser feita é por que se revestiam as múmias com um pano em forma de rede ou ligaduras externas com arranjo semelhante. Como já indicamos, nem sempre se cumprem todos os requisitos funerários em todas as ocasiões. Neste caso, apontamos no artigo anterior que este tecido que o cobre em forma de rede, é a mesma que cobre a representação do deus falcão Sokar, uma forma post-mortem de Osíris.

Deus falcão Sokar. Revista Seraphis
Portanto, para entender o seu significado, devemos relacioná-lo com Osíris, pois afinal o sacerdote Nesperennub queria tornar-se num osirificado, esse era o seu objetivo e esperança.
OS MÚLTIPLOS NOMES DE OSÍRIS

Osiris com a coroa Atef e os atributos do faraó. Domínio Público
Osíris é deus da Lua, Osíris Lunus, é o mesmo sagrado Nilo, e no Mundo do Além é o Senhor do Ocidentais, ele é Senhor do Todo e Senhor dos Confins ou Limites, é também o deus Sepa, a scolopendra ou escorpião que avança solitário no deserto, também é o Senhor Ram de Mendes, é também Osíris Unnefer, de onde vem o nome de “Onofre”, ou seja, Osíris o da “Bela Existência ou Ser.”
Apesar de todos esses títulos e da importância atribuída ao deus, este permanece mudo, estático, não ordena, nem dá opiniões, não pergunta nem responde através de todo o Livro Egípcio dos Mortos, é só o Deus da Presença Silenciosa, mas acima de tudo é Aspiração e Meta, entendida esta como a libertação das ligaduras da morte, na qual, paradoxalmente vivemos. “Vivemos na morte” porque a nossa vida é enganadora, falsa, e é a morte porque nos obriga a esquecer constantemente, a perecer e renascer ignorantes mais uma vez, é a morte porque é apenas uma aparência de vida.
Agora, em relação à estranha rede que cobre a múmia de Nesperennub, há um epíteto relacionado que nos interessa de certa forma: Osíris é “o Peixe de Abidos”, o peixe Abdju. O peixe aparentemente preso nas amarras da morte, representadas pela rede.
Diz no Livro Egípcio dos Mortos o seguinte:
Foi-me permitido navegar até o templo de “Aquele que revela faces” (Osíris).
“Aquele que une as almas” é o nome do barqueiro, “Aquele que penteia os cachos” é o nome dos remos, “Espinho” é o nome do fiador do barco. “Precisão e Exatidão” é o nome do leme.
A semelhança natural de quem está enterrado nas águas da lagoa (Osíris em Abidos).

Imagem Revista Seraphis
Como muitos outros salvadores, Osíris é identificado com um Peixe.
É uma tradição que pode ser traçada em mitos como Manú Vaivasvata, o Noé indiano, o de Oannes, o profeta que veio das águas na mitologia babilónica, lunnes, mencionado no Alcorão, que também retornou das águas, depois de permanecer no interior de um peixe, como na sua versão bíblica, Jonas, sem esquecer o “Salvador Jesus”, que foi simbolizado também como um “Ichtus”, o peixe.

Jonas e a Baleia, Pieter Lastman. Domínio Público
Osíris também é identificado com o peixe Abdju que guia a barca de Ra, o deus sol, no meio das águas.
Aqui o vemos de pé num pedestal aquático do qual emerge um lótus, representando a eflorescência da personalidade, e com um vestuário funerário coberto por escamas de peixe. Em cima, entre várias serpentes, aparece também Sokar nesta cena.

Papiro de Ani, 19ª dinastia. Domínio Público
O falecido sacerdote Nesperennub também aspira a “passar as águas”, ou seja, renascer, enfim, ser um peixe, capaz de atravessar as águas primordiais do caos, e ser ossirificado na capela iniciática de Anúbis, como um peixe.
Esta cerimónia, a da passagem pela água, foi captada pelo cristianismo e o Islão do antigo egípcio, onde o sacerdote antes de entrar no templo se banhava nas águas do lago contíguo, da mesma que o fiel cristão que se persigna e se purifica com água benta de um caldeirão, ou como o muçulmano que lava as mãos e os pés antes de entrar na mesquita. É a mesma cerimónia do batismo cristão, o retorno à vida, o voltar a nascer, da mesma forma que nascemos de dentro das águas da nossa mãe.

Sokar no barco sagrado Hennu. Revista Seraphis
Sokar, ou melhor Sokar-Osiris, é o falcão da noite, o senhor do recinto funerário de Sakkara, que é a alma que surge no silêncio da morte, e se prepara para deixar os seus laços carnais, atravessa a escuridão e nasce de novo, como indica a sua própria barca sagrada, Hennu, na qual o deus Sokar aparece envolto numa mortalha-ovo (nota 1), do qual nascerá o novo ser.
Por esta mesma razão, embora escassamente representada, aparece uma personagem curiosa, um sacerdote que envolto como Sokar num sudário-ovo, acompanha a comitiva funerária, até o momento em que é realizada a Cerimónia de Abertura da Boca no falecido. Este Sacerdote é o seu “alter-ego”, adotando o papel de feto no interior do óvulo que vai nascer:

Imagem Revista Seraphis
Esperamos que Nesperennub o tenha conseguido, que tenha sido capaz de finalmente penetrar no Amenti, a Terra do Segredo, mas se não tivesse conseguido, certamente estava perto, provavelmente muito mais que nós, seres pedestres longe de qualquer sentido sagrado da vida.
Continuará
Juan Martín Carpio
Publicado na revista Seraphis, em 19 de outubro de 2022
(1) No Antigo Egito, como já se explicou no anterior artigo, sarcófago e ovo são escritos da mesma forma e também ligadura-mortalha. O nome egípcio é SUKHT, diferenciando-se estas três variantes apenas pelo seu determinante final: o sarcófago com um ramo de madeira, o ovo com um desenho ovoide e a ligadura com um laço. A razão para isto é que no seu interior é onde se produzem as transformações que darão nascimento ao alma-pássaro.
Imagem de destaque: Pano em forma de rede. Revista Seraphis