Uma das múmias e as suas cartonagens que nos acompanham nesta exposição é a do sacerdote Nesperennub, da XXII dinastia (943 a.C. – 716 a.C.) cuja capital era a cidade de Bubastis no Delta. Corresponde a uma época de decadência que pode ser considerada como sendo do 3º Período Intermediário. Os seus governantes eram de origem líbia, do povo Meshwesh, berberes.

Por que é interessante mencionar estes dados? Bem, para entender que, embora as classes governantes já não possuíssem toda a grandeza, conhecimentos e participação em sistemas iniciáticos internos, há, porém, uma casta sacerdotal que preserva, pelo menos em parte, as tradições antigas. No entanto, tendo isso em conta, nem sempre os elementos simbólicos ou rituais que mencionaremos aqui se mantiveram em vigor em todas as épocas.

Nesperennub é filho de outro sacerdote chamado Ankhefenkhons. Entre os seus títulos estavam os de “Aquele que Abre as Duas Portas do Céu em Karnak”. Ou seja, que se declara como um que conhece os “caminhos celestes”, que é capaz de abrir as duas portas, ou seja o possuidor das “duas chaves”, bem como as duas chaves que foram dadas a “Pedro”. Como comenta H. P. Blavatsky em Ísis sem Véu, vol. III, o seu nome “PTR”, embora geralmente seja traduzido por “pedra”, na verdade tem a sua origem na dos antigos sacerdotes “videntes” ou “intérpretes” “peter” ou “patar”.

As duas Chaves de Pedro. Revista Seraphis

Assim, no Livro dos Mortos Egípcios, por exemplo, no capítulo XVII, a cada descrição ou interpretação é precedida da seguinte pergunta:

“PTR” rf sw
Como se “interpreta” isto?

Esta fórmula é repetida mais de 30 vezes.

O nosso sacerdote, Nesperennub, é também “Sacerdote das Libações do Templo de Jonsu em Karnak”, isto é, aquele que realiza as oferendas, um sacerdote que sabe interagir com o mundo dos deuses e dos falecidos consagrados.

Lemos num livro sobre egiptologia que existiam também decorações no exterior do ataúde que consiste numa porta falsa, como na seguinte imagem do sarcófago de Khnumnak, localizada num dos lados abaixo dos olhos desenhados:

Sarcófago de Khnumnak. Revista Seraphis

Supostamente, através desta porta o defunto podia sair para fazer as suas oferendas (??). Na realidade, é exatamente o contrário, esta decoração completa o “ataúde simbólico”, ou seja, o local onde ocorrem os processos que refletem a vida espiritual e interior do falecido, representa a “porta para o mundo dos deuses” ou Ra-Stau (lugar subterrâneo de onde se extrai ou se educa Ra), é o acesso ao mundo dos mistérios espirituais.

Curiosamente, na linguagem hieroglífica, as palavras ataúde e ovo são escritos da mesma forma, variando apenas o determinativo ou sufixo que os segue, num caso um ramo de madeira, e no outro uma forma de ovo, porque para eles o ataúde é “o cubo” ou “ovo”, e de acordo com o Livro dos Mortos é o lugar onde se “in-cuba” a alma-pássaro.

Aparece também pintado no exterior um olho ou dois, que representariam o olho de Rá e/ou o de Hórus, mas não estão aí desenhados como alguns dizem para que pudesse ver através dele, algo absurdo, mas porque representa o objeto perseguido, o que foi alcançado, a visão espiritual ou o Olho de Rá. Assim repetidamente nas fórmulas cerimoniais do Livro dos Mortos são ditas “que lhe seja dado, ou concedido ou estabelecido, o olho de Rá entre as sobrancelhas” para o falecido consagrado. Seria o equivalente ao Terceiro Olho, ou olho de Dagma de outras tradições espirituais.

Da mesma forma, os estudiosos afirmam que os hieróglifos, que se encontram escritos tanto no exterior como no interior do ataúde, destinam-se a ajudar o falecido a alcançar a vida no além. De acordo com esta mesma razão, orações cristãs e anjos guardiões, santos, etc. e símbolos religiosos que adornam os túmulos daqueles que podem pagar, seriam com a finalidade de ajudá-los a entrar no céu. Supondo que será suficiente indicar ao porteiro celestial qual é o nosso túmulo, os títulos que acompanham e os anjinhos gravados nas laterais, para que nos deixem entrar imediatamente. Melhor o representariam os escritos que recitou, conheceu e praticou em vida, e cujo texto expressa as esperanças e expectativas místicas do defunto, assim como nas nossas igrejas estão enterrados bispos com o missal ou a bíblia nas mãos.

A múmia, além de sofrer o processo descrito no artigo anterior, por vezes é coberta por uma espécie de rede externa, por vezes como um tecido independente e outras formadas por ligaduras cruzadas:

Precisamente, no sarcófago pintado de Nesperennub, vemos no peito a representação de Sokar, uma forma de Hórus da noite, que simboliza a alma navegando na noite da morte, para finalmente ressuscitar:

Peitoral com Sokar pintado. Revista Seraphis

Do falcão Sokar vem a palavra que designa um dos lugares arqueológicos mais importantes: Sakkara, o lugar do falcão (em árabe Sakr). Este falcão está representado também na exposição da Caixaforum de Madrid mostrando no exterior a mesma forma entrelaçada que tem a rede externa da múmia:

Falcão Sokar. Revista Seraphis

Há muitas figuras que estão paralelas de um lado e de outro do sarcófago, com significados complexos que tentaremos revelar de forma simples.

Pés da tumba de Nesperennub. Revista Seraphis

Começando pelos pés temos, em ambos os lados do pé da tumba, a representação de Anúbis, quem abre o processo a partir de baixo e que levará finalmente Nesperennub a penetrar no Amenti. O seu nome aqui indicado é o de “Uap-uauet”, “O que abre os Caminhos.” É o chacal do Sul

A sua outra forma, o chacal do norte é “Anpu”. Os dois chacais são conhecidos no Ocidente como Anúbis (Anpu), embora na realidade formem um casal, sendo um representante do solstício de inverno, e o outro do solstício de verão, as duas portas de entrada, uma para o mundo dos deuses e outra para o mundo dos vivos. Em muitos casos ambos aparecem juntos, aqui na exposição temos precisamente uma amostra da época greco-romano em que aparecem os dois:

Os dois chacais. Revista Seraphis

No seu aspeto de Anpu-Anúbis, é o embalsamador, aquele que começa o processo de embalsamamento na “Câmara de Anúbis”, a partir do ponto de vista místico, é o inicia, aquele que começa os ritos e admite neles o candidato.

No seu aspeto de Uap-uaet é o que dá passagem para os Caminhos que levam ao Amenti, ou o mundo dos “mortos” em vida, ou seja, os iniciados. A figura que aparece ao pé desta múmia é esta versão do chacal, porque o seu papel é iniciar e abrir o caminho que leva em progressão até o final do processo. Veremos isso descrito nas imagens localizadas no centro e em cada lado deste ataúde nos artigos a seguir.

Continuará

Juan Martín Carpio
Publicado na revista Seraphis em 14 de outubro de 2022

Imagem de destaque: O Sacerdote Nesperennub, Exposição Caixaforum Madrid. Revista Seraphis