Recentemente, pudemos assistir em Madrid a uma excelente exposição, com peças muito representativas e bem organizadas em volta do tema da Mumificação no Antigo Egito e os seus ritos funerários. Esta excelente exposição foi apresentada pela Caixaforum de Madrid em colaboração com o Museu Britânico.
Apesar de muito bem organizada e com boas informações gerais sobre os elementos ali expostos, não era fornecida uma explicação simbólica sobre esses elementos. Este artigo tem como intenção explicar alguns elementos da exposição, ainda que parcialmente, nessa perspetiva simbólica.
A Mumificação – O Embalsamento
Geralmente entende-se a mumificação como um processo pelo qual o cadáver adquire maior solidez e resistência à corrupção e desintegração. Embora o objetivo inicial pudesse ter sido esse, a realidade é que na maioria das mumificações, a sua rica composição em líquidos balsâmicos, perfumes, sais e resinas, etc., deteriorava bastante os corpos. De facto, aqueles enterrados nas areias do deserto em tempos pré-dinásticas conservavam-se melhor do que as múmias posteriores.
Desde os primeiros tempos, uma constante foi o uso do natrão, um carbonato de sódio natural que tende a hidratar-se fortemente e, portanto, é capaz de extrair os líquidos dos corpos com os quais entra em contato. O hieróglifo que o representa, ḥsmen, poderia ser traduzido como “aquilo que torna firme, permanente ou estável por toda a eternidade”, que é justamente a função do natrão.
Curiosamente, no papiro médico de Ebers há uma fórmula para “permanecer eternamente jovem”, na qual, além do pó de alabastro (alba-astrum, a estrela da manhã ou Vénus), mel e outras substâncias, e incluído o natrão.
O natrão aparece às vezes entre as ligaduras, dentro da múmia, ou noutras cavidades naturais, etc. Isso consistiria principalmente em “mumificar”, ou seja, secar, como se faz com o peixe salgado, ou no processo de cura de certas carnes conhecidas de todos.
Os demais ingredientes utilizados variaram com o tempo, mas em geral eram perfumes, óleos, gomas resinosas, etc., cuja finalidade era “embelezar”, cuidar, mostrar respeito e honrar o defunto.
As Ligaduras Sagradas e os Amuletos
Ao contrário da crença popular, talvez influenciada por filmes e até pelos comics, a múmia não estava envolvida por uma série interminável de faixas que circundavam todo o corpo como se fosse um fuso. Na realidade, cada parte do corpo (dedos, mãos, pulsos, cotovelos, antebraços, etc.) estava dotada de uma ligadura específica, com símbolos e orações escritas de tal maneira que cada faixa era um “nó mágico”, não apenas uma proteção, mas também algo que conferia um poder a essa parte do corpo. Entre eles muitas vezes havia vários amuletos, dependendo da zona do corpo ou do texto inscrito nas ligaduras.
O signo hieroglífico usado para descrever as ligaduras é o “nó”, em relação com os nós mágicos e protetores que vemos no Livro dos Mortos em redor no pescoço de Anúbis, na cintura de Ísis e Néftis e até mesmo nos seus arranjos de cabelo.
Nem todos estavam sujeitos às mesmas regras no que diz respeito à mumificação, já que estas mudaram ao longo das épocas e não se aplicavam de forma igual a todas as pessoas. Dependiam de fatores como a condição de nobre ou de realeza, ou do seu grau de envolvimento religioso. Noutros casos era uma concessão real, assim como na nossa cultura cristã ocidental, catedrais e igrejas foram por vezes locais de sepultamento de personagens não apenas da realeza, mas também para aqueles considerados santos ou que haviam prestado um serviço importante ao Estado. Na verdade, não há nada de novo sob o Sol, pois os nossos ossos ou as cinzas que restarem serão também dispersas, os túmulos esvaziados, e apenas os reis e sumos sacerdotes permanecerão – embora não por muito tempo – em túmulos protegidos e cuidados. Mas voltemos à nossa múmia egípcia…
As ligaduras não tinham a intenção de manter a integridade do corpo a todo custo com vista a uma possível ressurreição, mas faziam parte de um ritual complexo, cujo objetivo era estabelecer uma ligação entre o “ka” vivo do falecido e os vivos.
Da mesma forma que no nosso tempo os “santos” se supõem ser intercessores perante a divindade, e lhes são apresentadas orações, petições, oferendas, etc., também no Antigo Egito estes corpos consagrados atuavam como um elo entre os vivos e os que vivem no além.
Por outro lado, o culto era benéfico em ambas as direções, pois as orações e as oferendas que eram apresentadas também eram benéficas para reintegrar a força do “ka”, o verdadeiro intermediário.
Os deuses, como Rá, têm até 14 kas, ou poderes próprios, os seres humanos também o têm e é isso que, segundo diz o Livro dos Mortos, mantém a vida e a forma durante todos os nossos anos, sendo que quando decai surge a doença e a morte. Então o ka, antes não manifestado senão como expressão da força vital interna, depois da morte torna-se independente do corpo como seu “duplo”, porque é o “mestre da forma”, o seu recipiente, como indica o seu símbolo.
Para a ciência moderna o envelhecimento é um processo interno e fisiológico que depende de uma certa “programação” das nossas células, que permitem uma série pré-estabelecida de ciclos de renovação ou divisão celular. Curiosamente, o grande médico e alquimista Paracelso fala de um conceito semelhante, pois disse que o circuito vital que percorre todo o corpo também tem uma série de rondas predeterminadas.
Para a visão tradicional, sem negar o exposto anteriormente, estes mecanismos físicos são vistos como a expressão externa ou material de leis internas mais subtis, embora por isso não menos reais. Isso é o que os antigos egípcios chamam de poder do ka.
Nas entradas dos túmulos lêem-se por vezes orações ou petições para que se “repita” o nome do defunto, porque assim se dá força ao ka dele. Esta é uma crença geral antiga: que a palavra gera forças no invisível.
É o mesmo princípio utilizado no Antigo Egito para os altares “htp” de oferendas, onde aparecem inscritas fórmulas nas quais são descritos objetos imaginários, como jarros de cerveja, carnes, pães, etc., que o sacerdote oferente lê enquanto derrama líquidos sobre esses mesmos objetos representados no pequeno altar. A ação mágica que as palavras despertam chama-se ”prt-ḫrw”, ou seja, a palavra mágica, a palavra que oferece, a palavra que surge do lugar, neste caso o pequeno altar, e que faz com que se torne realidade para o ka do falecido, porque ele não vive da carne ou da cerveja, mas da força oculta que contém cada uma das oferendas e do poder da palavra que as menciona.
E Como Ressuscitavam?
Outro equívoco, influenciado pelo materialismo e por outras religiões, é pensar que o corpo se embalsamava, se enfaixava, e se lhe colocava as fórmulas do Livro dos Mortos num papiro, seja entre as pernas ou de um lado ou entre as ligaduras, de maneira que a recitação destes textos lhe servissem para ressuscitar.
Resumindo: esta ideia é absolutamente absurda, macabra e horrorosa para um egípcio. Para começar, alguém teria que explicar como me mover para segurar o papiro nas minhas mãos e ler o seu conteúdo se se supõe estar morto!
A vida após a morte só poderia ter duas possibilidades, ou regressar a este mundo, ignorante, esquecido de si mesmo e começar uma nova vida, ou passar para outra esfera, para o “Ajet”, ou seja, o “Horizonte da Luz”, vestido de luz, alimentado pela luz, transformado num ser luminoso, como um espírito glorioso ou Aj.
As máscaras fúnebres, como a que encabeça este artigo, apresentam-nos um rosto tranquilo, olhando para algo infinito, para aquele horizonte de esperança. Nada tem a ver com essa ideia macabra de múmias dançantes, de corpos mutilados que outrora foram adornados, embelezados, rodeados de perfumes e essências e as fórmulas do “Livro da Saída da Alma para a Luz do Sol”, que lhe lembravam as suas crenças e os seus desejos.
A Egiptologia desmembrou os seus corpos, radiografou-os, despiu-os, explicou-nos as doenças que tinham, mas na sua busca materialista não viu o essencial, não soube descrever a poesia, nem parte da gloriosa visão que eles tinham da vida e da outra Vida.
Por vezes, quando consideramos estas antigas cerimónias e costumes, à primeira vista podem parecer exóticos e estranhos, mas quando nos aproximamos percebemos que o ser humano, os seus medos, as suas esperanças, não mudaram assim tanto, nós ainda queremos as mesmas coisas. E assim, talvez já não tenhamos mesas de oferendas, mas continuamos a ler textos nos funerais, exprimimos os nossos desejos de bem-estar e glória para quem parte, recordamos os seus feitos durante a vida, perante os seus familiares e amigos, acendemos velas, e cantamos hinos. Porque no fundo todas essas coisas falam do mesmo: a esperança e fé na vida que continua, e Naquilo que permanece em cada um de nós apesar de tudo.
Continuará
Juan Martín Carpio
Publicado na revista Seraphis em 11 de outubro de 2022
Imagem de destaque: Caixão do Amenemope. Creative Commons