Ao ler o V Diário de Miguel Torga (1907-1995) constatamos que este poeta transmontano estudava, em 1949, como milhares de jovens na Europa, os livros de Jean Paul Sartre. Estes milhares, então, à medida que iam passando os anos, converter-se-iam em milhões, e o efeito tangível da filosofia deste autor existencialista haveria de se notar, nos ventos de destruição, caos, angústia e dissolução que provocaram, inclusive, no que um escritor francês chamou: a encarnação do desastre cultural francês do pós-guerra [1]. E sendo a França o coração da Europa, essa arritmia, gangrena ou náusea, a escuridão do puro nada ou morte moral, estenderam-se por todos os membros, chegando também, está claro, a Espanha e a Portugal, nosso país irmão.
A primeira citação encontramo-la a 5 de junho deste ano, em Coimbra, queixando-se da pinça e da censura do Estado Novo:
Dir-se-ia que nunca se sentiu entre nós, tão clamorosamente patriotas, que é no rio da sua literatura que uma pátria tem o espelho da sua grandeza. Doutro modo, como se compreenderia tanto fanatismo, tanta censura e tanta perseguição? Pois não se viu ainda que o viço das letras francesas vive sobretudo da liberdade incontroversa dos seus escritores, que nenhuma experiência detém e que nenhuma força limita? Pois não se perceberá que só tentativas contínuas, heresias novas, arrojos imprevistos, trazem a frescura, a cor, a originalidade e a humanidade duma criação? Que seria de Sartre se tivesse nascido aqui? (…)
Em várias das anotações, em prosa e verso deste Diário, já vemos como está entrando a influência nociva e angustiante do autor de Náusea e O Ser e o Nada. Por exemplo, no final desse mesmo mês, no pessimismo do poema Estiagem Lírica.
O Mondego secou.
Outro Camões agora que viesse,
Tinha apenas areia
Com que apagar a tinta da epopeia
Que escrevesse.
Pobre da linda Inês já sem ervinhas
Onde pastar a lírica saudade!
Tão verdade
É morrer neste mundo a própria morte…
Nem ao menos a água que bebia!
Vejam que negros fados
Da Poesia
E da sorte …
Poderoso feitiço o de Sartre que vai envenenando a sua alma, forte e vital, severa, mas firme diante de todo o tipo de adversidade. Envenenando-a e desfazendo-a, como um ácido corrosivo no metal.
No entanto, o impulso, o fogo da sua criatividade, a força da sua alma e génio são demasiado fortes para sucumbir facilmente. Dois dias depois, embriagado de luz e de mar, escreve, desde Palheiros de Mira, a 26 de junho:
O dia inteiro deitado na areia, bêbado de sol, de sal e de som. Fui com os homens ao mar, ouvi-os cantar o Ave enquanto a corda da rede deslizava no bordo do barco, mas, apenas desembarquei, estendi-me novamente no chão, e ali fiquei ensimesmado a olhar. Não há dúvida que nunca serei capaz de dizer coisa com coisa do muito que trago na alma e tenho recolhido no meu já longo caminho. Tanto livro, tanta palavra, tanto esforço e nada! Chocalha um oceano inteiro dentro de mim, e não consigo ir além dum poema estúpido, sonolento, que acaba assim:
O mar é bom,
Toca música.
Numa anotação de agosto, critica de modo destrutivo a burguesia e anuncia o fim da nossa civilização, cuja destruição está implícita, disse, na própria natureza desta classe social. Esta abordagem é pura doutrina de Sartre, a quem cita e defende nestas mesmas notas, mas de novo o seu vitalismo impõe-se e, embora o admire, ele é ele e não um mero fantoche deste pensador francês. Vejamos:
Nada poderá escandalizar tanto o homem médio de hoje, o burguês que se considera, e é, a trave mestra do presente edifício social, do que a afirmação de que será precisamente ele o coveiro dessa caricatura a que chama civilização cristã. E, contudo, os factos falam por si. Embora cada época se queixe de que em nenhuma outra a degradação chegou a tal ponto, a verdade é que nunca, como agora, uma classe justificou tão completamente o seu fim. Pode-se dar a prova disso de todas as maneiras, mas é talvez na literatura que o caso se apresenta com maior evidência. Enquanto que no romantismo, por exemplo, o espírito era centrípeto, o poeta polarizando, com consciência própria e alheia, o clima moral e intelectual da sociedade em que vivia – um Byron a empolgar a Europa inteira e a ser a sua expressão –, nos nossos dias pode Sartre dizer mil verdades, que toda a gente se negará a reconhecer-se no que ele escreve, a confessar que é assim negra e porca a sua vida. Uma grande, uma trágica onda de mistificação tolda a realidade do nosso tempo. E o indivíduo – o médico, o advogado, o negociante, o funcionário – que tem a alma suja de mil cobardias, de mil aberrações e de mil compromissos, nega-se a reconhecê-lo, a ver n’ O Muro [2] a fotografia da sua inconfessada impotência ou secreta devassidão. O espírito deixou de ser um guia e um freio. Na medida em que o seu cristal é um espelho e uma acusação, desvia-se dele o rosto ou quebra-se. Todos querem navegar de luzes apagadas. O contrabando da vida faz-se na escuridão.
Enquanto o homem é capaz de se reconhecer nos próprios erros, o mal não é grave. A tragédia começa quando ele, relapso nos vícios e perversões, em consciência se considera um monumento de dignidade e permanência. Desta forma, os dias de Roma estão contados e o jogo vai começar de novo.
Esse pessimismo existencial faz que escreva, vários meses depois, no meio de tempestades, descobertas e claridades e ventos do deserto, como foi toda a sua vida de criador, o seguinte poema, imbuído também da mais pura náusea sartriana.
Em São Martinho de Anta, 1 de outubro de 1949
NÃO TENHO CERTEZAS
Não, não tenho certezas.
Se era esse o canto que vos atraía,
Deixai me só nesta melancolia
De baixo, aberto e liso descampado.
Quero viver, quero morrer, e quero
Que ao fim a soma seja um grande zero
Do tamanho da ardósia… E apagado.
Mas são desejos da fisiologia…
Vagas aspirações do dia-a-dia
Duma bilha de barro
Que não vale um cigarro
Que se fuma.
Não, não tenho certezas;
Tenho bruma.
A sua alma luta para se desfazer desta sombra obscura e pessimista que o envolve, desta falta de inspiração de quem se desfaz no homem carne, e a natureza consegue renová-lo cada vez que ele comunga com ela, num êxtase sentido em cada uma das suas fibras. A 25 de junho do ano seguinte, em Coimbra, escreve:
AVE POÉTICA
Eu não tenho nada mais senão asas.
Quando subo os degraus do firmamento,
É com elas que subo e sustento
O peso bruto desta incarnação.
Asas de penas que me vão nascendo,
E que voam depois, desconhecendo
Que fúria azul as levantou do chão.
Pouco antes, em 10 de abril, havia descoberto o erro na argumentação, na proposta de Sartre. A vida, embora aparentemente sem sentido, afirma-se nele, com toda a sua beleza e promessas de céu:
A vida é uma paixão inútil, diz o Sartre. Mas, afinal, não se matou depois da descoberta. A vida é uma paixão inútil que nos prende com amarras que nenhuma paixão útil possui. A grande beleza dela, e o seu grande sentido, é justamente ser inútil. Cada um de nós passa o tempo espantado da devoção que lhe dá.
A vida é a única amada que se pode gabar de ninguém casar com ela por interesse.
Na anotação de 11 de outubro, queixa-se da poesia de Guerra Junqueiro e da devoção que lhe foi prestada em Portugal. Ele mesmo está impressionado, como não, com A Velhice do Padre Eterno, mas essa música já não concorda, disse, com os ventos que sacodem a Europa. Disse que:
A importância literária de Junqueiro é indiscutível, não só pelo que fez, como pelo que motivou. A sua influência é tão evidente na obra de alguns poetas que vieram depois, que seria tolice desconhecê-la. Espontâneo e acessível, o seu verbo tem um grande calor de comunicação. E certos recantos da sua quinta poética são ainda frescos e agradáveis.
Mas logo, imagino que afetado pela corrente de sensacionalismo poético, de buscas por sinestesias emocionais e retóricas e, desde logo, por todo um rio de derrotismo, niilismo e existencialismo como o de Sartre, acrescenta:
Simplesmente a poesia verdadeira é outra. Depois da experiência de Cesário e de Nobre, fazer daquilo, já era trágico; [como se o estro poético tivesse que estar sujeito à voz de alguns poetas ou outros, ao espírito dos tempos, às modas, e não ao cântico da alma imortal, com voz e ritmo próprios! como se houvesse um “evolucionismo”, absurdo, que fizera ver passados e obsoletos os versos que já foram!] – mas depois de Pessanha, de Sá-Carneiro e de Pessoa, amar aquilo é imperdoável.
Imperdoável!? Imperdoável negar-se a entrar nas águas amargas da dissolução? Imperdoável não querer perder-se no nevoeiro, na noite húmida sem estrelas? Imperdoável não se afastar do maneirismo, fugir da ausência de fé, do nada que justifique a vida, da entronização da tolice, de uma total ausência de sinceridade saudável, de fantasias onanísticas, da graça de um palhaço emocional, isso sim, agitando os cascavéis da sua facilidade poética, com tinidos musicais e movimentos fantasmagóricos? A poesia não atingiu o seu mar sem fim com Fernando Pessoa, antes entrou, muitas vezes, na sua confusão onírica e em silogismos labirínticos sem saída nem nobreza alguma! Apenas à sua doentia sensibilidade, em que tudo se rompe em pedaços e da alma nada resta senão a memória do que foi, ou a esperança que redime. Pessoa é, como Sá-Carneiro, como disse Miguel Torga depois, a náusea diante de Sartre, mais ácida e amarga como ele, como os que, não tendo água doce para beber, o fazem de água do mar, e quando levam à morte osmótica os seus neurónios, sucumbe às suas visões de loucura.
E efetivamente, Miguel Torga, na sua anotação de 17 de outubro de 1950, vê essa semelhança, a priori:
Como as coisas são! Há tempos, a falar de Sartre, da sua afirmação de que a vida é uma paixão inútil, quase que o acusei de se não ter matado depois disso [3]. E hoje, a ler o Princípio de Sá-Carneiro, onde deparo com o projeto duma Náusea que antecede vinte anos a do gaulês, fico-me a pensar na tolice de levar a coerência às últimas consequências e de deixar o talento no tinteiro, como fez o nosso. Não há dúvida que havia na personalidade do autor de A Confissão de Lúcio o drama de um existencialista. O mesmo fartum, a mesma consciência trágica do absurdo, a mesma obscena desilusão. Logicamente, por tudo isso, o poeta suicidou-se e arrastou consigo para a sepultura o seu mundo de obsessões. Sartre, porém, aguentou-se à tona da podridão, e deu corpo doutrinal e artístico às angústias.
E na anotação de 22 de outubro, dá-se conta do perigo desta filosofia de Sartre, do veneno que primeiro se apodera e depois dissolve as consciências, estupidificando-nos no egoísmo estéril de querer nadar na náusea, na morte de querer dissolver o nosso ser no nada, e não precisamente como os místicos o faziam, na pureza do infinito amor, verdade e beleza.
Como uma onda que nenhum terror da praia detém, a vaga do «niilismo europeu» de Kafka avança inexoravelmente sobre nós. Em casa, no consultório, no café, na rua e até na mais remota aldeia que visito, um caruncho silencioso mas terrível esfarela os valores e a consciência deles. Os livros que se escrevem, as lições que se dão, o emprego, a sementeira ou a missa não são atividades alicerçadas em nenhuma grande certeza humana ou esperança divina. Hábitos ou necessidades rudimentares significam apenas que no homem também a lei da inércia se verifica. Sentimos todos ainda a responsabilidade de viver, mas em termos tão imediatos, tão fisiológicos, que a seta que devia sair do arco airosa e alada cai-nos aos pés tolhida pelo lastro de chumbo que lhe pusemos.
Fruto da mesma árvore social que nos gerou a todos, recuso-me contudo à degradação de encarquilhar passivamente no tabuleiro do desespero. E nada de mais cobarde e abjeto do que um artista que se desquita da solidariedade que deve às palavras que proferiu e às esperanças que movimentou.
Aqui, felizmente, já se separou de Sartre, engoliu o seu veneno, corroeu-o, mas a sua alma o rejeitou, e não será cúmplice dessa lepra moral. Precisamente Sartre afirma o contrário do nosso poeta, que ele não é responsável nem tem que ser coerente com nada do que disse ou fez antes, vamos, o que na Índia chamam de amanasa ou o professor Jorge Ángel Livraga (m. em 1991) um amoral, mil vezes pior do que um imoral (cuja bússola interior assinala o bem, como a de todo o ser humano, mas não quer ir nessa direção, porque é mais difícil. No amoral, simplesmente não há bússola ou esta dá voltas, enlouquecida).
A onda do niilismo avança inexoravelmente. Cheio do seu gelo e do seu terror, olho-a do areal com imperturbável coragem. A sua fúria, que tanto me fez sofrer e temer, nada poderá contra mim. Nem fraga para lhe resistir com a dureza da pedra, nem duna para me amoldar à sua vontade, sou no entanto um homem disposto a lutar. Morrer não tem qualquer importância, desde que seja a esbracejar.
A sua alma, lutando contra o encantamento fatal desta antifilosofia (pois não é nem amor nem sabedoria, mas o vazio de ambos), venceu, de novo pede à poesia que o leve pela mão, pelos jardins do Paraíso:
Luz fechada nas pétalas da noite,
Abre a rosa imortal do teu sorriso!
Ou não merecemos nós, mais uma vez,
O paraíso? [4]
Um dia antes, também em Coimbra, escrevera, como hino de esperança e redenção:
(…) Se não cobrir a angústia do mundo um teto de poesia, o dilúvio desta vez afoga tudo.
Abóbada majestosa da cultura, céu onde todas as cores se juntam e purificam, só a poesia poderá unir e pacificar a humanidade de hoje, estrelando de luzes de esperança a pavorosa noite que nos atormenta. Único elo que prende verdadeiramente o homem à terra, cântico indomável da sua mais íntima comunhão com a misteriosa alegria de viver, é ele que recompõe a face dos Tamerlões apavorados diante da pirâmide dos seus crimes. Não que lhes perdoe o desvairo, mas acordando nos braços adultos da ferocidade as linhas puras da infância.
Poetas… Vozes que não desistem de anunciar os tesoiros que se escondem no barro da nossa condição.
Jean Paul Sartre foi um filósofo – prefiro chamá-lo de pensador – idolatrado durante várias décadas pela juventude da Europa e da América Latina. A sua obra reflete, ou promove, o tédio da geração que nasceu logo após a Segunda Guerra Mundial, quiçá o seu complexo de culpa, ou a profecia da perda de protagonismo na história e no mundo, a falta de esperança, em definitivo, a agonia que precede a morte, a vertigem da 25ª hora do dia, quando já não há nada a fazer, quando se cai no abismo. Muitos criticaram Heidegger, o verdadeiro criador do existencialismo, por não rejeitar o nazismo. Mas sobre Sartre podemos dizer mais, e pior. Pensava que esta sociedade burguesa e colonialista devia ser destruída, arrasada, queimada e que não restasse nada, e a partir disso nada deveria começar de novo. E que tínhamos que ser agentes ativos dessa mesma destruição, não importando a quem nem como se prejudicasse, como destruíra os seus semelhantes. Sim podemos recriminar Sartre por ter sido o professor e inspirador – ou seja, uma das causas profundas – do genocídio no Camboja, com os Khmers Vermelhos; da Guerra da Argélia, da revolução islâmica iraniana (através do ideólogo, seu discípulo Ali Shariati) e de grande parte das revoluções assassinas e cúmplices do comunismo que se espalharam pelo mundo. A sua repetida afirmação nada me prende ao que escrevi, além de uma nauseabunda incoerência, não pode evitar, evidentemente, que seja vinculado às consequências do que escreveu, e os agentes cármicos tomam nota de tudo. Também é verdade, como disse o professor Nilakantha Sri Ram, que na natureza e nas sociedades humanas estão os que criam as pirâmides e os que as destroem, ou seja, as forças ordenadoras, inteligentes e criadoras, que permitem, no âmbito humano, o nascimento e desenvolvimento de uma civilização como deve ser, e as forças caóticas, agonizantes, filhas do Caos, que permitem que as águas primordiais da própria inexistência dissolvam tudo, degradando o ser humano, mutando-o alquimicamente em animal. Também foi Sartre a força ideológica do maio de 68 francês e dos ecos que se espalharam de tão magno absurdo em todo o orbe. Uma rebelião filha ou simpática do pior do comunismo, mas que na realidade serviu, por efeito de terra queimada, ao pior da sociedade de consumo que entrou a partir daquele momento como uma força desencadeada em toda a Europa, com as suas sequelas de superficialidade, egoísmo, culto ao corpo e tudo o que é banal, adormecimento moral, irresponsabilidade, cobardia, incapacidade de compromisso – quer dizer, impossibilidade de viver de verdade, de não ser uma sombra que simplesmente passa pela terra – tudo isso, em definitivo, a pior forma ou engendro da burguesia, a que tanto se criticava. Platão teria chamado a transição do governo de bronze (Oligarquia ou Plutocracia) ao desgoverno demagógico das massas ou populismos, que necessariamente leva ao caos e a todas as formas da pior tirania, segundo o filósofo da Academia. Aqui sim, já o homem se converte em lobo para o homem e não há nada que contenha esta praga ou lepra moral. As atrocidades do Camboja, o seu genocídio, no qual se pensa que foram assassinadas entre um milhão e meio a três milhões de vítimas, é uma herança direta do pensamento de Sartre. Além disso, Pol Pot e os seus sequazes, protagonistas das mesmas, eram discípulos e seguidores de Sartre e do livro de Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, com prólogo do pensador francês, uma das suas bíblias morais. Este Fanon foi discípulo direto e amado de Sartre, o agente principal da guerra e atrocidades na Argélia, que levou até às últimas consequências as ideias e projetos de Sartre. Sartre elogiou Lenin, e depois Stalin, com quem interagiu, o próprio Pol Pot, é claro, e no final de sua vida com Fidel Castro e Mao Tse Tung. Era um defensor das utopias sociais de todos esses criminosos, distopias, melhor, sem prestar atenção a qualquer tipo de impedimento moral, já fora necessário incendiar o mundo inteiro e dançar embriagados sobre as suas cinzas.
Deixei intencionalmente para o final deste artigo a última anotação [5] do Diário V de Miguel Torga, que é como o resultado deste processo em que ele venceu o veneno, o poder dessa maldição e se levanta contra ela, luta e argumenta contra a sua influência. O poeta renasceu, está purificado e quer proteger os incautos que, quiçá, não tenham a sua força interior para resistir ao feitiço. Ou pelo menos dar-lhes armas para argumentar, com as quais se defender, força de impulso ao outro prato da balança para não se desequilibrar e cair.
Coimbra, 8 de fevereiro de 1951
Lavro aqui mais uma vez o meu protesto contra toda esta filosofia do pessimismo que nos sufoca, e esta literatura do absurdo que nos liquida. Nenhum argumento nem nenhum sortilégio podem apagar no espírito do homem a luz de ilusão que ali bruxuleia. O erro grosseiro dos ironistas e dos derrotistas é não verem que eles próprios desmentem o visco e as profecias, porque, se lutam, é porque confiam. Sobretudo, parece-me uma limitação querer fotografar para a eternidade a face monstruosa dum momento. A Europa pode estar cansada, falida, contaminada por vícios incuráveis; mas a Europa não é o mundo, e ela própria tem ainda pedaços do corpo sem gangrena. Quando todos os analfabetos e famintos que lhe restam tiverem voz e pão, e falem de náusea, quando a herança da história, os bens do espírito forem repartidos igualmente por todos os seus filhos, e o clamor coletivo seja de teimosa renúncia, então sim, soou a sua hora. Mas antes disso, não!
Um equívoco lamentável fez com que se tomassem as palavras literárias que morriam na capa das brochuras por sentimentos reais que agonizavam. E se é verdade que nos livros a tinta dos vocábulos descorou, dentro de cada um de nós o coração continuou a pulsar.
O homem não é só o instante em que se contempla num espelho, mas também a saudade doutras imagens passadas, de que se recorda, e a certeza doutras imagens futuras que adivinha. E lá porque vê presentemente refletida no ribeiro, onde mais uma vez faz de Narciso, não para se namorar, mas para se conhecer, uma face macerada, coberta dos suores da cobardia, nem por isso afoga na corrente os seus olhos. Embora triste e mortificado, continua a viver. E isto é um sinal de confiança. Uma prova de que o mal tem remédio. Se mais não houvesse a esperar da nossa condição, bastava-nos a má consciência com que nos debatemos depois de cada perfídia. Pedimos ou não pedimos à lei que nos socorra, mesmo quando a queremos negar? Ou deixou algum tirano apressada e secretamente as mãos sujas do sangue inocente que verteu?
Há ainda uma poda que é necessário fazer: eliminar da atual angústia que nos atormenta o cinismo que a mácula e o parasitismo que a explora. A verdadeira razão e o verdadeiro instinto mandam curar as feridas. Só os mendigos profissionais deitam sal nas chagas para as avivar.
Alienação humana! Quem é que autorizou meia dúzia de intelectuais impotentes a falar deste modo em nome da humanidade? A chapinhar na lama deles, e a proclamar que é na lama dos outros? Que o testemunho da nossa aventura na terra é um rosário de traições e injustiças, ninguém o nega; que é preciso que se diga isso de todas as maneiras, é evidente; mas nem tudo o que fizemos foi mau, e estamos a começar ainda.
Não! Há-de haver uma salvação possível neste mar de naufrágios, e vão sendo horas de erguer a voz contra os derrotistas da jangada. Aterrados pelas suas fúnebres ladainhas, temo-nos esquecido de reparar nos acenos do horizonte, onde amanhece sempre uma ilha à nossa espera. Não a ilha solitária de Robinson, que seria o recomeçar inútil duma vida de egoísmo e de esterilidade, mas o húmus generoso dum novo mundo onde se possa semear a esperança.
E três anos depois de todo esse processo, numa viagem que o poeta fez ao Brasil, a bordo do navio, numa anotação do seu Diário de 1º de agosto de 1954, ele escreve. É o fim e adeus já distante de um processo vivido, é o olhar para trás e vê-lo com perspetiva:
A diferença que há entre a arte e a realidade é a mesma que existe entre A Náusea de Sartre e o enjoo que sinto [6]. À espécie de enfarto mental que o livro me provocou, corresponde agora um nojo total do corpo e do espírito por qualquer forma de vida, própria ou alheia […] No romance do escritor francês, o mal-estar, a repugnância e o asco vêm-nos através dum sábio doseamento de toxinas laboratoriais, que são a peçonha literária do momento, e de que nos podemos livrar, querendo, recusando-nos pura e simplesmente, à leitura da obra. […]
O que nos leva a uma reflexão filosófica: devemos ler uma obra, simplesmente porque está bem escrita, porque é muito ousada na sua expressão, imaginativa na sua abordagem? Se na primeira página sentirmos o asco do veneno, seguiremos ainda sabendo que vamos adoecer, e quiçá vão nascer no nosso espaço interior monstros que logo não vamos ser capazes de controlar nem assimilar? É semelhante a nos perguntarmos se devemos comer comida em decomposição ou nauseabunda. Aí é fácil responder. Mas quando sentimos que nos faz mal à nossa saúde emocional e mental, mas ainda assim queremos lê-lo, porque nos captura? Quiçá sirva o aforismo clássico, de que o pior castigo de um mau livro, é o bom que poderíamos ter lido numa época em que a vida se vai negar, quando for o momento, a devolver-nos. A saúde podemos recuperá-la e ainda quiçá saiamos fortalecidos, mas o tempo, nunca.
José Carlos Fernández
Almada, 25 de julho de 2018
[1] Dito pelo escritor Jean-Françoise Revel, citado no El País, na edição impressa de 23 de janeiro de 2000.
[2] Romance de Sartre escrito em 1939.[3] Quase não, na verdade ele o acusou como vimos antes. E então, novamente com uma mente lúcida, voltará a fazê-lo.
[4] Poema Apelo à Poesia, na anotação de 3 de fevereiro de 1951.
[5] Na realidade, é a penúltima, a último é um poema com o qual ele termina o livro. É o último em prosa.
[6] O produzido na época pelo navio, é claro.
Imagem de destaque: Miguel Torga e a influência do pensamento de Jean-Paul Sartre (Imagem composta). Creative Commons
Magnífico artigo! Obrigado