No livro VII d’ A República de Platão, Sócrates conta a Gláucon o famoso mito da caverna.

Dois milénios mais tarde os irmãos Lana e Andy Wachowski produzem o filme The Matrix.

Muitas são as pistas que nos indicam uma inspiração platónica deste filme, o que permitirá não só observá-lo sobre uma nova e entusiasmante perspetiva, como tornará mais clara a realidade sobre a qual ambas estas histórias metaforizam.

Sócrates: “Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza?”

Morpheus: “Alguma vez tiveste um sonho, Neo, em que tinhas a certeza de que era real? E se fosses incapaz de acordar desse sonho? Como saberias a diferença entre o mundo dos sonhos e o mundo real?

O seu nome é Neo, “novo” em grego, anagrama de ONE – “um” em inglês; símbolo de um homem novo num mundo de milhares de anos, de um homem na sua plenitude e como símbolo de toda a humanidade.

Neo, neste mundo concreto em que vivemos, é Thomas Andersen. Trabalha numa conceituada empresa de software informático, veste diariamente fato e gravata e vive num apartamento de uma metrópole em tudo como as metrópoles do mundo dos dias de hoje. Ele achava que este quotidiano era real. Nunca conhecera outra realidade. E, no entanto, vivia uma vida dupla, com outro nome, outra roupa, outra ocupação: à noite era um hacker considerado perigoso e procurado pelas autoridades. É assim que, nunca totalmente imbuído no quotidiano de uma das suas vidas opostas, mas mantendo-se periclitantemente em ambas, vivia desapegado delas, procurando em ambas uma resposta…

Assim se desenha o início da história criada pelos irmãos Watchowsky e exposta ao público da grande tela em 1999.

A aventura de Neo começa, tal como a de Alice, na perseguição de um coelho branco. Entremos pois, na sua concorrida toca e prossigamos até à Caverna de Platão.

Iremos encontrar nesta caverna homens agrilhoados desde a infância, de costas voltadas para a entrada, obrigados a contemplar eternamente a parede defronte deles. Atrás deles há uma fogueira que lhes serve de iluminação. E entre eles e a fogueira há um caminho por onde passam outros homens que vão falando entre si e transportando estatuetas e outros objetos. Para os homens da caverna, no entanto, o mundo verdadeiro é composto pelas sombras na parede dos homens e dos objetos que transportam, e pelo eco das suas vozes. Nunca conheceram outra realidade.

Caverna retratada por Platão

Thomas Anderson é um destes homens agrilhoados na caverna, que conhece apenas um mundo composto por projeções do mundo real. A primeira pista para esta analogia surge no início do filme quando, no seu apartamento, interrompido o seu sono, recorre a um livro de nome “Simulacra & Simulation”. Este livro é de facto real, no sentido em que existe no nosso mundo atual. Foi escrito por Jean Baudrillard em 1981 e versa sobre o tema de um mundo simulado, onde a sociedade vive uma simulação da realidade. Os simulacros são símbolos de algo que já não existe, ou que nunca existiu, e a simulação consiste na imitação de um sistema do mundo real que progride no tempo. Segundo é explicado no filme, a Matrix é uma simulação. Consiste num programa informático criado por máquinas inteligentes e a este programa teriam ligado as mentes de todos os humanos, como forma de controlo. Assim, a nossa mente viveria num mundo simulado, imitação do mundo real e nele estaria contida e assim, controlada. Uma definição completa desta palavra, matrix, segundo o dicionário online “thefreedictionary.com” é: situação ou substância envolvente na qual algo se origina, desenvolve ou está contido. Portanto, é um mundo por si só, onde vidas humanas se originam e desenvolvem no tempo.

3 matrix

 

Morpheus: “É o mundo que foi colocado diante dos teus olhos para te cegar da verdade… que és um escravo. Como toda a gente, nasceste num cativeiro … nasceste numa prisão que não podes cheirar, provar ou tocar.”

Simulacros, cópias, projeções, sombras, reflexos: tudo isto quer significar que aquilo que apreendemos com os nossos sentidos não é a realidade. Segundo Platão o mundo sensível é perecível e sempre em mudança, não sendo verdadeiro, mas apenas um reflexo da verdade que terá de ser imutável e eterna.

Assim, na procura desta verdade, se os homens da caverna  fossem “libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância”, seriam obrigados a encarar a luz. Libertar-se-iam do seu mundo de sonho, e acordariam para a luz da realidade.

E quem melhor que o deus grego dos sonhos, Morpheus, para guiar Neo pelo caminho que este não consegue percorrer sozinho por estar de tal forma ligado àquela realidade onde vive? Quem melhor que o criador dos sonhos para libertar o homem das suas correntes e lhe mostrar a saída da caverna?

Neo: “Alguma vez tiveste aquela sensação em que não tens a certeza se estás acordado ou a dormir?”

No filme em análise, a primeira aparição de Morpheus surge quando Neo dorme sobre a sua secretária, enquanto procurava informações sobre este. A sua imagem desaparece e Neo acorda do seu sono, no seu apartamento, dentro da Matrix. Este pequeno prelúdio denúncia as intenções de Morpheus: guiar Neo para fora da Matrix, acordá-lo deste mundo de sonhos.

4 Neo

A primeira tentativa de resgate dá-se quando Neo está no seu escritório e foge dos agentes pelo meio dos cubículos, guiado telefonicamente por Morpheus. Este diz-lhe que a sua salvação passará por descer por um andaime na parte de fora do prédio. Andaime, em Inglês, scaffold, ou matriz, é, como já vimos, uma substância ou situação que envolve e contém algo. Neo está contido na Matrix, e a sua salvação para sair dela é por uma matriz, um andaime. Talvez que, para sair do mundo dos sonhos, não se possa simplesmente fugir, mas ter-se-á de se confrontar com este mundo e perceber-se que não é real.

Morpheus: «O que é “real”? Como definirias “real”? Tens vivido num mundo de sonhos, Neo»

Durante todo o filme a distinção entre o mundo dos sonhos e o mundo real é vincada através da escolha da luz predominante no cenário. Se observarmos com atenção, as cenas no mundo dentro da Matrix são predominantemente verdes, ao contrário da luz no mundo real. Verde que é também a cor do código da programação da Matrix, que assim transparece na interface com as nossas mentes, no interior da Matrix, revelando, através das suas sombras, o seu carácter artificial.

5 Código do programa Matrix

Assim, reparamos que tanto os irmãos Wachowski como Platão fazem uma distinção que se pretende clara entre dois mundos. Um mundo é material e concreto, em constante mudança e, por isso, não totalmente verdadeiro. Este é o mundo das sombras, dos reflexos, o mundo verde dos sonhos e dos simulacros. É a caverna e é a Matrix. O outro é o mundo das formas e das ideias, imutável e eterno e, por isso, necessariamente verdadeiro. O mundo da luz fora da caverna, e fora da Matrix.

Segundo Platão, os prisioneiros que que saíam da caverna ficavam ofuscados com a própria luz, e procurariam refúgio nas sombras para os quais conseguiam olhar. Não sendo uma transição fácil e necessitando de hábito, olhariam primeiro para as sombras, depois para os reflexos dos objetos reais e só depois para os próprios objetos. Assim, também em todo o filme são usados em abundância reflexos de objetos e do próprio Neo, sobretudo antes de sair da Matrix pela primeira vez.

6 Reflexos em matrix

Reflexos em matrix

Saindo da caverna, o prisioneiro, “solto das cadeias e curado da sua ignorância (…), sentiria dor e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora”; “se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos”. Assim se sente Neo quando pela primeira vez contacta com o mundo fora da Matrix:

Morpheus: “Bem vindo ao mundo real.”

Neo: “Estou morto? Porque me doem os olhos?”

Morpheus: “Nunca os usaste antes.”

Sócrates: Seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos.

Morpheus: “Acreditas que estamos no ano 1999 quando, de facto, estamos perto de 2199” “É assim tão difícil de acreditar? As tuas roupas são diferentes. As ligações no teu corpo desapareceram. O teu cabelo está diferente”

Neo: “Não acredito. Não é possível, pára! Deixa-me sair! Quero sair!”

A reação de Neo é aquela que tem qualquer um que é forçado a encarar a realidade, não estando preparado para ela. A confrontação do seu mundo confortavelmente familiar mas terrivelmente falso, com o mundo real mas desconhecido, provocou em Neo esta reação desesperada mas expectável. Ainda assim, Morpheus mantém a sua grande convicção, aquela que o fez libertar Neo da caverna: Neo é o salvador, aquele profeticamente anunciado como capaz de libertar a humanidade dos seus grilhões, da caverna.

Platão conta que alguns prisioneiros libertos da caverna regressavam a esta, depois de terem visto a luz do sol. Mas aí, na caverna, os olhos ficariam cheios de trevas e andariam ofuscados. “as perturbações visuais são duplas, e por dupla causa: da passagem da luz à sombra, e da sombra à luz”.

Morpheus percebe que Neo é um desses homens que vive ainda ofuscado, alguém que desceu da luz à caverna mas não se lembra. E que, por isso, faz “gestos disparatados e [parece] muito ridículo, porque está ofuscado e ainda não se habituou suficientemente às trevas ambientes”. E assim, achando que pertence à caverna, sente que esta não é a verdade porque já viu a realidade, sabe que vive em sonhos, porque já esteve plenamente acordado e, por isso, vive uma vida dupla e desajustada, ainda não embotada pelo quotidiano e pelo hábito das trevas, mas não totalmente distante delas.  Morpheus: “Sentiste-a durante toda a tua vida: alguma coisa está errada com o mundo. Tu não sabes o que é, mas está lá. Como um espinho na tua mente a pôr-te louco”.

O deus grego dos sonhos sabe que, para que Neo seja o salvador da humanidade, terá que ter saído e regressado à caverna. Platão esclarece porquê “ Deve, portanto, cada um por sua vez descer à habitação comum dos outros e habituar-se a observar as trevas. Com efeito, uma vez habituados, sereis mil vezes melhores do que os que lá estão e reconhecereis cada imagem, o que ela é e o que representa, devido a terdes contemplado a verdade relativa ao belo, ao justo e ao bom.” Assim é que, sozinho, Neo vivia desapegado das coisas do mundo dos sonhos, ao contrário dos restantes humanos que o rodeavam, sendo por isso de deduzir que terá já contemplado o mundo real. Do esforço desta nova emancipação, no entanto, resultará uma maior habituação, tanto à luz como às trevas, que o tornará no escolhido para fazer a ponte entre estes dois mundos.

Os prisioneiros da caverna que nunca antes houveram saído desta, vivem de tal forma ligados ao mundo material e falso, adormecidos no seu quotidiano, que se riem de quem tendo descido do mundo da luz com eles priva. E dizem que este tem a vista estragada e que não valia a pena tentar a ascensão. “E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não matariam?”

Cypher, membro da tripulação da nave de Morpheus, comporta-se assim. Foi forçado a sair da Matrix por Morpheus, quando ainda não estava preparado. Todo o seu pensamento, emoções e desejos o prendiam ao falso mundo sensível. Assim ele diz: “ Penso que a Matrix pode ser mais real que este mundo [o mundo real]”. Ele pertence ainda às trevas, ofuscado pela luz imensa da realidade. E é neste desespero que Cypher, contrariamente a Neo que aceita rapidamente a nova realidade, trai quem lhe mostrou a luz e tenta matar toda a tripulação, pelo desejo de voltar para a caverna.

Morpheus: ”Tens de perceber que a maioria destas pessoas não está preparada para ser desligada. E muitas delas são tão inertes e desesperadamente dependentes do sistema.”

Neo, mesmo depois de voltar a libertar-se da Matrix, está de alguma forma preso ao sistema. O seu corpo libertou-se mas a sua mente não.  “ Tens de largar tudo, Neo. Medo, dúvida e falta de fé. Liberta a tua mente.” A sua mente está repleta de medo e dúvida e os agentes que perseguem Neo pela Matrix, não sendo humanos, poderão ser as próprias projeções mentais deste medo e desta dúvida. O agente Smith, uma das autoridades dentro da Matrix que vive na perseguição de Neo e dos que com ele querem destruir o sistema, torna esta metáfora mais clara quando diz: “É repugnante. É, não é? Tenho de sair daqui. Tenho que libertar-me. E nesta mente está a chave. A minha chave.”

A mente que se quer libertar repudia o mundo dos sentidos e quer sair dele, estando, no entanto, presa a ele pela dúvida e pelo medo, porque a própria mente pertence a este mundo. Trabalha com aquilo que os sentidos lhe dão e torna esse mundo desejável de mais e mais experiências, tornando a liberdade destas amarras temível, porque desconhecida.

É no combate entre Neo e o agente Smith, no final do filme, que aquele vai ganhando a coragem para combater o seu próprio medo, e libertar a sua mente.

Platão diz: “Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que no mundo do visível foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.”

Ele defendia que o corpo do homem pertencia ao mundo sensível, à caverna, e a alma ao mundo inteligível das ideias, ao mundo fora da caverna. É neste mundo das ideias que os arquétipos do Bem, do Belo, do Justo e do Bom residem. E é daqui que projetam as suas manifestações no mundo sensível, tal como a luz da fogueira projetava as sombras dos objetos reais. Acima de todos, o Bem, a fonte da luz, é o ideal que derrama a luz da verdade em todas as coisas. A alma humana terá estado, no passado, no mundo das ideias, mas acordou num corpo humano esquecendo-se destas. É neste corpo e neste mundo perecível que se vai lembrando progressivamente destes ideais e vai surgindo o desejo de verdade. Também assim os prisioneiros libertos, vindos do mundo da luz, retornam às sombras e vão-se habituando a estas. Contudo, a luz reflete-se nas águas e relembra-os da sua existência, incitando-os, no seu íntimo, à procura da verdade, à saída da caverna e ao reencontro com a luz.

O primeiro passo para a verdadeira sabedoria passará por sair fisicamente da caverna, ou seja, pela libertação do corpo físico.

“Finalmente seria capaz de olhar para o Sol e de contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer outro sítio, mas ele mesmo, no seu lugar”. No entanto, e como já vimos, a mente prende-se às sombras da caverna através do medo e da dúvida. É necessário que se liberte, pois, a mente. “Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e tudo dirige no mundo visível”.

Neo, desde o inicio do filme, representa a Personalidade do Homem. Ele é substância, forma, energia, psiquismo e mente. Existe mesmo uma noção ascendente dos componentes do homem no filme: “o corpo não pode viver sem a mente”.

Trinity, a personagem iniciadora da longa metragem, representa a Alma do Homem. A trindade da alma é algo referido por muitas religiões e diversos autores. Inclusivamente Platão diz ser a alma composta por 3 elementos: a Alma Racional – é imortal, localiza-se na cabeça e tem como virtude principal a Sabedoria; a Alma Irascível – localiza-se no peito e tem a virtude da Força; e a Alma Concupiscente – localizada no ventre, tendo como virtude a Moderação.  Trinity é uma personagem que facilmente abarca a sabedoria, a força e a moderação. Ela observa silenciosamente Neo e está presente em todos os passos fundamentais à sua libertação. O filme começa com Trinity, a alma tríplice, a observar Neo, a personalidade humana, num quarto de hotel número 303, ao som da música intitulada “Trinity Infinity” (Trindade Infinita ou Santíssima Trindade). Porque a alma é infinita e imortal e deseja a verdade, irá guiar o homem pelo caminho da verdade. E o desejo de verdade é, segundo Platão, o Amor. Todo o verdadeiro filosofo é inspirado a procurar a verdade pelo Amor. Assim, diz Oracle, personagem conhecedora da Verdade para além do Tempo: ”Ser o Escolhido é como estar enamorado. Ninguém pode dizer-to. Tu simplesmente sabes”. Para que Neo passe a ser “uno” (the One), ou seja, para que esteja completo em todos os seus componentes e consciente da sua alma e corpo, tem de estar inspirado pelo Amor. E este amor pela verdade elevará a sua alma a planos mais elevados e livres das amarras, das sombras e do medo.

Assim, retornando ao mesmo quarto de hotel do início, no final do filme, Neo morre na luta com o agente Smith. Morre o seu corpo, pelo menos. Porque Trinity, a sua alma, está lá, como sempre e, através do seu Amor, salva-o e liberta-o para que este se transforme no ONE. Nesta sua condição elevada pode realmente conhecer o ser divino, o sol, a fonte da luz que irradia sobre os objetos e dá origem às sombras, o Bem.