Na Disney World, na Flórida, por ocasião do primeiro centenário do nascimento de Walt Disney, foi-lhe erigida uma estátua em bronze, com o braço direito estendido e erguido, como se abrisse passo entre as brumas ou chamando e saudando todos os visitantes. Richard Sherman, um dos dois irmãos músicos que criaram muitas das canções da Disney, foi convidado para a comemoração, para interpretar a canção preferida deste mago e artista do século XX. O músico não hesitou nem um momento; segundo ele, a canção preferida de Walt Disney é a que começa com Feed the birds (Alimenta os pássaros) e que mais tarde se chamou Tuppence, abreviatura de Two Pence, dois cêntimos, o humilde pedido para dar pão aos pássaros de Mary Poppins.

Enquanto ele tocava piano e cantava esta maravilhosa oração, um pássaro desceu do céu, pairou mesmo por cima do músico e depois voltou a subir e perdeu-se no azul infinito. Na filmagem que foi feita deste acontecimento, podemos ver claramente a sombra de um pássaro a esvoaçar e depois a sair do alcance da câmara.

Esta canção foi a pedra angular do filme Mary Poppins (1964), a mais premiada de todas as películas de Walt Disney, com doze nomeações para os Óscares, dos quais acabou por ganhar a Melhor Canção (Chim chim Cher ee), a Melhor Atriz Principal (a jovem Julie Andrews), os Melhores Efeitos Especiais (verdadeiramente soberbos para a época), a Melhor Banda Sonora e a Melhor Montagem. Depois de lutar durante mais de vinte anos para obter a autorização da autora deste romance infantil, Pamela L. Travers, tudo começou com esta canção, Feed the birds.

Walt Disney deu aos irmãos Sherman o livro para lerem, escolherem histórias e transformarem-nas em canções, que seriam depois ilustradas por Don Dagradi. A estas cenas seria dado um guião que construiria a história do princípio ao fim (ao contrário do que acontece atualmente, em que as histórias têm tantas retrospetivas que não sabemos se estamos no presente, no passado, no futuro ou algures no meio). Por coincidência, os irmãos Sherman escolheram exatamente os mesmos capítulos do livro Mary Poppins, que Walt Disney, o que fez com que este decidisse imediatamente contratá-los: estavam em sintonia. Especialmente quando interpretaram algumas das canções que já tinham criado. A primeira e mais importante foi Feed the birds, que deixou Walt Disney visivelmente impressionado e disse que era exatamente essa a ideia, que era essa a alma do que ele queria dizer neste filme.

Jane Darwell alimentando os pássaros, no filme de Mary Poppins. Facebook.

Quarenta anos mais tarde, numa edição comemorativa de Mary Poppins, Richard Sherman foi entrevistado sobre este encontro e disse, emocionado: Na verdade, é o eixo de todo o filme, porque não custa assim tanto fazer o que está correto, fazer o que é agradável, o que é amável, mostrar um pouco de amor, não custa mais do que «dois cêntimos».

No entanto, embora o músico pensasse que se tratava de caridade, não é esse o eixo do filme; é um efeito importante. O eixo, e aquilo que penso a que Walt Disney se referia, é o idealismo, o desejo de fazer o bem e o reto, de procurar a perfeição e não o interesse próprio. Por outras palavras, alimentar os pássaros que esvoaçam no nosso espaço interior e que fazem ninho nos nossos corações, os ideais. Quando em As Leis de Platão se quer homenagear os deuses, diz-se que devemos pintar, como fizeram tantas civilizações, o voo livre dos pássaros, pois eles representam a liberdade interior, nascida da presença do ideal na alma humana.

Todo o filme de Mary Poppins é centrado nisso, e ela é como uma pedra filosofal humana, que transforma em ouro espiritual tudo o que toca, em luz, beleza, idealismo, perfeição, e devolve a harmonia ao que a tinha perdido. Ela é a representação do Adepto, do Grande Iniciado, que cura as almas que se precipitam no nada da matéria e do egoísmo. Na cena de simpatia em que mede os seus pupilos, ela é, e tal é a sua medida, praticamente perfeita, e abre as portas a todos os que estão preparados para um mundo maravilhoso, o mundo da magia permanente, um mundo que as crianças captam na sua inocência – como a humanidade na sua infância, com o olho interior ainda não velado pela matéria – mas que os adultos esquecem ou renegam. E aí já não se apercebem de que a saúde da alma humana, o seu sentido e medida, a sua harmonia e perfeição, são esses pássaros da alma, que morrem se não forem alimentados, e onde a esperança se perde e morre se o fizerem, pois tecem em nós a ligação com a eternidade, com aquilo que não morre. Quando os pássaros estão mortos, frios e hirtos, o fogo apaga-se, e o Homem torna-se uma máquina agitada pelas convulsões dos seus desejos.

 

Generosidade e amor, para além de migalhas de pão

Richard Sherman tem razão quando acrescenta: É isto que a canção quer exprimir, não se trata de migalhas de pão, mas de generosidade e amor.

Esta canção é a pedra angular do filme e, tal como o pirâmidão das colossais construções egípcias, a primeira coisa a ser feita, mas a última a ser colocada: o alfa e o ómega. Se a sua canção veio primeiro, a cena da mulher-pássaro foi a última a ser filmada. Walt Disney especificou quem queria para interpretar esta personagem enigmática. Seria Jane Darwell, uma mulher de 84 anos que vivia num hospital, com um problema cardíaco. Walt Disney foi buscá-la numa limusina, disse-lhe que as filmagens demorariam várias horas e mostrou-lhe todos os cenários…, tratou-a como uma rainha e a atriz chorou de emoção perante a sua delicada cortesia e grande amabilidade.

A sua letra e música são sublimes, pois é uma das mais belas canções do século XX, uma oração, um hino à presença divina na alma humana sob a forma de pássaros que esvoaçam no infinito e querem refugiar-se e aninhar-se no nosso coração.

A canção é introduzida pelas palavras de Mary Poppins:

Às vezes, uma simples minúcia pode ser muito importante, pois não é importante manter a alma viva?

Feed the birds
Early each day to the steps of Saint Paul’s
The little old bird woman comes.
In her own special way to the people she calls,
Come, buy me bags full of crumbs.
Come feed the little birds, show them you care
And you’ll be glad if you do
 
Their young ones are hungry, their nests are sob are
All it takes is two pence from you…
Feed the birds that’s what she cries
While overhead, her birds, fill the skies.
 
All around the catedral, the saints and apostles
Look down as she sells her wares.
Although you can’t see it, you know they are smiling
Each time someone shows that he cares.
 
Though her words are simple and few
Listen, listen, she’s calling to you
Feed the birds, two pence a bag
Two pence, two pence a bag.
 
Though her words are simple and few
Listen, listen, she’s calling to you
Feed the birds, two pence a bag
Two pence, two pence a bag.

Alimenta os pássaros

Todos os dias, bem cedo, nos degraus de Saint Paul
A velhinha dos pássaros vem.
Com o seu jeito especial, ela chama as pessoas,
Venham, comprem-me sacos cheios de migalhas.
Vem dar de comer aos passarinhos, mostra-lhes que te preocupas
E ficarás feliz se o fizeres

Os seus filhotes têm fome, os seus ninhos estão vazios
Tudo o que é preciso são dois cêntimos teus…
Alimenta os pássaros é o que ela grita
Enquanto no alto, os seus pássaros enchem os céus.

À volta da catedral, os santos e os apóstolos
Olham para baixo enquanto ela vende os seus bens.
Embora não se possa ver, sabe-se que estão a sorrir
Cada vez que alguém mostra que se interessa.

Embora as suas palavras sejam simples e poucas
Ouve, ouve, ela está a chamar-te
Alimenta os pássaros, dois cêntimos por saco
Dois cêntimos, dois cêntimos por saco.

Embora as suas palavras sejam simples e poucas
Ouçam, ouçam, ela está a chamar-vos
Alimenta os pássaros, dois cêntimos por saco
Dois cêntimos, dois cêntimos por saco.

Estátua de Mary Poppins em Leicester, Matt Brown. Creative Commons.

Uma belíssima canção que o leitor deve ouvir e ver, pois caso contrário, perde todo o encanto esta música e imagens, que são uma bênção do céu.

Insisto que, para além do seu significado literal, os pássaros são também um símbolo das Ideias Puras (os arquétipos de Platão): o Bem, a Beleza, a Justiça, a Verdade e toda a sua descendência celeste, no seio do verdadeiro Amor, com maiúsculas. Estas Aves vivem na alma humana, desejando manifestá-la e inspirá-la, na maioria das vezes esfomeadas, pois os dois cêntimos que a canção diz, ou seja, a energia e o tempo que dispomos, usamo-los em qualquer banalidade, esquecendo a verdadeira razão da nossa existência, a única coisa que nos pode fazer realmente felizes: o esvoaçar livre, alegre e luminoso desses pássaros divinos dentro de nós, derramando, com o bater das suas asas, sobre cada um de nós, como um orvalho divino, as bênçãos do céu. A Mãe Pássaro mencionada nesta inspirada canção de Mary Poppins é o poder que faz evoluir o ser humano das trevas para a luz, da morte para a vida, do irreal para o real, segundo a conhecida expressão dos Upanishads.

José Carlos Fernández

Artigo publicado em 31 de outubro de 2016, na Revista Esfinge

Imagem de destaque: Captura de ecrã de Julie Andrews do trailer do filme Mary Poppins. Domínio Público.