Há um par de meses Marina Colasanti deixou-nos, partiu para aquele mundo maravilhoso de imagens que pintava com as suas palavras e os seus traços, e que tantos prémios reconheceram no Brasil. Podemos, no reino da mente e da imaginação, ou seja, no reino puramente humano, conversar com ela na sua dimensão de númenos e encantamentos, no ritmo e no sentido dos seus poemas. Podemos sentir as labaredas da sua alegria interior, conquistada no dia a dia, aquilo a que os gregos chamavam beleza da alma, eterna juventude, Afrodite de Ouro, e que a fez, ao contrário de nós, humildes mortais, caminhar tão levemente sobre a terra, deixando atrás de si uma estela de sorrisos e de compreensão, que tão bem percebemos nas suas últimas entrevistas. Mas, como ela própria diz, quanta alquimia de almas foi necessária antes.

Se apenas

Atravessei descalça
o ferro e o fogo
deixando atrás de mim
rastro de pranto
como se só o sofrer me fosse amigo.

Agora quando o fim já se faz perto
e caminho na estrada sem espanto
sei que o antigo penar
foi-se no tempo
e me adoça a garganta
quando canto.

Grande vida adquiram os seus livros de contos, sendo ela mesma que fazia os desenhos, pois havia sido desenhadora e gravadora de metais na juventude. Com mais de 70 livros, a maioria de contos de fadas, recebeu, a primeira mulher a fazê-lo, o Prémio Machado de Assis em 2023 e nove vezes o Prémio Jabuti, os dois mais importantes prémios da nação brasileira. A sua relação com o mundo feérico, absorvendo as suas emanações subtis, fez com que ela própria se tornasse cada vez mais uma fada, e os estudiosos dizem que com ela os contos de fadas, já um pouco exaustos, recebem novo vigor e entram numa nova dimensão.

Infelizmente, só tive a sorte de conhecer esta escritora há poucos meses, e apenas através da minha amiga Joaquina Caeiro, devota da sua pena.

A leitura dos contos do volume Os Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento pareceu-me deliciosa. De uma família de artistas plásticos e ela própria pintora, as suas histórias são galerias de imagens encantadas, que prendem o leitor pela sua beleza e por tudo o que sugerem, pela filosofia silenciosa que nelas murmura.

As estátuas de antigos reis convertidos em pedra que correm atrás da jovem no labirinto; ou o tempo cansado de si próprio, na sua longa peregrinação até descobrir que não é o motor, mas o simples cenário onde tudo se esforça; o jardineiro Pigmalião apaixonado e fundido com uma escultura de rosas e flores; a jovem cuja imagem é roubada por uma ribeira (a da própria vida quotidiana?) e deve superar as provas iniciáticas até recuperá-la novamente, vencendo a grande feiticeira dos espelhos em sua caverna; o príncipe encantado pelo murmúrio do mar de um búzio mágico, e as lágrimas em seu interior de uma pequena sereia; ou a emulação infinita entre o céu e o mar e como ambos se entrelaçam na vida; e outras sete histórias mais conformam este belo tesouro, de apenas um de seus livros.

Marina Colasanti em 1968. Domínio Público.

E talvez o conto mais assombroso deste volume seja o primeiro, pelas suas alusões cosmogónicas: o conto da tecedeira. Grande mãe, essa jovem virgem, na tecelagem que nasce das suas mãos, e que começa tudo com um raio de luz horizontal, o da aurora (como o diâmetro horizontal do Eterno Feminino nas Estâncias de Dzyan da Doutrina Secreta), e a ele regressa, no fim de tudo, livre dos sonhos, e também dos pesadelos que criara, arrebatados alguns deles pela febre da cobiça.

E tecendo, ela própria sentiu o tempo em que a sua tristeza parecia maior do que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou que seria bom voltar a viver sozinha, depois de desfazer tudo o que tinha tecido, incluindo o marido que avaro, a obrigava a tecer cada vez mais, regressa como Prakriti, a Natureza, na filosofia hindu, ao estado de perfeita pureza: Então, como se ouvisse a chegada do Sol, a moça escolheu uma linha clara. E passou-a lentamente pelos fios, um delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Ah, o mistério das feridas que sangram a vida!…

Frutos e flores

Meu amado me diz
que sou como maçã
cortada ao meio.
As sementes eu tenho
é bem verdade.
E a simetria das curvas.
Tive um certo rubor
na pele lisa
que não sei
se ainda tenho.
Mas se em abril floresce
a macieira
eu maçã feita
e pra lá de madura
ainda me desdobro
em brancas flores
cada vez que sua faca
me traspassa.

Adeus e obrigado, Marina Colasanti! Por uma vida cheia de bênçãos celestes para os outros, por nos trazeres a chama do teu azul infinito. Às nossas mentes, já debilitadas pelas correntes fétidas do século. Obrigado, fada madrinha do Menino de Ouro que canta e dança nas nossas almas, quando lhe damos espaço na nossa vida interior.

José Carlos Fernández

Imagem de destaque: A escritora brasileira Marina Colasanti, Alessandra Colasanti. Creative Commons.