“Education is our passport to the future, for tomorrow belongs to the people who prepare for it today.”
“A educação é o nosso passaporte para o futuro, pois o amanhã pertence às pessoas que se preparam hoje.”
Malcolm X é um filme que aborda a vida de um sujeito, repleta de acontecimentos que marcam uma linha cronológica similar à grande parte dos afro-americanos oprimidos socialmente no século XX. A mensagem do mesmo é mantida viva e o filme foi de grande contribuição para incentivar a importância da luta por direitos iguais, compensação histórica e maneiras de se trilhar o futuro.
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Malcolm X em março de 1964. Domínio Público
Durante todo o enredo do filme, encontram-se cenas icónicas, marcadas na história, sendo revividas pelo ator que o interpretou, Denzel Washington, que expõe tamanha responsabilidade. “Não era fácil e, ficar de pé em frente de 200, 2000 pessoas, fazendo os discursos, sentindo e tentando despertar nas pessoas com o que você diz, criando esperança que aconteça, é algo intimidante” (DENZEL…,2013). Mas, também, alguns acontecimentos foram marcantes por trás das câmaras, como: escolha de direção, conduta do elenco e orçamentos. Para tal, era um grande desafio a ser trilhado. Foi filmado no ano de 1991, mas acabou por ser lançado apenas no ano de 1992, após o diretor notar que necessitaria de um orçamento maior do que o liberado pelo estúdio, assim, o mesmo arrecadou dinheiro “como presentes” de diversos artistas e atletas afro-americanos para a conclusão do projeto. Dentro desta obra riquíssima de aprendizados e culturas, foi realizado um filtro para que num momento chave, viesse a convergir com a proposta do filósofo e professor, Paulo Freire. Esse momento é o da prisão de Malcolm, no filme, e está em 59:00 minutos de 3:35 (Malcolm X, 1992) e na autobiografia Chapter 9: Caught (X; HALEY, 2015). O ato que é posto em destaque, é o fato de Malcolm ser tocado pela educação justamente quando encontra-se fora do seu meio comum, na sua privação de liberdade e, principalmente, quando percebe que é através da educação que conseguirá libertar, a si e ao seu povo, da opressão social.
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Cartaz do filme. Destaca Denzel Washington. Wikipédia
Freire sempre explicitou o papel da educação não convencional para quaisquer indivíduos, porém, a percepção torna-se mais presente nos indivíduos menos favorecidos.
Pode a educação operar a mudança? De que maneira essa mudança ocorre?
Paulo Freire combate a concepção ingénua da pedagogia que se crê motor ou alavanca da transformação social e política. Combate igualmente a concepção oposta, o pessimismo sociológico que consiste em dizer que a educação reproduz mecanicamente a sociedade. Nesse terreno em que ele analisa as possibilidades e as limitações da educação, nasce um pensamento pedagógico que leva o educador e todo profissional a se engajar social e politicamente, a perceber as possibilidades de ação social e cultural na luta pela transformação das estruturas opressivas da sociedade. (FREIRE, 2001, p.4)
Malcolm adquiriu conteúdos emancipatórios através dos estudos, teve ânimo, força de vontade e coragem para poder libertar os demais da sua etnia, contra a alienação e preconceitos vividos naquele momento histórico. Assim, a sua nova missão de liberdade para com o seu povo, as suas mensagens e ensinamentos, se perpetuam até os dias atuais, tanto como base epistemológica, como também um imenso símbolo que se tornou. Malcolm X trouxe à luz de todo o povo afro-americano a consciência dos seus direitos como seres humanos e indivíduos constitutivos, participantes daquela sociedade. O seu nome torna-se eterno pela devoção a um grito de socorro estabelecido pelo povo oprimido no continente americano.
De que maneira o indivíduo pode emancipar-se? Do que ou de quem ele se liberta? O que faz a partir do momento em que conquista sua autonomia?
É notório que o cinema possibilita visões e analogias diferentes e até distantes daquelas em que o indivíduo costuma ver. Nesse sentido, da mesma maneira que Malcolm é instigado pelos livros, o filme que trata da figura, pode ter a mesma função dos livros para os espectadores.
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A cena do crime, no Audubon Ballroom. Os círculos ao fundo assinalam os buracos de balas. Domínio Público
A proposta no desenvolvimento deste texto é traçar uma linha com a teoria de Freire sobre a pedagogia do oprimido e acompanhá-la vividamente ao assistir à trajetória da vida de Malcolm, com base nos materiais bibliográficos e recursos audiovisuais como prova a aplicabilidade dos fundamentos do filósofo.
Este artigo pretende apoiar-se nas entrevistas com o elenco, direção e produção do filme. Também a própria autobiografia de Malcolm, que foi de onde surgiram as informações para a produção do filme em simultâneo com os artigos, palestras e livros de Paulo Freire. Após a análise de todos esses materiais foi feita analogia com o momento especial do filme, conforme o que fora publicado na autobiografia. Assim, utiliza-se o exemplo obtido através do filme como prova da aplicação das propostas de Paulo Freire.
No meio da filosofia da educação diante da visão do mundo, como primeiro quesito de aprendizagem, Freire expõe que não é no meio convencional de educação, abrangendo as escolas, que se adquire uma verdadeira análise crítica sobre a vida ou um caráter emancipatório diante do mundo. Para Freire (2001), enquanto os “grandes debates”, os “seminários revolucionários” permanecerem dentro da escola, cada vez mais isolados dos problemas reais e longe das decisões políticas, não existirá uma educação libertadora.
Paulo Freire, sendo método de alfabetização, tem como ideia animadora toda a amplitude humana da “educação como prática da liberdade’’, o que em regime de dominação, só se pode produzir e desenvolver na dinâmica de uma “pedagogia do oprimido”.
Somente o despertar da sua alienação, da sua impotencialidade momentânea, do produto que fora tornado pelo meio, fará com que o próprio liberte-se, e assim venha a buscar na educação, sua liberdade de expressão, pensamento crítico e identidade como ser humano. Isso só se torna possível através da conscientização, uma vez que para o filósofo (1987) hegelianamente, diríamos: a verdade do opressor reside na consciência do oprimido.
Pelo mesmo princípio que Malcolm sofreu influência de aprimorar os seus valores para uma causa maior de liberdade dos demais, e não apenas a si, Paulo Freire trata da importância que não será encontrada no âmbito individual/pessoal com relação à desalienação. É um movimento para as massas!
A educação, e o papel do educador, não é só isso. Se houve tempo em que o papel do pedagogo parecia ser este, hoje, o educador, o intelectual engajado, cimentado com o oprimido, não pode limitar-se a conscientizar dentro da sala de aula. Deverá aprender a se conscientizar com a massa.
Analogias relacionadas com a vida e os cenários passados pela personagem de Malcolm no filme, são correlacionadas à proposta educacional de Paulo Freire, expressando e comprovando a aplicabilidade de algumas das teorias do intelectual.
O filme enfatiza o modo que Malcolm obtém a sua autonomia, capacitação e influência sobre os demais do seu povo, habilidades adquiridas através da educação.
Como todos ou boa parte dos negros (afro-americanos) “convidados” a se juntar a América, Malcolm não teve um início de vida tão favorável devido à somatização das cargas vindas das gerações antecedentes. Filho de um casal mestiço, pai negro e mãe branca, Malcolm e os seus nove irmãos, veem-se separados logo na infância pela sua mãe, dona de casa, não conseguir mantê-los após o assassinato do seu pai pelo Ku Klux Klan.
Após ser passado para um lar adotivo, desde cedo demonstrou grande aptidão para as ciências humanas e desenvoltura académica, porém, sempre fora lembrado de maneira exaustiva da sua cor, a qual seria decisiva para o seu local, o seu destino e as suas futuras escolhas (dentro dos conceitos estabelecidos naquela sociedade). Sem figuras em quem se basear e, principalmente, a ausência daqueles os quais poderiam lhe causar empatia ao ponto de se inspirar, Malcolm encontra nas ruas, no trabalho e no quotidiano, uma forma de constituir a sua visão de mundo, a mesma que é presente, não apenas para Malcolm, mas para boa parte dos reclusos e excluídos socialmente. Assim, Malcolm acaba por encontrar abrigo, acolhimento e reconhecimento no seio da criminalidade.
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Foto policial de Malcolm X cerca de 1944. Domínio Público
Sob as margens da sociedade, Malcolm tem um período nada encantador e muito similar ao caminho de crianças sem escolhas pelo bem-estar social. Acaba sendo preso mediante 14 acusações, de 8 a 10 anos de prisão, sobre uma suposta tentativa de roubo, enquanto os suas comparsas (duas mulheres brancas) recebem 2 anos no reformatório feminino. “As meninas receberam fiança baixa, eles ainda eram ladrões brancos ou não. O pior crime deles foi o envolvimento com os Negroes. mas Shorty e eu tínhamos uma fiança fixada em $10.000 cada, que eles sabiam que não poderíamos levantar.(X, p.152).
“Eu apanhei dez anos. as raparigas apanharam de um a cinco anos, no reformatório feminino de Framingham, Massachusetts”. Entretanto, uma vez lá, na sua “privação de liberdade”, Malcolm perde-se para depois se encontrar.
Para que seja possível entrar-se na visão que Malcolm vivia naquele instante, é importante salientar o facto de que Malcolm partiu em busca dos conhecimentos, junto ou através da experiência religiosa, a mesma que passa a ser um combustível para a sua jornada intelectual e revolucionária. A experiência inovadora ao desconhecido, em contato com o vivido, é causada pelo choque realizado nos redirecionamentos das suas perspectivas e valores. “Eu havia afundado no fundo da sociedade do homem branco americano quando, logo agora, na prisão, encontrei Alá e a religião do Islão, e isso transformou completamente minha vida”.(X,p.153).
Diante deste prisma, Malcolm é retirado do meio e contexto em que estava, no mesmo momento em que se vê obrigado a conviver n um novo local com uma nova perspectiva. O primeiro ponto de reflexão encontra-se sobre o indivíduo igual a Malcolm, ter a oportunidade de olhar para dentro e, assim, estabelecer sua identidade.
Somente um ser que é capaz de sair do seu contexto, de “distanciar-se” dele para ficar com ele; capaz de admirá-lo para, objetivando-o, transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico, somente este é capaz por tudo isto, de comprometer-se.
De modo definitivo para Paulo Freire, uma vez que o indivíduo toma consciência de si, como pessoa, o segundo ponto advém de um certo contraste dele com o mundo, equiparando aos valores que tem consigo, os valores que lhe foram atribuídos segundo a sociedade em que está inserido e os valores que quer para si e a sua comunidade, a partir da tomada de consciência.
Uma vez preso e oprimido, é obrigado a adequar-se ao novo local onde passaria bons anos de sua vida. Contudo, mesmo recluso, Malcolm teve contato com o contexto e meio religioso (muçulmano) e com as formações histórico-políticas da sua sociedade, tal conhecimento advindo dos livros e sob influência de um colega, o instigou de grande maneira a despertar em si, e nos outros, o que havia sentido na sua própria pele, tomando consigo um novo sentido e uma nova jornada educacional a percorrer.
Paulo Freire sempre salienta a importância, não apenas da emancipação do indivíduo e dos meios para socorrê-la, mas a necessidade da capacitação de quem faz o papel do “educador”. É necessário que o educador assuma um papel de humildade, empatia e similaridade com os demais. O sentido do educador não pode ser o de simples repasse de informações embutidas e sim de somatização da cultura do educando com o mundo que o cerca. E esse processo fortifica-se através da leitura e da escrita. Assim:
Compreender o mundo por meio da leitura e da escrita é uma poderosa fonte de prazer e descobertas descritas pelo autor. A experiência com o texto, seja como escritor, seja como leitor, está sempre nos libertando de nós mesmos, da tradição, de Deus, da ordem, dos próprios nomes. Surge aí, no texto, a importância da transgressão. A criação é sempre um processo de libertação crítica e transgressiva.
Malcolm empenha-se na sua jornada de estudos, procurando evoluir e quebrar paradigmas impostos. Adotou a missão de entrar no caminho em que considerava certo, até a sua saída da prisão. Nesse sentido, o certo para o mesmo era os estudos e tudo que englobasse a visão real do mundo, proveniente dos livros e cursos que fizera. Durante o período recluso, trocava cartas com um grande ídolo de uma segregação político-religiosa que o fez criar interesse sobre as condutas e valores que o levariam a se tornar um “novo homem” Ao sair, teve a honra de conhecer o mestre da sua segregação, Elijah Muhammad, a mesma que o tornou ministro, ganhando visibilidade na sua comunidade. Dali para a frente, Malcolm X passa a ter noção de sua identidade, descobre os seus valores e passa a criar conceitos para a sua comunidade. Adota um sentido de vida em prol de revolucionar o pensamento dos afro-americanos e de resgatar a cultura dos ancestrais, jornada que lhe tornou a figura incomparável que boa parte do mundo conhece hoje.
Do ponto de vista de uma tal visão da educação, é da intimidade das consciências, movidas pela bondade dos corações, que o mundo se refaz. E, já que a educação modela as almas e recria os corações, ela é a alavanca das mudanças sociais.
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Elijah Muhammad. Wikipédia
Para Paulo Freire, o ato de querer mudar, de ser melhor ou de aprimorar o que já está estabelecido, é inevitável para quem está numa situação de opressão, pois trata-se de humanização, do que faz os homens serem o que são, nisso se consiste a historicidade.
Graças ao acréscimo de meios de conhecimento proporcionados pela leitura e a escrita, um deciframento mais profundo tal como foi descoberto pelo mundo, uma “releitura” do mundo pela primeira vez.
Certamente, o filme mostra o mesmo sujeito, mas em visões diferentes, tanto pela parte do telespectador, como por parte da própria pessoa. De delinquente à figura pública, Malcolm X passa a ser perseguido por pessoas, dentro e fora da sua comunidade, uma vez que o compromisso com a sua comunidade obtém grande sucesso no seu processo libertador das massas e, certamente, isso acaba por causar desconforto àqueles que o oprimem e alienam.
O humanismo é um compromisso radical com o homem concreto. Compromisso que se orienta no sentido de transformação de qualquer situação objetiva na qual o homem concreto esteja sendo impedido de ser mais.
Na mesma linha sobre os “Seres para outro”, de Freire, Malcolm torna-se um grande obstáculo para os detentores do alheamento das massas. Os seus discursos sempre vinham a inferir diante do centro de decisão económica e cultural da sociedade vigente. Se, por um momento, houve falta de autenticidade para a comunidade afro-americana, fazendo com que os mesmos viessem a ter um sentimento de integrar-se, segundo o que era implementado pelos alienadores daquele período, após os discursos de Malcolm X, a imposição da cultura ancestral do seu povo era o que deveria ser foco de imposição e orgulho. Para Paulo Freire, um dos princípios da conscientização está em notar os valores internos da sua cultura e ver o mundo entendendo os seus próprios atributos e potencialidade.
Os que foram criados desde início como homens livres não se conhecem pela coragem, riqueza ou qualidades dessa espécie, mas se distinguem sobretudo pela maneira de falar, e é este o sinal mais seguro da educação de cada um de nós, e aqueles que sabem usar bem da palavra, não só são poderosos no seu país, como honrados nos outros.
Malcolm X não deixa dúvidas que foi uma figura marcante para o seu povo e para todos que buscam inspiração de justiça à emancipação das massas. É certo que a sua figura nasce após o período de resguardo em que foi obrigado e, assim, tornou-se um novo homem tendo na educação, obtidas das suas leituras, as ferramentas para libertar-se do contexto em que estava inserido. Com a educação que obteve chances de percorrer a sua grande jornada para lutar pelos direitos de seu povo que sofreu e sofre opressões até os dias atuais. Ao observar atentamente esse período da vida de Malcolm, com o auxílio do filme de Spike Lee, fica evidente a padronização que o sistema opressor implanta sobre os indivíduos nele inseridos, mas, também fica claro o papel que a educação implementa, como Paulo Freire sempre situou, e seu caráter transformador e evolutivo.
Em primeiro lugar, porém, é preciso que a educação dê carne e espírito ao modelo de ser humano virtuoso que, então, instaura uma sociedade justa e bela. Nada poderá ser feito antes que uma geração inteira de gente boa e justa assuma a tarefa de criar a sociedade ideal.
No momento em que o indivíduo cria sustentação educacional para aprimorar as suas habilidades, é quase que inevitável não fluir diante daquilo que toma como propósito de vida. A sua nova noção abrangente faz com que o mesmo crie empatia e compromisso com os outros que viveram em contextos iguais ou similares. A educação muda e enriquece o melhor que há no homem, para a libertação dos oprimidos, a sua eficiência é fundamental. Neste caso, foi missionária por Paulo Freire e vivida na pele do Herói Malcolm X.
Yuri Raposo
Imagem de destaque: Paulo Freire, Faculdade de Educação e Humanidades, Universidade de Bío-Bío, Chile. Creative Commons
Baita artigo, fico inclusive emocionado em ver a transformação que houve em vc ao se adentrar em conhecimento tão humanos !
Parabéns Yuri por esse incrível artigo!