É uma discussão que atravessa três milênios, aquela sobre a real natureza da concepção virginal de Maria de Nazaré, e em até que ponto a existência carnal de Jesus a deva o mérito da genética. Uma das mais aceitas visões cristãs sobre o fenômeno entende que coubera apenas à Maria a transmissão do elemento corpóreo a seu filho, Jesus. Em sendo assim, ele seria, cromossomicamente, a versão biologicamente masculina de sua mãe. Sobre esta questão, eu cheguei a desenvolver em 2021 um projeto envolvendo inteligência artificial a reproduzir como seria o rosto da Virgem a partir da reconstrução do de seu filho, segundo as marcas do Santo Sudário de Turim.
Curiosamente, podemos achar, aqui e ali, alguns elementos gráficos na História da Arte a revelar sutilezas sobre esta verdade teológica – de forma mais ou menos inconsciente… e Michelangelo é um destes casos. A relação entre este gênio universal e a realidade em questão se coloca em grande evidência nos rostos de Maria na Pietà Vaticana, e o de Cristo no Crucifixo do Santo Espírito: a flagrante similaridade nas duas faces é de chamar qualquer desavisado à atenção; e ela vem de maneira especialmente contundente em relação às tantas versões alternativas de Michelangelo para os dois personagens. A semelhança também foi notada pela própria descobridora e restauradora do crucifixo, a Dra. Margrit Lisner – historiadora da Arte e primeira professora mulher da Universidade de Freiburg, Alemanha. A mesma fizera algumas observações em relação a alguns pontos de similitude, como a definição delicada do nariz e a expressão de solenidade em ambos os rostos.
Sendo um intelectual, um grande interessado pelo simbolismo religioso e pelas questões científicas da anatomia humana, é extremamente improvável um questionamento filosófico assim ter passado despercebido para Michelangelo – alguém que se acercava das rodas mais pensantes entre Roma e Florença, ávido por compreender a Criação e como a evolução esculpiu as formas e volumes da “máquina humana”. Este artista e pensador fenomenal acessava textos gregos e latinos, a Cabala – graças à proximidade com Pico della Mirandola (1463-1494), o mais famoso cabalista ocidental – e o Talmud, assim como textos bíblicos judaicos (Tanakh), escritos originalmente em hebraico e aramaico. Mas, como considerar que Michelangelo Buonarroti (1475-1564) acreditasse na possibilidade das partes carnais de mãe e filho serem exatamente as mesmas?
Vejamos: Segundo as Escrituras, José, por ser pai adotivo de Jesus, não teve participação biológica na formação carnal do Messias. A natureza desta consubstanciação (como defende a Igreja Católica) se traduz por uma concomitância teológica cuja consequência foi o Cristo-homem como reprodução biológica exclusivamente da mãe – já que, também sendo Deus, se fizera carne através da “união hipostática das naturezas divina e humana”. Então, restaria somente à Maria, sua mãe, esta atribuição no que tange a natureza humana: “Caro Christi, caro Mariae” (“a Carne de Cristo é carne de Maria”), como já atestara Santo Agostinho (354-430), um dos mais respeitados doutores da Igreja.
Ora, seguindo o milenar pensamento católico, Jesus teria recebido 50% do DNA de Maria, humana, e os outros 50% do Espírito Santo, imaterial, numa concepção completamente imaculada – sobre isto, o Papa Pio IX proclamaria a bula Ineffabilis Deus (1854), definindo a doutrina da Imaculada Conceição de Maria. Cabe aqui também lembrar que Cristo era comumente referido como da “descendência (ou Casa) de Davi” por parte de mãe, “de linhagem real”, o que nos leva a considerar esta condição genética para o Jesus-homem em relação à pessoa de Maria. Não obstante, esta relação de unicidade corpórea é tão patenteada, que ambos os personagens foram afastados de qualquer chance de corrupção post mortem da carne: Jesus, após 40 dias ressuscitado, subiu aos céus em espírito e corpo (Lucas 24:51, Marcos 16:19 e Atos 1:9-11). De maneira correspondente, o corpo de Maria, após sua morte – e de acordo com o dogma da sua assunção, estabelecido em 1950 por Pio XII – também teria sido conduzido miraculosamente aos céus. Se valeu para Cristo, também deverá valer para sua mãe: um só corpo.
Um outro exemplo de como esta mística, sobrenatural correspondência entre as figuras de um e de outro era um valor meditativo de caráter teológico assenta na obra A Deposição da Cruz de Rogier van der Weyden, pintada por volta de 1435 e hoje no Museu do Prado, Madri. Nela, pode-se constatar a quase-inteira correspondência entre as posições de Maria e Cristo: ele, sendo retirado morto da cruz por José de Arimateia e Nicodemos; e ela, desfalecida com o inenarrável sofrimento de mãe, amparada por Maria de Cléofas, São João Evangelista e Maria Salomé. Os detalhes da composição teriam sido diretamente inspirados nas páginas da Meditationes de Vita Christi, publicado em 1472 por Ludolph da Saxônia, um frade dominicano e monge da ordem de São Bruno. Também contribuíram para as pinceladas a De Imitatione Christi de Thomas Kempis, de 1418, e as ideias do Beato Denis, “o cartuxo”, século XV. Por sua vez, é fundamental lembramos que Van der Weyden era um pintor com direcionamento místico – algo muito atestado por criações como o Retábulo de Miraflores (ou “de Maria”), de 1445, e o Tríptico de São João, de 1455 – ambos se encontrando, hoje, nos Museus Estatais de Berlim. Ainda pesa o fato – por assim dizer – do filho mais velho do artista, Cornelis van der Weyden, ter sido monge – decisão bem acolhida por Rogier, um burguês vivendo prosperamente de sua reputação profissional com o próprio trabalho.
Assim posto, dois robustos elos que poderiam aproximar ainda mais o imaginário de Rogier aos pensamentos de um jovem Michelangelo já se revelariam em As Tentações de Santo Antão (ou São Cipriano), hoje no Kimbell Art Museum, Fort Worth. Esta elaborada composição, datada de 1488, na verdade, vem de uma gravura realizada entre 1470 e 1475 pelo artista alemão Martin Schöngauer que, por sua vez, foi aluno de Caspar Isenmann, um notório seguidor de Van der Weyden. Em segundo lugar, temos um comentário de Michelangelo onde o mesmo discorre a respeito da pintura flamenga – na qual Rogier era o expoente: “Ela agradará ao devoto mais do que qualquer pintura italiana, que nunca o fará derramar uma lágrima, enquanto a de Flandres o fará derramar muitas”.
Seja como for, debates sobre a natureza carnal de Cristo são complexos, mas é bem razoável alguém como Michelangelo, um intelectual de alma esotérica e sensibilidade hiper-aguçada, pensar de forma análoga ao que é sugerido em A Descida da Cruz: Ou seja, o material biológico que definiria a aparência do Messias, ao achar sua herança genética apenas na mãe (por ser humana e, não, imaterial), ter definido a aparência daquele como muito similar à dela. Na mesma direção, o próprio rejuvenescimento da Virgem na Pietà Vaticana pode ser um indicativo, através do pareamento etário feito por Michelangelo com o semblante de Cristo, jazente sob o colo materno. Aqui, ele aproveita para também evocar Dante quando se refere à Maria como “Filha de seu Filho” em sua obra máxima, A Divina Comédia (Canto XXXIII); e tal consideração semiológica avivaria a mútua consubstanciação.
Uma de suas mais memoráveis composições na Capela Sistina, A Criação da Mulher, pode também trazer à tona este conceito de matizes herméticas. Sendo mais judaico que, propriamente, cristão, Michelangelo retrata o momento do nascimento de Eva, a primeira mulher, diretamente do “lado” – e, não, da costela – de Adão, o primeiro homem (Gn 2,21-22). Nesta sutil, mas significante mudança semântica, a figura do gênero da Mulher (representada por Eva) é tomada como “matéria da mesma matéria” em relação ao do Homem. Ora, “lado”, ou tselâ‘, (em grego, pleurá), traz a noção de “igualdade plena”. Assim, quando se fala em “lado”, ou “costado”, diz-se que “um nada seria se não o outro”. Percebam que, agora, não há mais aquele inevitável condicionante de hierarquia, muito mais induzido pela leitura bíblica a partir da Vulgata original. Aliás, esta versão, redigida por São Jerônimo (347-420), nem chega a referir-se à figura da Mulher como portadora de alma, limitando-se a defini-la como fabricada a partir da matéria de Adão, que a reconhece como seu subproduto e, como fez com os outros animais, dá-lhe um nome. Refletir a existência de Homem e Mulher como “tselâ‘”, transferindo a mesma filosofia ao se meditar a maternidade de Deus, seria a expressão mais sublime de elevação da figura humana (acima de quaisquer questões de gênero) – como queria a coluna dorsal do pensamento renascentista.
Quando tais estudos da moderna Antropologia avançam sobre assuntos tão controversos como a fé e o invisível, entendemos por que tanto o Sagrado como a Ciência jamais deveriam ter sido separados: Michelangelo, o mais divino dentre os homines universales, certamente teria adorado a ideia.
Por *Prof. Átila Soares da Costa Filho
*Professor Átila Soares da Costa Filho é bacharel em Desenho Industrial e pós-graduado em Filosofia, Sociologia, História da Arte, Arqueologia, Patrimônio, História e Antropologia. Atualmente integra o Comitê Científico na “Fondazione Leonardo da Vinci” (Milão), na “Mona Lisa Foundation” (Zurique) e no projeto “L’invisibile nell’Arte” do “Comitato Nazionale per la Valorizzazione dei Beni Storici, Culturali e Ambientali” (Roma).
Cf. www. https://professoratilasoares.weebly.com
Imagem de destaque: No Crucifixo do Santo Espírito e na Pietà Vaticana, ambos os rostos parecem sido esculpidos como duas versões da mesma natureza humana do Divino: feminina e masculina. Aqui, Michelangelo valeu-se de conceitos esotéricos e de cunho teológico para o desenvolver de suas obras, Bridgeman Images.com. WikiMedia Commons