A luz natural procede das estrelas por meio de uma linguagem eletromagnética que é sensível à visão dos humanos e dos seres vivos em geral. É um fogo permanente produzido a partir de transformações termonucleares de fusão que proliferam pelo universo infinito. A luz física natural é o primeiro fundamento para a interação de movimento de todos os elementos do universo. É o principal objeto de trabalho de investigação astronómica, capaz de alcançar fontes luminosas tão longínquas, que transcende a noção de espaço, inconvertível para a inteligência humana. O universo é luz, sombra e escuridão. Em todos os seres universais há luz, sombra e escuridão. As sombras físicas são diferentes das sombras das ideias. As sombras físicas tal como as das ideias não existem sem a luz. Onde há luz há sombra, onde há sombra há luz, sendo impossível discernir uma sombra na escuridão. A sombra não é o mesmo que a escuridão, mas se é um vestígio dessa escuridão em presença da luz ou um vestígio de luz na escuridão, podendo ser uma mistura de luz e escuridão, então a luz é apenas um vestígio daquilo que é verdadeiro ou falso.
Giordano Bruno, filósofo iluminado pelo fogo interior, fundamentou que a alma está quase sempre sujeita, de forma exclusiva, à consagração do corpo e dos sentidos. É uma interpretação platónica que estabelece a existência unicamente no plano do conhecimento sensível, mas que reivindica o esforço do conhecimento das essências das ideias. Na filosofia bruniana existem dois conceitos relativos à perceção das ideias: a substância preconcebida (idea, ideae) e a sua aparição no mundo material (vestigium, vestigii). A idea, ideae, que significa o original, o tipo das coisas, a noção e a imagem, é a manifestação prévia ao aparecimento no mundo das coisas naturais. A identidade da ideia no mundo material visualiza-se pelo indício, a marca, o traço, a pista, o rasto, a pegada, a impressão, o sinal, cujos significados provêm do latim e estão associados ao vestígio das ideias. Este indício das ideias (indicium, indicii) aparece manifestado por uma indicação associada, uma informação correlacionada, uma revelação produzida, uma denúncia concretizada, uma prova discernida. Giordano Bruno concebeu o vestígio das ideias como entidades ou coisas em si mesmas, ao passo que a sombra das ideias (umbra, umbrae) deriva dessas próprias coisas. Como exemplo, raramente olhamos para a água do lago, do rio, do mar, como uma imensidão de moléculas de oxigénio combinadas com as de hidrogénio, em permanente movimento. Simplesmente atendemos à sua forma e aos seus efeitos no mundo material, sem realizarmos a noção dessa sombra em torno da sua natureza química. Mas será que essa sombra é integralmente reveladora da essência do mundo infinitamente pequeno, da plenitude do carácter (character, characteris) original das mónadas químicas, considerando esse carácter como um sinal que foi queimado ou imprimido para trazer luz a essa ideia? Giordano Bruno diz-nos que para buscar a verdade, não podemos vislumbrar no horizonte da luz e da escuridão, nada mais do que a sombra. Compete à alma procurar o bem e o verdadeiro, de acordo com a suas próprias faculdades, pois daí deriva uma imagem, uma forma, um aspeto, um retrato, uma representação (imago, imaginis) proveniente da própria alma, assaz limitada pela densidade do corpo, apenas capaz de experimentar a sombra dessa imagem. De acordo com Bruno, passa-se do essencial das essências e destas para as coisas que existem e, depois destas para a sua representação, através dos seus distintivos (signum, signi), selos (sigillum, sigilli), vestígios, configurações ou aparências (figura, figurae), esculturas, retratos ou efígies (simulacrum, simulacri), imagens e sombras, em direção à matéria, que tem lugar no seu meio, residente nos sentidos e na razão, a fim que sejam conhecidas mediante as suas faculdades. De notar que essas entidades representadas são identificadas por vocábulos latinos criteriosamente selecionados por Giordano Bruno e cujo significado, nem sempre corresponde ao que comummente conhecemos. Este processo de representação das sombras, por intermédio de entidades físicas simbólicas, faz-se por similitude, semelhança, analogia, comparação ou relação (similitudo, similitudinis), porque a memória tende a conservar as semelhanças dos caracteres captados pelos sentidos. Para além do exercício comparativo ou de semelhança, Giordano Bruno estabelece a necessidade de equacionarmos o problema da proporção (proportio, proportionis), que apesar de conter elementos da similitudo, diferencia-se pelo critério da relação dimensional. Foi precisamente neste período do Renascimento que aparece a teoria da proporção fundamentada na harmonia universal e nas proporções harmoniosas, aplicada às imagens talismãs num sistema de memória oculta, como foi o caso concreto da aplicação generalizada da proporção áurea.
A sombra tem movimento e repouso, alterando-se em função do estado das coisas naturais e, jazendo estática, como se estivesse adormecida no intelecto e na memória. A memória pode funcionar com todas as coisas, pelo princípio da similitudo, uma vez que todo o semelhante se converte em semelhante. Na diversidade das coisas contidas no universo, observamos uma ordem admirável, que permite a ligação bilateral entre o supremo e o ínfimo, numa rede infinita de variáveis que se movimenta em concordância e harmonia, em cuja ordem, apenas discernimos a sua sombra, para nos inspirar na formulação da ordem da nossa existência. É neste ponto que Giordano Bruno estabelece a semelhança com os modelos de auxílio à memória, no caso específico da ligação que podemos exercitar entre a terra e o céu, que só é possível por intermédio de uma ascensão ordenada e harmoniosa. A forma mais elevada da memória é a ordenação das transações da alma e, também, desenvolver processos artificiais que possibilitem a exploração da memória. A natureza não tolera que os degraus da escadaria das sombras sejam passados de imediato, de um extremo ao outro. Cada degrau tem a sua sombra e a sua luz, não sendo possível discernir essa sombra enquanto não ocorrer o obscurecimento gradual da luz, permitindo que a visão esteja apta de granjear a sombra inteligível para o intelecto e memória. A perturbação da inteligibilidade das sombras não é objeto da natureza das sombras, mas funda-se nas restrições do intelecto, sendo adequado manter encoberta a sombra que não se deixa despir.
Sem dúvida que Giordano Bruno seguiu a tradição hermética, havendo muita probabilidade de ter recebido influência desse pensamento árabe da Idade Média. Existem semelhanças entre as imagens dos sete astros regentes (Saturno, Júpiter, Sol, Marte, Vénus, Mercúrio e Lua) produzidas na obra bruniana e as que se encontram no «Livro do Objetivo do Sábio», conhecido simplesmente por Picatrix (Kitab Ghayat al-Hakim), obra escrita no séc. X, atribuída por algumas fontes a Abu I-Qasim Maslama al-Qurtubi. Esta fonte tem forte influência hermética e também proporciona listas de imagens mágicas particulares e conselhos sobre procedimentos mágicos, requerendo muitos conhecimentos de astronomia, matemática, música e metafísica. Os elementos presentes são semelhantes aos que podemos encontrar em alguns tratados do Corpus Hermeticum e em Asclépio, claramente do conhecimento de Giordano Bruno.
Nesta curta viagem de similitudo, foram encontradas referências sobre o papel dos Harranianos, originários da cidade de Harã (cidade assíria, atual sudeste da Turquia), onde existem fortes testemunhos sobre a existência de uma escola platónica que sobreviveu, muito depois do advento do Islão, no séc. X. Não só este facto parece verosímil, como existe uma enorme possibilidade dos Harranianos terem transmitido a tradição dos livros herméticos, por via da preservação dos trabalhos de Hermes Trismegisto. Outro livro que surge da tradição hermética é o chamado «Segredo da Criação» (Kitab Sirr al-Khaliqa), cuja autoria está atribuída a Apolónio de Tiana (Aballuniyus, Abalinas, Abulus ou Balinas, em árabe), conhecido por «Senhor dos Talismãs», filósofo neopitagórico e hermético. Trata-se do livro mais proeminente e popular, do período islâmico, cuja obra é bastante complexa. Está escrito numa perspetiva alquímica, uma vez que o autor não teoriza sobre astronomia e física.
No contexto da trajetória hermética realizada por Giordano Bruno faz todo o sentido que tenha sido influenciado por estas fontes árabes da Idade Média, sobretudo da região da Andaluzia. Bruno faz referências a vários pensadores árabes, como são os casos de Jabir Ibn Hayyan (721-815), Al-Batani (858-929), Ibn Sina ou Avicena (980-1037), Ibn Bajja ou Avempace (1085-1138) e Averróis (1126-1198). O averroísmo teve uma influência notável em Giordano Bruno, apesar desta corrente de pensamento ter sido condenada pelos editos do bispo Étienne Tempier, em 1270 e 1277. No seguimento desta linha de pensamento, considerando que a visão de Giordano Bruno assentou no culto mítico a Hermes Trismegisto, assim como na fonte filosófica de Sócrates e Platão, tendo estudado os trabalhos de Marsílio Ficino (1433-1499) e de Cornélio Agrippa (1486-1535), para além dos contactos com as fontes árabes herméticas, é bastante provável que tenha conhecido o Picatrix. As fontes também indicam que esta obra foi uma referência para Marsílio Ficino.
Perante tais indícios fomos em busca das semelhanças entre as imagens talismãs dos sete astros regentes, tomando como obra de referência a «Imaginum, signorum et idearum compositione» de Giordano Bruno. A partir desta estabelecemos uma comparação com a descrição dessas imagens constantes nas obras, «Os Benefícios das Rochas de Mercúrio» (conhecido por Al-Katib), de um livro escrito por Apolónio de Tiana (não identificado pelo autor do Picatrix) e do livro «Interpretação dos Talismãs Espirituais», todas elas descritas no Picatrix. Após a análise às imagens talismãs, elaboramos o quadro seguinte para melhor visualização dos seus elementos comuns (identificados a negrito), em função de cada astro regente.
Obras com descrições no Picatrix |
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Astros regentes |
Imaginum, signorum et idearum compositione |
Apolónio de Tiana |
Os Benefícios das Rochas de Mercúrio |
Interpretação dos Talismãs Espirituais |
Saturno |
Um homem sentado numa carruagem puxada por dois dragões; na mão direita sustenta uma foice. |
Um homem sentado num mimbar (púlpito usado numa mesquita). |
Um homem de pé sobre a estátua de um lagarto, sustentando uma baleia nas mãos. Outros referem a representação de uma foice na mão direita. |
Um homem com face de corvo e pernas de camelo; está sentado numa cadeira com um bastão na mão direita e uma lança na mão esquerda. |
Júpiter |
Um homem coroado sentado numa carruagem puxada por duas águias; segura um cetro na mão esquerda; aparece uma criança a oferecer um ramo de flores. |
Um homem com uma corda enrolada à sua volta e está sentado sobre uma águia. |
Um homem montado num dragão e segurando na mão ou uma vara ou uma lança. |
Um homem com face de leão e com pernas de pássaro; tem um dragão com a face debaixo dos seus pés. |
Marte |
Um homem sentado numa carruagem puxada por dois cavalos, segurando um escudo na mão direita e uma espada na mão esquerda; na cabeça usa um capacete. |
Um homem com um capacete e um escudo, e prendendo uma espada ao seu cinto. |
Um homem nu de pé e uma estátua de uma mulher virgem com um cabelo trançado atrás dela. |
Um homem coroado segurando uma espada com figuras esculpidas. |
Sol |
Uma carruagem puxada por quatro cavalos; a cabeça do homem coroado irradiando luz; um bastão na sua mão direita. |
Uma mulher em pé numa carruagem puxada por quatro cavalos; a cabeça irradiando luz; um bastão na mão esquerda; um leão rampante debaixo da carruagem. |
Um homem com um escudo na mão esquerda; um dragão debaixo dos pés. |
Um homem coroado sentado na cadeira; um corvo entre as suas mãos e um dragão a seus pés; outros retratos colocam o homem de pé, na carruagem puxada por quatro cavalos. |
Vénus |
Uma mulher com uma maçã na mão esquerda, sentada numa carruagem puxada por duas águias; sustenta uma seta na mão direita; Cupido representado ao lado. |
Uma mulher de pé com uma maçã na mão direita e segurando um pente na mão esquerda. |
Um corpo humano com cabeça de pássaro e pernas de águia. |
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Mercúrio |
Um homem com um galo na cabeça sentado numa carruagem puxada por duas águias; na mão direita tem um caduceu. |
Um jovem com barbicha segurando uma vara na mão direita com um gato ao seu colo. |
Um homem de pé com asas no lado direito; no seu lado esquerdo tem um galo e na sua mão direita uma vara; no meio aparece a coroa de um galo. |
Um homem com um galo na cabeça; sentado numa cadeira com pernas de águia e com um archote na mão esquerda. |
Lua |
Uma mulher sentada sobre um dragão e puxada por outras duas mulheres; tem na cabeça uns cornos em forma de lua e na mão direita uma seta. |
Uma mulher de pé sobre dois touros, com a cabeça de um, virada para a cauda do outro. |
Uma mulher com um dragão à volta da cintura, com duas serpentes na sua cabeça e dois cornos; usa braceletes em forma de serpente e dois dragões na sua cabeça, cada qual com sete cabeças. |
Um homem com a cabeça de um pássaro, apoiando-se num bastão e segurando uma árvore entre as mãos. |
Numa perspetiva geral, podemos verificar que os indicia (plural de indicium), ou seja, os indícios ou as marcas das imagens são algo diferenciados entre as fontes apresentadas. Porém, apresentam um conjunto de indicia que são comuns, o que reflete a enorme probabilidade de transferência de conhecimento entre as fontes herméticas. Mesmo considerando as diferenças detetadas, as marcas ou impressões que constituem a identidade das ideae (plural de idea) dos sete astros regentes revelam uma tendência substancial do carácter dos vestigia (plural de vestigium), sem conseguirmos discernir grandes desvios interpretativos à sua representação. Estruturalmente, esta convergência traduz bem a fidelidade às fontes herméticas mais antigas, sem beliscar a diversidade das versões dos seus autores. Neste contexto parece bastante verosímil que Giordano Bruno tivesse tido contacto com a obra «Livro do Objetivo do Sábio», conhecido simplesmente por Picatrix (Kitab Ghayat al-Hakim), na continuidade da influência recebida dos pensadores árabes da Idade Média. Claramente que Giordano Bruno não estava interessado em aprofundar o conhecimento dos princípios da religião islâmica, mas fundamentalmente examinar os aspetos científicos e filosóficos da tradição islâmica.
Carlos Paiva Neves
Imagem de destaque: Fragmento do Picatrix guardado na Biblioteca Nacional da Eslováquia. Domínio Público